Esperanto:solfege escrita por Petit Ange


Capítulo 25
Epílogo: A Canção de Todas as Línguas


Notas iniciais do capítulo

E enfim, depois de mais de um ano, finalmente termina a primeira parte de “Esperanto:Solfege”. A despedida é sempre inevitável, por mais que a parte dois esteja bem diante dos olhos de todos. Acredito que, tanto para mim quanto para os leitores, Espe deixará saudades.

Cada qual ao seu modo, os personagens enfrentaram todos os momentos tristes ou felizes que fazem da vida o que ela é. Viveram, acredito, plenamente até o fim. E, por isso mesmo, por mais que eventualmente desapareçam, sempre estarão em algum lugar da memória.

E, é claro, se hoje esta autora e seus personagens conseguiram chegar até aqui, foi graças aos leitores que sempre enviaram comentários animadores e necessários. A raiva, a alegria, o medo, a angústia... Todos os sentimentos dos leitores foram, um dia, desta autora também, porque de alguma forma “Esperanto:Solfege” foi o tipo de trama que caminhava sozinha desde o início. E confesso que eu própria estou surpresa com o rumo que ela tomou.

Mesmo assim, agradecida. Porque essa autora sabe que haverá sempre alguém a apoiá-la em algum lugar. E é por estas pessoas que os personagens (ou alguns deles) voltarão num futuro próximo...

Para todos que leram estes mais de quarenta capítulos e chegaram até aqui, eu lhes desejo o melhor da vida.

Cuidem-se e até a próxima! ^^



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Esperanto:Solfege
Petit Ange

 

Epílogo: A Canção de Todas as Línguas.

 

Mundo Youkai. Dez meses atrás.

Vales da Fronteira.

Minha alma e minha vida serão suas, Suriel. Mas, por um preço tão extremo, eu exijo estas três condições cumpridas: 1) isso se dará apenas após a barreira youkai ser lacrada pelos Guardiões, 2) o rei Kuro deverá estar morto antes disso e 3) minha mãe, Hotaru Himeno, não se lembrará do Mundo Youkai ou de que algum dia foi prisioneira e mãe das crias desta aberração.”

“...Como desejar, Himeno-sama.”

“Você agora está na Terra como ‘Shiho Himeno’, meu falecido irmão-gêmeo. Chame-me de ‘Mashiro-kun’, por favor.”

“Entendido... Shiho-kun.

Foi com aquelas palavras que eles construíram um laço.

“...Parece que Hikari nee-sama fez o trabalho por mim. Do jeito que imaginei que faria. Ela sempre foi a mais impulsiva de nós...” – ele sorriu. – “Muito bem, Suriel. Minha alma, como o prometido, é sua. Pode me matar.

Após isso, vou apagar as memórias de sua mãe, Hotaru Himeno. Ela não saberá que algum dia teve você e Shiho.”

“Será o suficiente.” – assentiu em concordância.

“...Mas o corpo dela irá lembrar. Só sua mente vai esquecer.”

“A Hotaru que eu conheço é uma mulher muito forte. Ela vai saber superar. Todos superam algo que sequer sabem que esqueceram.

O anjo pareceu hesitar, como quem procura as palavras certas para falar-lhe.

“Mashiro-kun...”

“O que foi?”

“A condição nº 1... Ela não pode ser cumprida.” – avisou-lhe, num tom neutro que não pertencia à Shiho Himeno, mas à Suriel. – “A barreira está fechada. Mas, um dia, sem dúvidas, ela será aberta por alguém. Ainda está um tanto frágil.

Assentindo, o moreno suspirou.

Eu sei. Os Guardiões estavam fracos demais, mesmo que tenham-na fechado decentemente. Mas, por enquanto, eu só quero colocar um pouco de fé neles.

Sua opinião a respeito dessa geração é um tanto ferina, não?” – sorriu.

“...De fato. Mesmo que eles a tenham fechado, ainda sim... Eles são mesmo os mais estranhamente despreparados.”

“Não seria por que, na verdade, são simplesmente mais suscetíveis às óbvias seduções de uma vida normal?

A melancolia pareceu tingir a face de Mashiro com um tom ainda mais leitoso do que o normal.

“...Não duvido que seja isso.”

“Você também está abdicando das seduções de uma vida normal.”

“Suriel, por favor.” – ele deu um sorrisinho. – “Você vai me matar agora. Que espécie de vida eu vou ter?

Tendo de concordar, Shiho passou para um tópico, talvez, um pouco mais agradável de se ouvir (ou não).

A Guardiã de Leão o viu naquela hora.”

“Sim. Foi mesmo perigoso.”

“Será que ela não vai lembrar de você?

O gêmeo meneou a cabeça. – “Não. Olhe para ela... Não vai lembrar de mim.

Suriel riu, concordando. Mas logo, voltou aos negócios.

Se você quiser, Mashiro... Eu não vejo problemas em esperar até que um outro grupo de Guardiões lacre a barreira de uma forma bem mais definitiva. Assim, quem sabe, as suas condições sejam plenamente cumpridas.

Mas o gêmeo de Shiho Himeno apenas negou.

Não faça isso, Suriel. Se esperarmos até uma nova geração conseguir lacrá-la de fato, eu muito provavelmente não estarei mais vivo de qualquer jeito. Além disso, sem a minha morte, mamãe não vai perder as memórias dos momentos traumáticos. Eu não quero isso.”

“Mas quer mesmo dar sua vida em troca de, teoricamente, duas condições e meia? É contra o Limite de Gleich. [1]”

“Eu não estou interferindo no Limite.” – declarou Mashiro Himeno. – “Estou pagando, adiantado, um certo preço por uma certa coisa. Por isso, duas condições e meia está bom. Eu posso pagar o terceiro preço.

O anjo das asas negras precisou de poucos segundos para entender do que seu pseudo-gêmeo falava.

“...Não o recomendaria fazer isso.”

“Por que?”

“Porque, deste jeito, vai deixá-los em débito com você, pelo Limite.”

“Muito provavelmente...” – não negou aquela verdade. – “Mas eu sei que, um dia, será útil. Um dia, este preço que paguei será bem-usado. Quem sabe, por alguém que verdadeiramente mereça meu sacrifício. Não sei se é aquele menino... Mas, tudo bem se não for. O tempo é sábio.”

“...Achei que você só queria que a barreira fosse lacrada. Não se sacrificar inutilmente por uma causa perdida.”

“Shiho-kun.” – usando o apelido que dedicada somente ao gêmeo, Mashiro sorriu, naquele tom sinistro que lhe era natural. – “Com doze Guardiões, nenhuma barreira é, de fato, lacrada. Porque eles precisam elevar sua energia ao limite e, muitas vezes, nem isso é o suficiente.”

“Eu sei.” – concordou. – “Eles sofrem muitos danos físicos depois...”

“E se estes Guardiões da geração atual não fecharam plenamente, como devia ser, a barreira youkai, foi porque falta um colega. Não, ou melhor...” – o sorriso pareceu aumentar. – “...Faltam dois. É para o futuro deste segundo aliado perdido que eu estou pagando.

O moreno sacudiu a cabeça, incrédulo. – “Você é tão tolo, Mashiro-kun...”

“Fiz a minha parte. Agora sim, posso verdadeiramente deixar este mundo sem nenhum arrependimento.

Suriel sorriu, lentamente deixando que sua mão tocasse na do outro.

“...Se possível, você teria sido um excelente Guardião.”

“...Obrigado.

E foi com aquelas palavras que eles destruíram aquele laço.

Mashiro Himeno tornou-se apenas outra lembrança.

 

Haviam outras coisas a serem protegidas agora. Outros assuntos a serem postos em dia.

E Suriel, então, esqueceu-se.

Lentamente, como se faz com algum item que não estava na lista de compras; até que, quando finalmente se passa em frente à prateleira onde aquilo está, sequer se lembra que devia comprar algo dali.

O tipo de lembrança que voltaria, às vezes, para incomodá-lo, deixá-lo pensativo: “Como será que está o Himeno? Se não me engano, no Elyssium, não?...

...E, provavelmente, não passaria disso.

Como alguém que lembra, depois, quando já está no carro com as compras todas ali e à caminho de casa, de que se esqueceu daquele maldito item que, outrora, parecia tão firmemente preso à memória.

O resto, já não era com ele. Sua parte, Suriel fizera até o fim.

 

Ano de 2010. Século XXI.

Adare – Irlanda.

O sol estava fresco e caloroso, como devia ser. O calor morno espalhava-se pela ponta dos dedos e seguia preguiçosamente pelos braços, indo colar-se ao corpo e proporcionar a agradável sensação de torpor iminente. Enquanto isso, lá longe, os pássaros, pouco ou nem incomodados com suas presenças, continuavam cantando belas melodias, enquanto os demais sons da vida preenchiam a clareira.

Seu corpo encostado no tronco da árvore mais parecia uma extensão do próprio ente amadeirado. Ele suspirou, enquanto o verde e o azul enchiam de cores sua visão. Imaginou se algum músico ou poeta pisasse ali; os humanos deviam perceber um pouco mais quanta inspiração a Natureza era capaz de oferecer. Se ele próprio fosse um, sentir-se-ia ainda mais tocado por aquela beleza única.
Talvez, tudo o que faltasse para realmente se tornar belo fossem... Flores.

Aquelas pequeninas fadas coloridas em formas tão singulares, cada uma com sua individualidade, cada uma com seu devido perfume; cada uma sendo uma perda quando morria, quando perdia as cores vibrantes.

Sim... Flores para uma clareira divina.

Ao menos, pensou consigo, não contendo um sorriso divertido nesta hora, nenhum humano seria capaz de pisar ali. Aquele pedaço de verde estava protegido.

Como rezava a lenda grega, deuses jamais devem mostrar sua forma real para os humanos. É uma forma por demais divina. Os humanos não suportavam a visão e pereciam imediatamente. De certa forma, o mesmo valia para anjos inorgânicos e imortais. A visão de seus corpos reais era tão potente quanto.

Se algum humano se atrevesse a passar por ali e, acaso, os visse, morreria no mesmo instante.

Os ‘Erasi’ podiam abusar deste método para matar indiscriminadamente, mas a verdade é que eles nasceram com o instinto sádico e homicida; eles preferiam sentir o impacto nas próprias mãos. Meios indiretos não lhes agradavam.

...E a verdade é que ele entendia bem esse sentimento. O prazer de sentir a morte grudar-se nas mãos como alguém a pedir socorro era bem mais extasiante.

Porque é verdade que também já teve vontade de fazer aquilo.

Matar com requintes de crueldade, entregando-se ao ódio louco.

Envergonhava-se de quase ter cedido àquele impulso, mas esta era uma mácula com a qual precisaria conviver pelo resto da vida.

Pequeninos fachos de luz, banhos ebúrneos semi-transparentes sobre a superfície esmeraldina perfeita, caíam exatamente sobre sua face pálida.

Que ironia se um humano passasse ali...

Se ele não morresse, é claro, o que será que iria achar se o visse naquele lugar?

Um viajante preguiçoso? Um turistas aproveitando o básico do básico que o pedaço de verde puro chamado Irlanda oferecia?

Iriel ponderou consigo, vendo que poderia ter escolhido muitos outros lugares além daquele. O país onde agora se encontrava tinha tantos bons vilarejos, tantos lugares onde bastava deitar-se, fechar os olhos e sentir, vez ou outra, borboletas coloridas pousarem em seu nariz.

Talvez, se fosse se mudar dali, procuraria uma clareira com um enorme campo de flores. Preferencialmente, flores roxas. Gostava das cores frias.

...Talvez porque, afinal, suas asas eram verdes como aquele campo. Eram cores frias, mesmo que levassem uma sensação cálida para o coração.

Sim, flores lilases e perfeitas. E, se possível, com um grande e cristalino lago, muito pacífico em sua condição, refletindo o céu de azul puríssimo carregado de nuvens brancas e as montanhas imperiosas e coloridas levemente do azul-acinzentando da neve.

Quem sabe, se pudesse achar um, iria até àquele tipo de lago com uma estranha e pura coloração azul-esverdeada... Seria engraçado ver a cor de seus próprios olhos em um lago.

Pensando bem... Por que não procurar um lugar assim agora mesmo?...

Ah, não. Estava apenas de passagem por ali...

Porque, afinal, não podia trabalhar pensando em um ‘Deus’ antigo. Por mais que apagasse toda e qualquer memória do anjo Iriel da mente da sua criação, eventualmente eles passariam a dividir um só corpo. Duas complexas mentes; e isso seria um problema.

Najato Hajaya foi, sim, um grande ‘Deus’. Foram anos divertidos com ele...

Mas, pensando bem, Iriel viu que fora meio precipitado em ter se unido à ele tão cedo. Foi errado. Afinal, graças àquele fato, o próprio anjo apegou-se demais àquele menino condenado.

Há anjos que trabalham com a razão. Outros, só fazem o que devem fazer. E, finalmente, existem aqueles que trabalham com paixão.

...Provavelmente, e não havia como fugir disso, ele trabalhasse com a terceira.

Seria impossível esquecer definitivamente o caçador, é verdade. O máximo que poderia fazer era, eventualmente, superar. Dera-se alguns anos de descanso da “profissão” justamente para isso, mas já era hora de voltar.

Começaria na própria Irlanda? Ah, mas quem sabe, seria divertido voltar ao continente americano. Precisava de um trabalho mais acessível, no momento.

Acho mesmo que vou para o Canadá... Vai ser bom recomeçar lá.’ – decidiu-se, então.

É. Um lugar do outro lado de seu último fracasso.

Passando a mão pelos cabelos loiros, o rapaz ergueu-se. Suspirou longamente, sentindo a preguiça nos membros já amortecidos pela moleza que a sensação aconchegante do sol trazia. Espreguiçou-se com vagar, quase se sentindo como um humano naquele momento. Conteve-se para não sorrir diante da ironia de que anjos não dormiam de fato, então, não podiam sentir sono; conseqüentemente, bocejar. Quando o faziam, era só um reflexo por imitarem tão perfeitamente os homens.

Encarando, por fim, o céu azul com aqueles olhos que se assemelhariam àquela cor se não tivessem uma pequena camada de verde complementando-lhe a perfeição em ciano, Iriel respirou uma vez mais profundamente.

...Já era hora de parar de ser infantil e voltar ao seu trabalho.

Não faria como Remliel, que por um humano era capaz de perder o pouco de civilidade que já tinha. Ao contrário dele, o anjo identificava-se mais com Sehriel: alguém que preferia simplesmente guardar para si suas dores, deixando isso para remoer quando estivesse sozinho.

Machucar a si próprio, não os outros ao seu redor, parecia-lhe a solução mais prática e certa de agir.

Porque a morte não era, nem de longe, uma opção válida.

Iriel sorriu. Ah, nestas horas, quem sabe, apenas nessas horas... Ele verdadeiramente invejava as criaturas do plano terrestre.

Bem, o que se pode fazer?...’ – pensou, dando de ombros. Era melhor simplesmente deixar isso tudo de lado.

Afinal, só Suriel conhecia o segredo para se matar um anjo.

E ele teve sua lição por ter descoberto o segredo que dizia a respeito apenas aos supremos seres do céu.

E, definitivamente, o anjo das asas verdes não queria ter o mesmo destino.

Por isso, ao estender as mesmas e voar no segundo seguinte, deixando para trás aquele cenário tão belo e caloroso, o anjo cuja forma real era aquela, um belo e jovem rapaz loiro, só tinha em mente chegar logo ao continente onde iria retomar seu trabalho.

E, mais tarde, quando a pessoa na qual ele se transformaria pudesse começar a conviver com o fato de ter duas mentes, poderia lamentar por Hajaya algum dia...

 

Vale de Hinnom – Jerusalém.

Gehenna. Ano de 2009.

A cabeça latejava. Se fosse um humano, diria que dormiu por tempo demais, mal demais, tudo demais... E, então, a cabeça doía em resposta. A dor começava no fundo do crânio, espalhando-se por toda a extensão da cabeça como as ondas na areia de uma praia. Apertar os olhos apenas piorava; mas era seu primeiro reflexo.

Remliel ergueu-se de pronto, num súbito despertar, quando apertou os olhos e tudo doeu ainda mais. A dor o fez sentir-se... Vivo.

Era ilógico, verdade, considerando que morrer nem de longe era uma de suas preocupações. Mas, explicando para si próprio, porque nem uma parte dele entendia aquela reação, os últimos acontecimentos o fizeram perceber, afinal, que esteve de verdade a um passo de morrer.

A loucura da dor era uma das piores experiências que se podia experimentar.
Um humano, porém, era como um brinquedo frágil: se quebrasse, não podia mais ser consertado.

Porém, quando uma criança entende que o brinquedo que ela quebra pode ser consertado quantas vezes quiser, sua primeira inclinação será o de quebrá-lo muitas vezes, cada vez mais. É isso que um anjo faz quando tortura o outro; ele o quebra tantas vezes quanto for necessário.

Dependendo do pecado, do ódio, de tudo, uma tortura pode levar semanas. Às vezes, décadas. Se os mitos gregos já apontavam a tortura de Prometheus [2] como sendo algo de muito tempo, por que não seres inorgânicos e imortais?

...Pensando bem, Remliel tivera muita sorte de ter sido maltratado apenas algumas muitas horas por Sehriel.

Sehriel...

Depois de algum tempo de dor, a realidade e a continuidade simplesmente deixam de existir. Todo e qualquer um que é capaz de sentir sabe disso.

O anjo fizera aquilo de propósito; ele prolongava o máximo que podia e, então, finalizava. Apenas para esperar que o outro recuperasse-se para que pudesse aproveitar plenamente outra rodada. E a cada vez que Remliel se regenerava, Sehriel fazia questão de deixá-lo em ainda pior estado.

Até que uma dor realmente imensa, como se estivesse morrendo de verdade, o assaltou de uma forma que ele achou que fosse perder os sentidos.

Mas não perdeu...

Apenas foi levado para um outro lugar. Um local sem som, sem luz, sem ar. Era o perfeito vazio. Como se fosse a própria morte.

Onde deveriam estar suas pálpebras fechadas, ele recriava as imagens daqueles momentos. O sol nascendo aos poucos, colorindo-os de um brilho delicado e avermelhado. O cadáver de Maiko Isono em algum lugar, fedendo a sangue (se bem que só anjos podem sentir o verdadeiro cheiro desse líquido; e definitivamente, fedia como fedem os cadáveres aos narizes de qualquer um). A terra, transformada em um monte de buracos sem continuidade, das repetidas vezes que caíra violentamente.

Sehriel transformara o anjo das asas vermelhas em um monte do que parecia ser apenas carne disforme várias vezes.

Se alguém fosse capaz de passar e ficar por ali sem querer cobrir os ouvidos ou fugir para bem longe, ouviria o som da carne esmagando, dos osso quebrando, dos grunhidos de dor que eventualmente abandonavam sua garganta dilacerada.

E a cada vez, o outro esperava Remliel voltar ao normal. Porque aquele era um mundo de dor infinita, onde nem a morte podia salvá-lo.

Se um humano fosse capaz de compreender isso, saberia o quão profundo era aquele inferno.

Porque a dor podia enlouquecer. Ah, como podia...

De todas as formas possíveis, Remliel foi rasgado em pedaços, esmagado, pisado, esticado, como se fosse de fato um boneco nas mãos de uma criança violenta... Sangue voando e caindo no chão em gotas seguindo um padrão específico ou pedaços de carne transformaram o lugar em algum cenário digno de filmes de terror que considerariam trash.

Por isso, quando viu-se naquele lugar, não pôde deixar de se surpreender, por mais que tivesse memórias de fato de ter sido levado para um local sem nenhum estímulo.

Estava deitado sobre o que parecia ser um divã. Para os olhos dos homens, aquele seria um lugar muito escuro. Mas a verdade é que, para aqueles que enxergavam bem mais do que o limitado espectro de cores dos mesmos, a quantidade de luz e detalhes era imensa.

Podia comparar aquele local com um grande salão, talvez o interior de uma igreja barroca. Havia uma abóbada colorida de negro e escarlate (e era estranho, pois na abertura central, onde em capelas ficava uma rápida visão do céu e do sol, não tinha nada senão um grande vazio acima dela), e nenhuma porta. Invés disso, à sua esquerda, distante, a abertura em forma de porta, com uma cortina de aparência pesada e da mesma cor da abóbada, com detalhes em dourado vibrante.

O silêncio carregava consigo uma sensação de estranheza. Um arrepio na nuca. Mesmo assim, pensou, devia estar acostumado com aquilo.

Tinha, afinal, a impressão de ter ficado naquele lugar por tanto tempo...

“Finalmente acordou.”

Pego de surpresa, Remliel virou-se para a direção onde escutou a voz. Distante dele, parado em um ponto no meio do grande salão. Da última vez, ele estava mudado. Estava na forma de um hanyou de cabelos e olhos negros; mas seu humor continuava o mesmo. Irritante até o fim.

Agora, estava em sua forma real, aquela que só os anjos podiam ver.

E a verdade é que Suriel se parecia demais com uma criança inocente. E isso era perigoso até para ele próprio. Não era, afinal, tão diferente daquele “Shiho Himeno” que ele encarnava antes.

O rosto ia afilando a medida que chegava no queixo, ao contrário da forma mais redonda das crianças – isso faria de Suriel não um infante, então, mas um pré-adolescente, muito provavelmente. Mas aquilo não diminuía em nada a imagem de inocência que ele passava.

Pequeno e magro, não podia negar que era uma espécie de querubim. Se mostrasse-se à alguma fêmea humana em sua real forma, certamente ganharia as graças do instinto materno natural que elas tinham em si.

Seus cabelos negros, curtos, com as franjas caindo-lhe, certamente atrapalhando sua visão algumas vezes, emolduravam aqueles seus olhos grandes e expressivos, dando-os ainda mais vida do que deveriam ter. Aqueles olhos... Eles eram de um verde difícil de definir com clareza. Um esmeralda pálido, misturado com o verde-azul do mar, com uma leve, quase imperceptível sombra de veronês. [3]

...Aquelas asas pareciam quase anormalmente grandes para sua aparência frágil de um pequenino. Mesmo assim, o negro delas combinava bastante com os cabelos e a roupa que ele usava.

“Boa tarde, Remliel.” – saudou-o. – “Você demorou.”

“...Suriel.” – sussurrou. E gemeu; aquela dor ainda atravessava-o como espinhos de uma rosa enganchando-se num dedo desavisado.

Aproximando-se em passos lentos, porém firmes, quase que de uma forma calculada, até ficar do lado do divã, o anjo tocou-lhe na testa.

“Seu corpo ainda dói, não é?” – na verdade, aquela era mais uma pergunta retórica. – “É melhor ficar aí por enquanto, Rem.”

O rapaz bufou, impaciente, tirando aquela mão irritante de cima de si.

“Não me chame de Rem.”

“...Tudo bem, acalme-se.” – e o garoto riu diante daquele humor.

“Agora, diga-me o que aconteceu depois que...” – engolindo a pergunta (quem sabe, fosse ainda uma pontinha do orgulho), ele deixou que as reticências falassem por si só.

Suriel ergueu a sobrancelha, ainda com o sorriso no rosto.

Claro, não fora ele quem recolheu Remliel, mas soubera que Sehriel só pôde ser parado com reforços. Ele definitivamente estava sedento de sangue.

Provavelmente, muito provavelmente, aquela fosse uma reação compreensível para quem estava há tantos séculos afastado de seu ‘habitat natural’.

Ou, talvez, nas palavras daquele que recolheu o pedaço de criatura que devia ser Remliel: ‘É melhor deixar o Anjo da Justiça liberar sua frustração, nem que seja só um pouco. No fim, ele está mais certo que o Anjo do Massacre’.

A verdade, claro, é uma coisa muito variável, mas Suriel admitia que, bem no fundo, também sentia dando-se razão a...

“Foi o Sehriel que...?”

O garoto suspirou. – “Foi sim, claro. Certamente, ainda tem lembranças do que ele fez com você, correto?”

Ah, sim. E como tinha...

“Tenho.”

“Basicamente, então, depois que ele torturou-o pela trecentésima vez, mais ou menos, finalmente os reforços chegaram e pudemos tirá-lo de cima de você. Tínhamos mesmo de fazer isso ou ele podia voar de volta para Tokyo e iniciar um massacre. Ele estava completamente fora de si.” – explicou, o sorriso desaparecendo aos poucos no rosto. – “Mas, sabe... Qayin [4] teve problemas em diferenciar você do resto da terra no começo...”

Remliel podia imaginar. De fato, ele próprio quase se sentiu um só com a terra muitas vezes naquela tortura interminável.

“Mas... Você me permite perguntar-lhe algo, Rem?”

“...Pare de me chamar disso.” – ele passou a mão por sua franja, tirando-a do rosto. A maldita sabia atrapalhar sua visão quando queria. – “E diga, o que foi?”

Surpreso, Suriel colocou a mão nele outra vez, desta vez no topo da cabeça.

“Você está mais tolerante ou é impressão minha?”

Remliel não respondeu. Apenas virou o rosto para o outro lado, preferindo encarar o vazio do que a face do outro anjo.

...Sim. De alguma forma, ele admitia ter mudado.

Ou, ao menos, sentia-se a anos-luz de distância daquele Remliel que voou pelos céus procurando apenas a vingança louca.

É claro que a raiva por Sehriel não desaparecera. Ela dificilmente iria sumir; continuaria em algum lugar, enterrada bem fundo, quem sabe, mas estaria sempre latejando como um coração humano.  Mas aquele sentimento arrebatador... Remliel já não o sentia em todo seu esplendor.

Seria esse o efeito de uma boa surra? Ou, justamente, aquela punição foi o que lhe fez abrir os olhos para o fato de que, afinal, Sehriel não era uma figura ilustrativa, nem um símbolo, mas somente mais um ser cheio de erros imperdoáveis?

Havia o óbvio respeito que se tem por um colega superior em algum lugar daquela mistura. Mas, juntamente com aquilo, também havia... O respeito de um antagonista. De, simplesmente, duas criaturas de, afinal, uma mesma raça.
Ilógico. Absurda e completamente ilógico.

“É estranho... Por um momento, só por um momento em tudo aquilo...” – o rosto dele continuava virado. Impossível saber qual sua expressão só por aquele tom neutro de voz. – “Eu senti como se... Se as minhas intenções fossem as erradas e as de Sehriel fossem as certas. Eu... Compreendi-o.”

“Não existe certo ou errado, você sabe disso. O que existe é a prevalência da opinião do mais forte.” – Suriel meneou a cabeça, falando calmamente. – “E, também, a compreensão do outro.”

...Continuava a ser ilógico.

“Confesso que os métodos que você usou, Remliel, não são de meu agrado. A vingança desenfreada nunca é saudável para ninguém; para a memória daquele que ficou, para a memória daquele que se foi, para a memória daquele que é o ‘culpado’. É uma corrente de ódio.”

...Ainda muito longe de fazer um sentido.

“Mas, talvez, seja porque, afinal, eu já passei por isso...”

Só diante daquelas palavras foi que o rapaz teve a coragem necessária para voltar a encarar o rosto daquele garoto.

E, a primeira coisa que percebeu foi que ele continuava com a mão em sua cabeça, como se a criança fosse o próprio Remliel (bem... Uma parte de si concordou inteiramente, mas ele a ignorou na hora).

“...Tire as mãos de mim, Suriel. Agora.” – rosnou, totalmente desgostoso.

“Tudo bem, tudo bem.” – ele riu de novo.

Revirando os olhos, o rapaz retomou a conversa de onde ela havia parado antes daquela atitude (digna de punição).

“...Fala dos gêmeos, não? Tenshi no Inochi wo Mushisareta Tsumibito.”

Suriel torceu o nariz diante da frase. – “Já disse que isso parece nome de templo! Por que todos adoram me chamar disso?...”

“É uma alcunha incrível. Você matou coisas que sequer têm vida.”

“Aqueles dois toscos. Oniemme e Orifiel...” – o adolescente revirou os olhos, sorrindo. – “Mas o que mais me incomoda não é a morte de Sayo-dono... Me pergunto como eu pude ter sido idiota a ponto de exterminá-los... Isso me incomoda!”

“...O luto não faz essas coisas com os anjos?”

O moreno baixou os olhos. – “Mashiro falou-me a mesma coisa.”

Remliel desviou os seus, subitamente incomodado.

“Desculpe.”

“Não, tudo bem. Eu já superei-o.” – sorriu. – “Mas, veja bem... Responda-me, Rem: por que você não exterminou Sehriel em todos esses anos?”

“...Porque eu não sei como se apaga um anjo, oras.”

“E se você soubesse, faria isso...?”

Ele faria? Ou iria simplesmente preferir guardar a informação para si, porque era muito mais divertido vê-lo sofrer indefinidamente?

Surpreso consigo próprio, o rapaz entreabriu os lábios. – “Eu iria preferir que Sehriel sofresse até o fim, muito vivo e consciente. Para que ele soubesse quão imenso foi seu pecado e quão interminável seria a punição.”

“Exatamente. Eu devia ter feito isso.” – sorriu Suriel, melancólico. – “Fui punido severamente e ainda fiz um favor à eles...”

Remliel sorriu de leve.

“...É estranho pensar que você, um dia, não foi nem ‘Erasi’ nem ‘Construxi’.”

“Houve um tempo em que fui igual à Metatron, um Príncipe da Presença, e igual à Raphael, um Anjo Curador.”

“O grande Suriel [5], o Príncipe da Classe das Virtudes. [6]” – Remliel repetiu o seu ex-título, com toda a pompa irônica que ele merecia.

O moreno sorriu, com nostalgia.

“Já conhece a história, não?”

“Sim, claro. O grande Suriel apaixonou-se por uma humana qualquer – uma coisa que, oh, nunca havia acontecido antes! – e, por ela, apagou a existência de dois ‘Erasi’ que ceifaram a sua vida antes. Então, os superiores ficaram desgostosos com um anjo apagando a existência de seus iguais, mesmo que seja o excremento do excremento na hierarquia, e transformaram-no nisso.”

“Num excremento, igual à eles.” – concordou. – “De grande Arcanjo, com 28 pares de asas, fui transformado em um mero anjo de um par apenas. E Raphael, meu braço-direito, virou o novo Príncipe das Virtudes...”

“E, então... Você veio rastejando para cá?” – ergueu a sobrancelha. – “Estamos em Hades, não é?”

“Estamos.” – concordou. – “E, bem, não somos muito diferentes de Nephelim, caro Rem. Tudo que eu fiz foi me apresentar como o Caído que sou para Lúcifer. Ele me aceitou de bom grado consigo.”

“...Ou seja: você estava com ele esse tempo todo.”

“Precisamente.” – sorriu Suriel. – “Mas, de vez em quando, eu vou à superfície, como fiz com Mashiro Himeno, para me divertir um pouquinho.”

Remliel (que agora começava a ignorar o apelido, já que não adiantaria nada reclamar se o outro insistia sempre) preferiu, em silêncio, olhar ao seu redor uma vez mais, gravando em sua memória os detalhes do local, ao invés de repassar mentalmente as horas de sua tortura mais uma vez.

Mesmo não havendo nenhuma brisa ou ar, era como se um ar frio ainda pudesse passar por ali. Não era uma sensação neutra, que passa despercebida; trazia ainda aquele arrepio estranho. Remliel não podia dizer do que era aquilo. Quem sabe, efeito de estar no próprio Hades. A energia sinistra dali era mesmo imensa.

“...Ele quer falar com você.”

“Lúcifer?” – ergueu a sobrancelha.

“Sim.” – assentiu. – “Por isso, trouxemos você para cá.”

“...Ah. Claro!” – suspirou o anjo. – “Estamos no Gehinnam...?” [7]

Suriel riu. – “Parece que esses dez meses de descanso fizeram mal à sua capacidade de se reconhecer nos lugares.”

“Dez meses...” – repetiu, passando a mão pelos cabelos.

“Consegue se levantar, Rem?” – o garoto de fios negros deu um passo para trás, como quem está pronto a fazer uma longa caminhada.

“Sim.” – mesmo com aquela sensação de estranheza e tontura, conseguiria, tinha certeza, acompanhar o ritmo dele. – “Para onde vamos?”

“Levá-lo para ter uma pequena conversa com o anfitrião.” – sorriu.

Remliel decidiu ficar em silêncio após ouvir aquilo. Pensar no grande traidor Lúcifer não agregaria nada de bom.

Ao invés disso, algo que o perturbava bem mais era aquilo. Aquele fato... Dez meses? Sehriel o fez demorar dez meses para se recuperar?...

Odiava admitir, mas alguém que fazia isso à um anjo merecia seu total respeito. Provavelmente, este era o poder da ira de um ‘Erasi Primordial’. Não era para menos que o próprio Lúcifer o estava mantendo no Gehinnam. É claro, isto ele apenas supôs naquele momento.

Mas, quanto à um anjo de asas vermelhas e sem nenhuma utilidade... Por que ele estava ali, então? Podia até entender que Suriel, como esteve com ele por um certo tempo, fosse o mais indicado para avisá-lo das novidades quando acordasse, mas... Mesmo assim, algo não fazia sentido ali.

Remliel procurou alguma resposta que fizesse sentido. Mesmo assim, a cabeça enevoada ainda dava voltas, latejando em dor. Os resquícios do sofrimento, oito meses depois, ainda mordicavam-se seus músculos.

“Ei...” – com um sobressalto, o rapaz lembrou-se de algo que o estava incomodando desde antes, mas que ele, até então, não sabia identificar o que era. – “Onde está minha foice?”

O pequeno Suriel fechou os olhos, numa compreensão silenciosa.

“Está com os superiores. Eles ficaram muito curiosos...” – explicou, num tom de quem pede perdão por aquilo. – “...Afinal, faz tempo que não viam nada com Quintessência, já que esse um elemento do próprio Empyreus.” [8]

“A morada de Deus...” – concordou.

(Ah, ele teria umas boas coisas para dizer para o grande anjo Lúcifer, como por exemplo, não pegar as coisas dos outros sem permissão).

Distraído, Remliel não prestou muita atenção para o caminho que estavam seguindo. De uma forma muito perturbadora e estranha, todo aquele lugar parecia bastante igual. Os mesmos corredores, os mesmos grossos tecidos escarlates, e tudo parecia acabar num grande vazio no teto, quase como se ele olhasse para um céu negro e sem nenhuma estrela.

Um som agudo passou por seus ouvidos, mas ele não sabia identificar de onde ou do quê aquilo era. Porque tudo parecia tão interminável ali dentro...

Ele deixou, claro, de pensar naquilo quando ele e Suriel atravessaram mais uma cortina rubra. O salão que veio a seguir, seguindo o mesmo estilo, com uma abóbada que levava ao vazio negro, mas que parecia ser feito inteiramente de pilares de um material semelhante ao mármore. Remliel, intrigado, percebeu que eles andavam sobre uma superfície que formava ondas a cada passo deles; como andar sobre a água. O negro cobria tudo, mas mesmo assim, era possível ver a seu próprio reflexo naquele material que, se não fosse estranhamente espelhado, podia muito bem ser mármore escuro.

Erguendo a sobrancelha, encarou a si próprio. Estava vestido de uma forma muito semelhante ao próprio Suriel, que mantinha os olhos sempre focados no caminho à sua frente, alheio à surpresa silenciosa do outro. Então, Remliel pensou, podia considerar aquilo uma vestimenta vinda do Gehenna. Quando, quem e como puseram essa roupa nele, não queria nem saber, sinceramente. E sua foice não estava em suas costas ou em suas mãos.

Tirando aqueles detalhes, de resto, era o mesmo Zansatsu no Tenshi. Os mesmos cabelos loiros, volumosos e de aparência macia. As mesmas franjas incômodas (ao menos, perdera a mania de ficar soprando-as para cima). A mesma compleição de físico alto e bem-feito (aliás, ficar perto de Suriel era atestar como ele era alto ou como o garoto era baixo). A mesma pele branca.

E, afinal, os mesmos olhos azuis, límpidos... Que se pareciam muito com os do ‘humano’ Himitsu Isono.

Uma onda de desgosto o assaltou automaticamente ao pensar nisso.

Mas foi substituída por surpresa, ao encarar seus olhos um pouco mais atentamente e perceber, então, que aquele cenário era... Uma ilusão?

Era como estar andando sobre água negra. Um lugar completamente negro...

Igual àquele lugar onde choviam penas, onde quando os anjos entram na mente dos humanos e falam com eles pela primeira vez, antes de receberem suas formas ‘humanas’, com as quais protegerão e cuidarão daquela criatura até ela morrer.

...Lembrava-se de quando falou com Arda. Era o mesmo cenário.

Estrangulando a pergunta antes que a deixasse escapar, Remliel preferiu guardar para si mesmo suas dúvidas. Mais tarde, talvez, teria muito tempo para vê-las respondidas.

“Chegamos, Rem.” – Suriel avisou-o, despertando-o de suas conjecturas.

A mão do anjo-garoto tocou no tecido pesado, afastando-o e revelando um outro lugar, completamente diferente daquele salão feito de nada e reflexos de água.

Em termos humanos, podia muito bem ser um típico ‘laboratório de cientista louco’. Havia uma óbvia confusão de tubos e fios. Eles estavam em todo lugar; no chão, como raízes se sobressaindo. Nas paredes. O vazio do teto não indicava nada, mas os fios pareciam seguir aquela imensidão, como se eles fossem tão infinitos quanto.

A parede norte era como uma enorme imitação de um relógio antigo. Rodas de metal com pontas serrilhadas pareciam brilhar intensamente, como era típico da propriedade do metal, com a luz rosada que era a única iluminação dali. Outras peças menores pareciam até complementos daquelas óbvias rodas, fazendo tudo aquilo parecer com um grande quadro Abstrato.

Tudo, é claro, apontava para justamente aquilo que mais chamava a atenção em tudo aquilo, muito mais que a óbvia surpresa daquela maquinaria.

Uma mesa. Um conjunto completo de chá, com tudo que havia direito, mais três xícaras. Três cadeiras. Biscoitos madeleine. [9] Parecia, se lhe perguntassem, até um típico chá-da-tarde britânico.

É claro, era estranho, mas não era para aquilo que Remliel estava olhando.
Era para aquela coisa atrás dessa mesa...

A grande roda no centro. Aquela que emanava a intensa luz rosada que ia ficando mais pálida a medida que se distanciava.

O desenho se parecia com uma rosa misturada com a roda de uma bicicleta. A luz era de um rosa delicado, mas escuro. Estava preenchido completamente com aquela luz. Todos os fios, os tubos, a água, tudo estava acoplado, grudado, ligado de alguma forma àquela peça central. Se não fosse até mesmo perturbador, seria uma visão muito bonita, admitia Remliel.

Aquela roda girava calmamente, e a água de um rosa mais claro que a luz misturava-se e seguia, a partir de então, por um tubo único. E ia se misturar, então, àquela peça em forma de caixão que brilhava ainda mais intensamente.
A parte de dentro daquela ‘mortalha’, o loiro percebeu, estava preenchida por um líquido tão rosa quanto a luz, que deixava entrever bolhas, de vez em quando. E o tubo único que estava conectado ali se transformava em três fios ligados às costas daquela... Pessoa?

...Havia, sem dúvidas, uma pessoa lá dentro da água rosa.

Não. Não era uma pessoa.

Era um anjo.

“Seja bem vindo ao Gehinnam, Remliel, o Anjo do Massacre.” – uma voz o interrompeu, vindo de algum lugar que ele não podia definir. – “Parece que gostou do que viu. Estou errado?”

Das sombras com pálidos reflexos rosados, uma figura tão alta quanto o próprio Remliel apareceu.

“...Trouxe-o até aqui como o ordenado, Lúcifer.” – Suriel afastou-se do loiro, numa mesura polida.

“Muito obrigado, Suriel. Pode se sentar.” – ele sorriu de leve.

Ainda de pé, entre o surpreso e o incrédulo, Remliel observou o próprio Lúcifer andar calmamente até ele.

Ele era pálido como uma boneca, mas toda aquela luz lhe dava um tom um pouco mais saudável à pele. Usava roupas negras, com alguns detalhes em dourado, outros em vermelho-escuro e num tom mais avermelhado de marrom. Uma capa caía-lhe pelos ombros, arrastando-se no chão, atrás dele.

O loiro dos cabelos do grande anjo do Inferno era mais escuro que o de Remliel. Muito mais áureo, até meio alaranjado. O cabelo, comprido até abaixo dos ombros, presos por uma fita vermelha em um rabo-de-cavalo baixo que era puxado mais para o lado esquerdo da cabeça, era claramente ondulado; se fosse um pouco mais, já seria considerado cacheado. E aqueles olhos, mesmo tendo a luz rosa refletindo-se neles, eram claramente vermelhos; como se fossem feitos de sangue.

De fato, as lendas do céu não eram falsas: Lúcifer, que um dia foi considerado o mais confiável dos anjos, mesmo não o sendo mais, ainda era o mais belo deles. O ar de superioridade que ele exalava, mesmo havendo também uma espécie de suavidade em torno dele, era tão gritante quanto uma erupção, talvez.

“Você é Lúcifer, o Kaki no Tenshi, [10] correto?”

“Certíssimo.” – ele assentiu. – “Aquele que um dia, foi o preferido de Deus. Aquele que liderou uma revolução nos Céus e foi banido dos mesmos com seus soldados. Sim, sim... Eu mesmo.”

Desviando os olhos, apenas para procurar as palavras adequadas para lhe perguntar aquilo, Remliel percebeu que, afinal, não havia o que dizer senão a própria verdade.

Respirou profundamente:

“Onde está minha foice?” – aquela era sua arma. Não podia separar-se dela.

“Ah, aquela...” – o ex-Grande Anjo pareceu lembrar-se. – “Sim, sim... Está por aqui, já vou devolvê-la. Enquanto isso, sente-se conosco, Remliel. Vamos tomar um pouco de chá. Deve estar cansado.”

“...Estive descansando até agora.” – ‘graças ao maldito Sehriel’, quis emendar. Mas, aparentemente, Lúcifer já devia saber disso. – “Não preciso de chá.”

“Mas eu mesmo fiz essas madeleines e todo o chá. Tudo para parecer uma mesa inglesa, que eu considero a melhor em termos de recepção.” – ele dizia, passando a mão por entre os fios que caíam em seu ombro. – “Não vai me fazer essa desfeita, não? Coma conosco.”

Estranho. Remliel sentia mais respeito por Sehriel, agora, do que pelo próprio Lúcifer. Mesmo exalando superioridade, aquela criatura tinha algo que parecia fazer todo e qualquer um confiar estranhamente nela, tratá-la como um semelhante; quem sabe, até mesmo abrir-se para ela. Isso, definitivamente, era um dom perigoso. E impressionante, precisava admitir.

Com um suspiro, o anjo das asas rubras sentou-se com Suriel e Lúcifer àquela mesa, enquanto o anfitrião do Gehinnam servia-lhe o chá de aroma gostoso.

Suriel mordiscou um biscoito, constatando que o dom culinário de seu superior estava intocado, mesmo depois de tantos séculos sem visitas.

“Muito obrigado.” – agradeceu, com um sorriso agradável. – “Remliel, quer mais uma? Pode pegar.”

Um anjo não precisava comer...

Qual era o sentido, então, dele servir aquilo tudo?

“Por que não pulamos as formalidades e vamos logo ao que interessa?” – Remliel impacientou-se. – “Se o próprio Anjo do Fogo, Lúcifer, o Caído mais temido de todos, está se apresentando pessoalmente a mim, deve ter um motivo muito importante para tal. O problema é: não consigo pensar em nada que eu tenha feito que você já não possa ter feito milhões de vezes melhor; não há nada em mim que chame sua atenção.”

O anfitrião ouviu a tudo calmamente, bebendo seu chá sem exaltar-se ou piscar em nenhum momento.

Suriel também parecia, assim como Lúcifer, estranhamente compreensivo diante daquela falta de modos e toda aquela pressa. Talvez porque, num passado muito distante, também já tenha se sentido daquela forma; impotente e fraco, como um lobo ômega diante dos grandes alfas.

Após o suspiro frustrado de Remliel, que indicava que ele já não falaria mais nada, o anjo superior loiro depositou delicadamente a xícara sobre o pires.

“De fato, não há nada em você, Anjo do Massacre, que me desperte atenção.”

“Então...”

"...Ou melhor: não havia nada."

Suriel deu um rápido sorriso, que logo desapareceu (ou ele o disfarçou bebendo rapidamente a sua xícara).

“Eu soube por meu caro Suriel...” – apontou-o, perto de si. – “...Que você, meu caríssimo, andou brigando com Sehriel, o Anjo da Justiça, por alguns milênios. É mesmo verdade?”

Engolindo em seco (as fofocas corriam rápido assim mesmo ou Suriel era mesmo o grande fofoqueiro das massas por ali? Algo dizia que a segunda opção fazia um mar de sentido a mais!), o loiro comeu outro biscoito, apenas por reflexo.

“...Não posso negar.” – deu, enfim, de ombros diante da impossibilidade de mentiras. – “Eu e Sehriel temos uma rixa de longa data.”

“Posso saber desde quando ou estarei me intrometendo demais?”

“Desde o século XII, precisamente, o ano de 1098.” – tom neutro até demais.

“Este foi o ano em que Sehriel, naquela época ainda um ‘Erasi Primordial’ até o último fio de cabelo, matou o humano chamado Arda, correto?”

“Sim. Desde então, eu ando punindo-o por este acontecimento.”

Lúcifer sorriu, aparentemente fascinado com o resumo da tragédia. – “Mas que interessante... É como se fosse o próprio Nêmesis!”

Remliel ergueu a sobrancelha:

“Não vejo como isso é motivo o bastante para trazer ao Gehinnam um simples anjo de um par de asas.”

“De fato, nem de perto é um motivo útil.” – concordou o outro loiro. – “Mas, por favor, olhe para sua direita, caro Remliel...”

Ah, sim. À sua direita, onde ele teve a impressão de ter visto um anjo naquele tanque em forma de caixão.

Fazendo o que lhe foi recomendado, Remliel virou-se, focalizando a luz intensa e rósea. Não precisou cobrir os olhos; um anjo não era ferido por aquela intensidade, apesar de um humano não ter a mesma sorte. E, com indiscutível susto, percebeu que conhecia aquela figura dentro daquele lugar.

Uma jovem moça estava adormecida lá dentro. Seus cabelos vermelhos como as asas do anjo, retos, perfeitamente alinhados como os cabelos das orientais do passado, sem nenhum fio rebelde, dançavam misteriosamente, num ritmo inaudível à eles, naquela água cheia de bolhas que não vinham de nenhuma respiração. Eles provavelmente viriam até o ombro dela se ficassem parados A pele parecia estranhamente mais rósea naquela água; mas era imaculada e perfeita.

Remliel sabia que se ela abrisse os olhos... Eles seriam vermelhos. Vermelhos como seus cabelos. Como as asas dele. Como os olhos de Lúcifer. Porque, afinal, ele conhecia aquela moça. Ela era a forma real de uma criatura que ele vira muitas e muitas vezes, em incontáveis situações. As asas dela, sem dúvidas, eram da mesma cor daquelas luzes todas. Isso porque ela era...

“...Sehriel?!” – ele levantou-se, num salto. – “O que... O que a Sehriel está fazendo ali dentro?!”

“Fique calmo, Rem.” – o ex-Arcanjo de olhos verdes sorriu. – “Ela não vai sair daí tão cedo e também não vai atacá-lo. Pode se sentar e comer com calma. Temos muito o que falar e muito tempo também, não é?”

“Precisamente, caro Suriel.” – concordou o anjo loiro. – “Porque, afinal, o motivo pelo qual quis que Remliel se apresentasse é justamente ela.”

“...Por causa de Sehriel?”

Subitamente, a história ganhou muito mais sentido do que tinha há alguns segundos atrás. O anjo sentou-se outra vez, bebericando o resto de seu chá. Fechando os olhos e concentrando-se, Remliel passou em revista tudo o que lhe aconteceu nos últimos... Dez meses?

O Anjo da Justiça perdera outro humano para o Anjo do Massacre. Uma menina japonesa chamada Maiko Isono. Suriel estava lá também, ajudando um hanyou petulante. Iriel também (mas, aparentemente, ele não tinha nada a ver com aquilo). Remliel só queria saber de Sehriel, e caçou-o como sempre fazia.

Então, quando ele matou a humana que andava com ‘Himitsu Isono’, Sehriel finalmente enfureceu-se, liberando de si próprio mais de mil anos de passividade. Foi uma explosão memorável de ódio; e, para Remliel, uma de dor. E, assim, o anjo loiro fechou seus olhos para tudo (talvez porque a montanha de carne disforme na qual ele foi transformado não tivesse olhos), e só sentia. Sentiu alguém o levando, sentiu o silêncio, sentiu por muito tempo... E acordou em Gehinnam, nove ou dez meses depois daquele dia.

“...O que quer que eu faça, Lúcifer?” – perguntou, enfim, passando a mão nervosamente por seus cabelos.

“Por enquanto, nada. Mais tarde, meu caro, é que seu papel será importante.”

“Explique-se.”

Suriel deu outro sorrisinho. Definitivamente, aquilo estava irritando Remliel; jurava que se o garoto risse de novo, iria quebrar a cara dele.

“Já ouviu falar... No Projeto?”

Vasculhando suas memórias em busca de qualquer informação, ele negou.

“Não, nunca ouvi falar disso.”

“Basicamente, é algo que está comendo nosso tempo e esforços desde a época do Messias.”

“...Há mais anjos envolvidos nisso?” – não era uma surpresa, é claro, mas deviam ser criaturas tão poderosas e influentes quanto Lúcifer, muito provavelmente, se olhasse para todo o perfeccionismo que as paredes e os tubos exalavam.

“Muitos, meu caro. Acredite, muitos mesmo. Sataniel [11], Samael e eu estamos no comando.” – Lúcifer explicou, após servir-se de mais chá. – “Para ter uma idéia, o Projeto é tão importante para todos nós que eu mandei Namaah para uma outra dimensão, num outro lugar e num outro tempo, especialmente para coletar algumas certas coisas necessárias para ele.”

Assentindo, Remliel desviou os olhos para ver, de relance, o rosto de Sehriel mais uma vez.

Ela estava adormecida dentro daquela água cor-de-rosa. Indefesa. Rendida. E muito, muito plácida. Todo o ódio e o sofrimento estavam apagados de seu rosto; era como se ela fosse apenas uma boneca ali dentro.

“Ora...” – Lúcifer interrompeu-o, de repente.

“...O que foi?” – Remliel ergueu, desconfiado, a sobrancelha.

“Fico realmente surpreso (de uma forma grata) que você não esteja assim, assombrado. Parece estar lidando com isso de forma muito natural, caríssimo. Isso me agrada.”

Bem, não podia negar que estava ainda surpreso, mas...

“De que adianta lutar contra a realidade, não é?” – deu de ombros. – “O fato é que eu estou no Gehinnam, tomando chá e comento biscoitos humanos com Suriel e Lúcifer. Preciso aceitar e ver o que posso recolher de informação a respeito.”

Suriel sorriu. – “Eu disse, Lúcifer. Ele é muito centrado quando quer.”

“...Quer dizer que também disse que sou imaturo?” – vontade subitamente assassina de arrancar o pescoço do moreno como Sehriel fizera consigo.

“Bom, você mesmo disse, né? Não podemos lutar contra a realidade.” – riu.

“...”

Obviamente ignorando a briguinha, Lúcifer sorriu para si próprio. – “Estou satisfeito por saber que Remliel é alguém com quem podemos contar.”

O outro bufou.

“Quem disse? Eu posso ser um informante do Céu, por exemplo, que fez toda essa cena para que você me recolhesse.”

“Ah, não, meu jovem...” – o ex-Grande Anjo riu. – “...Como uma ovelha negra, eu também sinto o cheiro de colegas desgarrados de longe. Você, caro Remliel, definitivamente fede a traidor. Enrustido, sem dúvidas... Mas traidor.”

Ah, sim. Remliel, o Anjo do Massacre, nunca verdadeiramente ligou para o Heofon [12] e suas regras...

Não diferia, de fato, de um traidor. Quem sabe, mais para apenas alguém que não tinha lado. Mas entre um neutro e um causador de males, era apenas um passo, um piscar de olhos de diferença.

“...E por isso...” – Suriel concluiu, colocando um madeleine inteira na boca. – “...Tem carta branca pra saber do Projeto, Rem.”

Lúcifer sorriu abertamente.

“E, garanto-lhe, você vai adorar estar nele. Afinal, ele é obviamente muito vantajoso à você. Ou melhor... À todos que já perderam alguém para a Morte.”

O rosto de Arda passou quase que como um raio por sua mente.

“...O que quer dizer com isso?” – apertou os olhos, claramente irritado.

“Vou lhe contar um pouco do Projeto. Se interessar-se, gostaria de se juntar à nós, Zansatsu no Tenshi, Remliel?” – Lúcifer fez um meneio de cabeça, apesar de seus olhos comunicarem plenamente o quanto aquele era um assunto sério. – “Você tem o direito da escolha.”

“...Tudo bem. Apenas fale mais sobre o Projeto.”

Servindo chá para os três de novo, o loiro mordiscou uma biscoito, bebericando um pouco de sua xícara. Permaneceu em silêncio por mais um tempo, até que respirou fundo e iniciou-se.

“Há muito tempo, eu e meus diletos companheiros fomos expulsos do Heofon. Viemos parar, então, aqui em Hades. Foi muito triste. Estávamos queimando em ódio. Sataniel, Samael... Todos queriam vingança. Mas, ao contrário deles, eu não queria. Estranhamente, minha vontade não era de estraçalhar Deus. Nunca foi, é verdade.” – ele tinha um sorriso no rosto enquanto contava aquilo, mas seus olhos não pareciam sorrir. – “Eu queria só Seu lugar. Era isso. Porque Deus é só uma criança brincando com um mundo grande demais; é irresponsável demais. Eu queria consertar tudo o que Ele havia feito. Na época, claro, eu era só um anjo idealista e temperamental... Entretanto, por mais que eu compreenda um pouco melhor meu caro Senhor hoje em dia, ainda sim, quero Seu lugar. Porque não concordo com Seu reinado. E, se a Democracia não se faz valer, eu farei uma Revolução.”

“Pretende invadir o Empyreus?” – Remliel arriscou.

“Precisamente.” – concordou Lúcifer.

...E isso fazia ainda menos sentido. Por que um anjo como ele iria precisar de simples excrementos de um par de asas?

“Continue. Quero saber mais.” – endireitou-se na cadeira.

Suriel desviou o olhar, encarando o rosto adormecido de Sehriel. Talvez, porque ele já houvesse escutado aquela história muitas vezes. Talvez, porque simplesmente tivera vontade de fazê-lo.

“Então, eu e meus colegas decidimos planejar uma Revolução. Uma segunda Guerra Santa, quem sabe... Proporções épicas, de fato.” – assentiu para si mesmo, como quem imagina o cenário. – “Mas, antes disso, não podíamos cometer o mesmíssimo erro do passado. Porque, se perdêssemos, nossa condenação seria muito pior do que nos tornarmos ainda mais Caídos.” – ele deu um risinho irônico. – “Por isso, criamos o Projeto. Nosso plano B. Com ele, poderíamos invadir o Heofon e tomarmos o Empyreus sem preocupações. Mas, é claro, passando a fase da raiva inicial, do planejamento maníaco e criação, agora está na hora da fase de testes. E, possivelmente, de melhoramentos. E, para isso, nós vamos precisar da ajuda de alguns colegas... Inocentes cobaias.”

“...Ou seja: Sehriel é uma destas cobaias?”

“O primeiro anjo que pegamos para testar o sistema.” – sorriu.

Alguma coisa não estava cheirando bem naquilo tudo. Remliel sentia. – “Antes disso, vocês usavam...?”

“Humanos.”

Ah. Era isso que não parecia encaixar-se.

A imagem de Maiko Isono, por alguma estranha e inexplicável razão, passou-lhe pela mente, assim como outrora foi a de Arda.

“Onde está aquela humana que estava com Sehriel?”

“Que humana?”

“...A Maiko Isono, Lúcifer.” – Suriel sussurrou.

“Ah, a jovem oriental.” – o loiro pareceu reconhecê-la em suas memórias. – “Foi uma das nossas primeiras cobaias humanas.”

Erguendo a sobrancelha, desconfiado, Remliel largou a xícara que ia pegar no mesmo instante.

“Usaram o corpo dela para...”

“...Foi um total fracasso, é claro.” – suspirou, pesaroso. – “Namaah ainda não voltou. Enviamos ela para um outro lugar e um outro tempo, com a ajuda de uma certa mulher, justamente porque precisamos descobrir um jeito de fazer corpos humanos durarem um pouquinho mais do que o usual, mesmo depois de mortos.”

Um fracasso... Humanos... Uma nova Revolução.

Quem sabe, porque era um plano tão distorcido quanto ele. Quem sabe, porque simplesmente era inteligente o bastante para compreender.

Mas, de alguma forma, finalmente, as coisas começavam a ter um sentido. Uma coisa ainda disforme, tênue, muito longe... Mas, lentamente, uma estranha forma ia se projetando.

“...Ninguém do Primum Mobile vai pensar em procurar anjos no Assiah.” [13]

Suriel sorriu. – “Bingo.”

“Você pretende se infiltrar e aos outros Caídos no Assiah.” – repetiu, incrédulo diante daquilo. – “Não faz sentido algum. Seriam Nephelim. Caídos. Os ‘Erasi’ e os ‘Construxi’ que andam à luz do dia iriam reconhe...”

Parando na mesma hora, o loiro engoliu em seco.

“Bingo?” – riu de novo o moreno.

“...Diga que o que eu estou pensando é só uma loucura.”

“E no quê está pensando, caro Remliel?” – Lúcifer sorriu, num misto de diversão e superioridade.

“Vocês vão se tornar humanos.”

Lúcifer apenas continuou sorrindo. E, então, estendeu-lhe a cesta de doces.

“Quer mais madeleines?” – perguntou-lhe, num tom bastante calmo.

“Não. Quero uma resposta, agora.” – praticamente rosnou aquilo.

“Suriel?” – voltou-se para o garoto.

“Ah, sim. Muito obrigado.” – aceitando com o sorriso tão calmo quanto o do outro loiro, o ex-Arcanjo enfiou-a inteira na boca de novo.

Bufando, Remliel soprou a franja para cima (maldição, seu tique retornou?).

“...E então?” – impaciente.

Brincando com o tecido da capa que caía-lhe nos ombros, muitíssimo paciente, ao contrário do outro loiro, Lúcifer parecia procurar a resposta que mais achava adequada à Remliel. Seu rosto, pensativo, parecia ainda mais belo do que era normalmente.

“Não podemos abandonar nossa matéria inorgânica, caríssimo.” – explicou, por fim, o ex-Supremo Anjo. – “Tampouco, podemos colocar toda nossa memória em um só corpo. São milhões de anos; nenhuma mente suportaria o colapso. Por isso, nós apenas selecionaremos as memórias mais importantes. A partir delas, criaremos um corpo. Primeiramente, tentamos implantar em um corpo humano já existente... Mas, como pode perceber, foi um fracasso. Então, quando Namaah voltar daquele mundo, teremos mais condições de criar um novo corpo, totalmente orgânico, com memórias inorgânicas. Um perfeito anjo mortal. Ele vai carregar em si as memórias que você desejar, um pedaço de sua própria essência e, quando morrer, irá para o Elyssium, assim como qualquer mortal.”

“...É claro que vamos ter de fazer ainda alguns testes mais com outros infantes, mas não há dúvidas.” – Suriel também parecia sorrir. – “...Anjos poderão, enfim, alcançar o Elyssium.”

“E estamos guardando a essência e memória de Sehriel, um importante item, para ser o primeiro anjo a experimentar esta transição.”

Remliel pensou em pegar aquela xícara. Pensou em enchê-la de chá e beber de novo, mas as mãos não se moviam.

Alguma coisa em si estava borbulhando daquele jeito que sempre parecia se agitar quando ele encontrava Sehriel. Como se fosse uma nova manhã; um novo futuro; algo completamente excitante.

Encarou, uma vez mais, aquele anjo de cabelos ruivos que dormia dentro do tanque. Ele perderia sua santidade, mas em troca, se tornaria... Um humano.

E, eventualmente, alcançaria a tão desejada morte.

...Poderia encontrar humanos do outro lado. Todos os outros que já se foram.

“Meu plano é simplesmente fazer uma parte humana de mim mesmo, colocando algumas memórias pertinentes o bastante neste corpo. Assim, se por acaso este meu corpo inorgânico falhar, eu terei uma segunda chance.” – Lúcifer explicou. – “...É uma explicação simples, meu caro. Há muitas coisas que ainda precisamos entender. Mas é o suficiente para que você entenda: essa é uma nova era.”

...Uma era onde anjos se tornavam humanos.

“E, se isso der certo com Sehriel...” – Remliel sussurrou.

“...Você também poderá transferir-se para um corpo humano, é claro. Não faço objeções. Este é, então, nosso trato.” – Lúcifer sorriu, satisfeito.

“É sua chance de rever o tal Arda, Rem.” – Suriel concordou.

Ah, sim. Arda...

Os olhos azuis de Remliel, sem que pudesse se controlar, encararam Sehriel outra vez. Queria que ela pudesse abrir os olhos. Queria que pudesse entender aquilo.

Lúcifer armaria uma nova Revolução no céu. Mas nada daquilo lhe importava. O que lhe chamava a atenção era aquilo: algo inorgânico poder tornar-se orgânico. Poder viver como um humano normal e idiota, apenas com algumas memórias. Apenas com a essência.

E alcançar o Paraíso sem ser ricocheteado pelo mesmo. Poder mergulhar no Lethe e observar a grama verde do verdadeiro céu das boas almas. Ah, sim...

Aquela era a doce utopia de todo o ‘Construxi’...

Lúcifer, brincando com seus cabelos, dirigiu-se à ele. – “Pretende, então, unir-se à nossa causa, Remliel?”

Quando aqueles olhos se abrissem de novo, eles já não seriam olhos de um anjo que, um dia, matou a pessoa que o loiro mais amou.

Seriam os olhos, muito provavelmente, de um bebê mortal.

...E só então ele percebeu que aquela era a última vez que estava vendo aquele anjo imortal de róseas asas, de fato.

“Sim, mas...” – sussurrou. – “Eu vou querer mesmo minha foice de volta.”

Lúcifer riu. – “Certo, vou devolvê-la agora.”

Ah, sim.

...Remliel tinha vencido.

...Mas quem riu por último foi Sehriel.

 

 

Fim...?


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Notas finais do capítulo

[1] Gleich (ou Sama/Aequalis): “Todas as coisas do mundo têm seu preço. Se ganhar alguma coisa, então deve pagar-se o preço por ela. Mas deve ser um preço justo, sem faltas ou excessos. Caso contrário, aparecerão danos no corpo, na alma e no destino.” – Yuko Ichihara, xxxHolic.

[2] Na mitologia grega, é um Titã, filho de Iápeto e Ásia. A história diz que ele quem criou os homens e os presenteou com o fogo sagrado dos deuses, fazendo os mesmo enfurecerem-se e acorrentarem Prometheus à uma pedra, onde todos os dias uma águia vinha comer-lhe o fígado, que se regenerava à noite.

[3] Em inglês, essa cor é conhecida como ‘Viridian’.

[4] O hebreu original para o nome ‘Caim’. Junto com Hevel (Abel), são os primeiros filhos de Adam e Hawwa (Adão e Eva). Na Bíblia, é dito que Caim mata seu irmão Abel e Deus o pune dizendo que quem o matasse iria ser punido sete vezes, colocando nele uma marca para que todos o reconheçam e fiquem longe dele.

[5] Suriel (e, em verdade, Sehriel também – essa autora tosca só descobriu isso agora... u.u) são alguns dos outros nomes do Arcanjo Sariel (para mais detalhes, ver sua página – somente em inglês – na Wikipédia).

[6] Classe angélica que tem como principal missão, além entregar a mensagem do Criador sem nenhum obstáculo, manter a ordem do Cosmos.

[7] Nome original do Gehenna, local conhecido na tradição cristã como sendo uma parte do Inferno para onde as más almas vão após a morte. Dizem que por sua extensão corre o famoso Lago de Fogo. De acordo com o Livro de Jeremiah (7:31 até 32:35), o Gehinnam é literalmente o Vale de Hinnom, não apenas conectado à Terra através dele.

[8] Também chamada de ‘Empyrean’, está localizado no décimo primeiro firmamento celestial. Descrita por Aristóteles como sendo ocupada pelos elementos primordiais do Fogo e da Quintessência.

[9] É um doce francês que se parece com um bolinho. Tem um gosto parecido com brioche, levemente aromatizado com limão.

[10] “Anjo do Fogo”, em japonês. Vale lembrar, porém, que ‘kaki’ (火気) também se refere às armas de fogo.

[11] É mais conhecido como ‘Shaitan’ ou ‘Satã’ (seu nome significando ‘O Adversário’), a personificação do mal, e erroneamente confundido com o Demônio. A tradição judeu-cristã considera-o, porém, um Anjo Caído. O Livro de Enoch também o refere como Satariel.

[12] É como é chamado, em hebreu original, o “Paraíso” (“Céu”).

[13] Termo originário do mangá “Angel Sanctuary” e nome de um dos Arcos do mesmo, que designa o Mundo dos Homens.



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