Esperanto:solfege escrita por Petit Ange


Capítulo 24
Tom LX & LXI: A Última Canção V e VII


Notas iniciais do capítulo

Chegamos, enfim, ao último capítulo da fanfic. O próximo será o Epílogo, e então nos despedimos oficialmente de Esperanto:Solfege.

Quero muito agradecer aos leitores; Stormy, Kane-ou, Miyu-chan, Belle-chan, Josy, Lucy-mamãe, e enfim, a todos que estiveram sempre apoiando a fic neste um ano (e três dias) de existência. ^___^

Se hoje ela pôde ser finalizada, é tudo graças a todos vocês. Realmente, obrigadíssima ^__^
*Deixando para falar as coisas mais importantes no epílogo. 8D*



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Esperanto:Solfege
Petit Ange

 

Tom LX: A Última Canção V.

Encarando seu próprio sangue nas costas da mão, Remliel prendeu a respiração diante daquela idéia que a assaltou.

Sim. Ela soube naquele instante que, na verdade, foi a culpada por isso.

Engoliu em seco, sentindo uma vez mais aquele gosto conhecido (e ainda inacreditável) em sua boca.

Se Sehriel estava assim tão forte...

Não podia ser culpa de ninguém, além dela.

Se ele estava ali, reagindo...

Foi ela quem o fez fazer isso.

Porque seu desejo assassino ensinou-lhe lições que o outro não deveria ter aprendido. E enraizou ainda mais profundamente, se isso fosse possíveis, outras lições que ele já tinha em si.

A verdade era que Sehriel e Remliel era seres completamente diferentes.

Não em personalidade. Isso já era tão certo e óbvio que sequer merecia ser contado. Era a própria essência.

Remliel nascera como um ‘Construxi’. Um anjo que acalenta a vida.

Sehriel já tinha em si, desde o começo, o desejo assassino de um ‘Erasi’.

O que Remliel nascera aprendendo a fazer era ter paciência, amar incondicionalmente o ser que escolhesse e, mais do que isso, lutar e se debater com toda sua energia pela frágil vida que havia decidido proteger.

Toscamente, poderia comparar aquilo ao natural instinto materno das fêmeas.

Era isso que nasceu sabendo fazer. Sua personalidade, suas outras habilidades... Tudo isso veio depois, veio a partir das suas ciências primordiais.

Sehriel, por outro lado, teve um destino completamente oposto.

Ele nasceu aprendendo a tirar vidas, a ter prazer com a dor e o sofrimento, a odiar toda e qualquer forma que rastejasse, respirasse, ocupasse espaço na superfície plana da Terra. Tinha em si um impulso natural em destruir.

De alguma forma, era como ter nascido desde o princípio como um psicopata.

Assim, do mesmo jeito que ela, tudo o que ele aprendera foi baseado em seu instinto, foi a partir dele.

Um dia, porém, de uma forma completamente inexplicável, um ‘Erasi Primordial’ adquiriu consciência. Não era só mais uma máquina de matar.

Para os Anjos Superiores, aquilo sequer era de seu conhecimento. Mas, para os Anjos que andavam com os humanos naquela terra, foi uma notícia perturbadora. Porque, de alguma forma... Trouxe a esperança.

Mesmo os assassinos que existiram apenas para este propósito podiam, então, ter uma consciência. Podiam policiarem-se?

É claro que podiam.

Isso porque ‘Construxis’, que nasceram sabendo amar a vida orgânica, também se tornavam ‘Erasis’.

E empunhavam armas que ceifavam a vida dos outros.

Era, quem sabe, isso que os tornava tão iguais e tão diferentes ao mesmo tempo, igualzinho à definição atual de ‘Nêmesis’.

Sehriel havia renegado sua natureza cruel.

Remliel havia renegado sua natureza afável.

E ali estavam hoje: um destruindo tudo que um dia amou e outro amando tudo que um dia destruiu.

Mas aquele era o problema...

E ela o percebeu tarde demais para poder consertar.

Sehriel era um ‘Erasi’. Muito mais do que uma desarmonia, aquilo era um aviso: ele tinha o instinto de caçador.

Não aquela inocência inerente. Ele sabia o que estava fazendo, sem dúvidas, quando preferia engolir o ódio e deixá-lo fermentar dentro de si. Cada ‘Deus’ perdido, provavelmente, era uma nova lição.

Remliel faz isso quando provocado um pouco mais, Remliel age assim em determinada situação.”

...Sehriel a estava estudando, inconscientemente.

Ou seja: ele tinha muito mais informações. O contrário não acontecia.

Remliel nunca o vira reagir. Tudo o que viu era o rosto que ele fazia quando perdia uma batalha, e isso ela sempre achou ser o suficiente para dizer que sua missão do dia estava cumprida.

E, enquanto isso, dava-se completamente ao inimigo.

Encarando seu sangue na mão, a loira ergueu a sobrancelha: esteve errando por mais de um milênio.

Tinha uma desvantagem incalculável nas mãos.

Agora, Sehriel estava zangado. Um Sehriel cheio de instintos de assassino, cheio de ódio reprimido e, principalmente... Cheio de ciência sobre o inimigo.

Remliel sabia o quanto o desejo de proteger alguém fazia as pessoas cometerem loucuras. Por isso, sabia muito bem calcular que, além de tudo aquilo, a simples presença de Maiko Isono era, quem sabe, a maior das desvantagens.

“Então...” – suspirou.

Levantando-se com certa dificuldade (maldita dor que serpenteava pelo corpo), a loira limpou a poeira da roupa.

“Eu finalmente acho que deveria jogar a toalha, como dizem por aí.” – completou.
Sem mover-se, Sehriel encarou-a.

“Se você fizer isso, não terei motivos para machucá-la.”

“Feh...” – a outra revirou os olhos.

“Remliel, seja razoável. Isso já durou tempo demais... Para nós dois.” – o loiro continuou. – “Eu realmente não quero, mas vou ter de ensinar-lhe uma lição se isso seguir assim. Para seu próprio bem, chega.”

“...Para meu próprio bem, você disse?”

Haviam lágrimas nos olhos de Remliel. Lágrimas.

Maiko sentiu, muito mais do que em qualquer outro momento dali, que aquilo sim era totalmente fora de sua realidade.

E, ao mesmo tempo, viu-se chocada ao se perceber estranhamente solidária com aquela assassina.

Porque as lágrimas que Remliel derramou eram verdadeiras.

E tão dolorosas que chegavam a ser palpáveis.

“...Que bem, Sehriel? Que espécie de bem isso me fará? É indiferente.” – deu de ombros. – “A única pessoa que eu realmente quis proteger... Meu Arda... Você o roubou de mim. Naquele dia, lembra? Desde então, não faz mais diferença... Desde então, eu não tenho mais nada, entende?”

E encarou a japonesa, logo em seguida.

“E é isso que me deixa furiosa... Você consegue ter o que eu não consigo. Você simplesmente supera. Guarda tudo dentro de si, rumina em silêncio, e então... De algum jeito, supera.” – sussurrou aquilo, como se fosse um pecado. – “E, agora, fica por aí com seu novo Peixinho-Dourado. Mas e eu...? E onde está o Arda que você me roubou? Por que você pode e eu não? Não acha isso muito injusto e doloroso? Não acha que devíamos corrigir isso?”

Remliel estremeceu. E nunca soube dizer se foi daquilo, de raiva ou simplesmente de tristeza; não da comum, mas aquela que trazia sempre a sensação de vazio consigo.

Mas soube, e isso com a maior das certezas, que aquele foi o estremecer mais cruel de sua (pseudo) existência.

“Meu pecado já foi expirado há muito tempo.” – Sehriel suspirou, depois de um breve silêncio. – “Eu não devo mais nada a você, Remliel.”

“Então, por que ficou calado todos estes anos?...”

“Porque pensei que você iria perceber por si só o erro que está cometendo. Mas, claramente, enganei-me.” – ele fechou os olhos, pesaroso. – “E também... Talvez, no fundo, eu ainda quisesse ser punido por isso.”

“...Não importa quanto tempo passe, eu não consigo perdoá-lo.”

“Eu sei.” – assentiu.

“Mesmo sabendo que a dívida já está paga, eu não consigo aceitar.”

“Muitos humanos fazem isso.” – o loiro assentiu outra vez, com um tom ainda mais compreensivo.

“...Se é assim, por que não está irritado?”

“Eu estou irritado.”

Remliel suspirou. – “Como faz para ficar tão calmo...?”

“Isso é porque eu, mesmo assim, entendo sua dor.”

Aqueles olhos azuis (que, em outras vidas, em outros humanos criados, sempre eram escuros. Fazia tempo que Sehriel não tinha olhos claros) estavam transbordando de verdade. Ele realmente... Entendia.

Até mesmo a própria Remliel sabia que, há muito tempo, ela já o havia feito entender aquilo. A dor excruciante do luto.

Mesmo assim, não era o suficiente. O mesmo dano não era o suficiente para aplacar aquela vontade de estraçalhá-lo de uma forma memorável, até o último pedacinho de seus átomos. Era uma vontade tão forte, tão louca, tão animalesca que ela sequer sabia por onde começar.

Provavelmente, ao vender-se àquele desejo... Foi ali que ela perdeu o pouco que restava de sua alma.

“Você? Entendendo minha dor?...” – e riu.

A voz esteve rouca durante todo o riso, e as lágrimas ainda ameaçavam derramarem-se ainda mais, mas ainda sim ela riu.

“...Ainda não, Sehriel. Você ainda não entendeu.”

Sem pensar duas vezes, a anjo abriu suas asas rubras uma outra vez, encurtando seu caminho até os dois alvos.

Como previu, Sehriel tentou segurá-la e a parar. Porque ele era tão idiota que, mesmo irritado, nunca era capaz de um ato extremo de violência.

E foi assim que percebeu, num misto de alívio (porque ainda mantinha no corpo a dor dos ferimentos de minutos atrás) e frustração, que o Anjo da Justiça estava, uma vez mais, agindo como era-lhe característico. O seu frenesi de raiva durou apenas alguns momentos, o suficiente para que ele parecesse-se muito com aquele Sehriel que matou Arda... Mas foram só alguns minutos.

Depois, como num passe de mágica, ele amargou aquele ódio. De alguma forma milagrosa, como sempre, ele voltava a se controlar.

Aquilo era frustrante e irritante ao mesmo tempo.

Porque Remliel não queria isso. Queria que ele perdesse o controle e finalmente lhe desse um desafio decente. Queria um pouco de diversão.

Podia comparar-se muito bem a um felino brincando com sua presa antes de colocá-la na boca. A finalidade – superioridade, mostra do poder absoluto, alívio de tensão e, talvez, puro e simples sadismo – era a mesma.

Ela viu quando Sehriel deixou Maiko Isono e levou a loira para cima. Como se ela fosse um perigo que devia ser definitivamente afastado.

Remliel tentou atacá-lo com sua arma, mas o rapaz era muito rápido.

Como o esperado, seus níveis eram muito distantes um do outro.

E isso também era outra coisa que irritava-a profundamente: por que alguém tão bom simplesmente não usava seu talento para coisas mais interessantes como matar, por exemplo? Sehriel era, e precisaria engolir seu orgulho para dizê-lo, o melhor ‘Erasi’ que ela conhecera. Nunca devia ter saído daquele estado!

Com um movimento calculado, ele a jogou ao chão outra vez.

Em horas como aquelas, Remliel agradecia por ter nascido um anjo inorgânico. Se fosse um humano, certamente teria quebrado o pescoço ao cair. Ou, pior: o pescoço seria o menor dos seus problemas. Poderia ter-se quebrado completamente. Porque a terra cedeu ao seu redor, e ela própria achou que foi empurrada com força demais.

Ao menos, mesmo controlando-se, a força do anjo das róseas asas ainda estava particularmente instável. Um bom sinal...

Mesmo assim, antes que pudesse ficar feliz, a loira viu Sehriel descendo em sua direção. Engoliu em seco, amaldiçoando-o; ao contrário de Iriel, que era muito mais ofensiva e definitiva em seus ataques, Sehriel tinha a desvantagem de sempre optar por movimentos fracos. Mas aí vinha a óbvia vantagem de sua rapidez natural para emendar rapidamente outro movimento; e com uma seqüência daquele tipo, qualquer dano mínimo se transformaria em algo sério por demais.

Erguendo a foice com as duas mãos, Remliel usou-a para pará-lo quando chegasse perto dela para tirar-lhe de onde estava. E, quando ele agarrou a arma dela, conseguiu, num momento de pura sorte, encaixar o pé em seu peito, lançando-o para longe de si.

Surpreso com o movimento, Sehriel não pôde evitar ser arremessado. Mas conseguiu, por sua óbvia natureza bélica, permanecer o mínimo de tempo longe da garota.

Tão logo tocou o chão com os pés, ele rapidamente deu meia-volta e conseguiu pegar a foice de Remliel, que ela usava como apoio para se erguer, e lançá-la para os ares outra vez. Para a loira, foi tudo tão rápido que ela mal pôde reagir, deixando em sua boca o amargo gosto de se sentir uma criaturinha insignificante.

Porém, esse gosto logo foi substituído pelo de sangue, quando Sehriel voara logo abaixo dela e aplicou-lhe um certeiro golpe no estômago.

O corpo contorceu-se com o imenso impacto daquele golpe, mas Remliel soube que era só o começo. Aquilo era o que o anjo de asas cor-de-rosa sabia fazer de melhor: seqüências.

O que pareceu ser uma cotovelada em suas costas veio apenas para jogá-la ao solo pela terceira ou quarta vez.

Não. Sehriel veio logo atrás dela de novo.

O jeito com que ele fez isso deixou bem clara sua intenção: ele não pretendia mais deixá-la descer. Iria aplicar um novo golpe enquanto ela ainda estava atordoada do anterior, e assim continuaria. Uma tática um tanto desonesta, não podia negar, mas indubitavelmente eficaz.

Típico de um ‘Erasi’. Muito típico de Sehriel...

Porém, já não tinha mais tempo de brincar com ele. E, impaciente, Remliel agarrou-o pelo braço quando ele desceu o suficiente para ela conseguir segurar.

Estranhou a si própria por não ter atacado. Apenas ficou segurando seu braço.

E, então, num movimento rápido demais até para ela, virou-se, deixando Sehriel de costas para o chão e ficando por cima dele. E, agora, cravou as unhas em sua pele, deixando claro que não permitiria que ele trocasse de posição.

Mergulhando em uma manobra suicida, Remliel deixou que o corpo dele alcançasse o chão, levantando uma nova e estranha nuvem poeirenta. E, usando o mesmo como impulso, lançou-se na direção que queria.

Sua segunda chance de ceifar Maiko Isono. Desta vez, sem obstáculos.

Maiko viu aquela pequena jovem de cabelos longos e loiros empunhar a enorme foice cor-de-céu, pronta para atacar-lhe de novo.

Em sua mente, passaram-se milhares de possíveis planos, rotas de fuga ou simplesmente aquela vontade instintiva de reagir.

Mas sabia que seria inútil contra alguém com sua força.

...E Himitsu? E Sehriel? Onde estavam os dois, no meio daquela queda?

Não! Isso não está certo!’ – pensou, repentinamente.

A voz de Mashiro Himeno, subitamente, pareceu sussurrar-lhe, como se o próprio hanyou estivesse ali ao seu lado. E lembrou-se.

Não foi ele que lhe ensinou (quem sabe com meio um pouco extremos) que precisava fazer justamente o contrário?

...Ela havia aprendido sua lição. Tardiamente, quem sabe. Mas aprendeu.

Devia debater-se por sua vida, porque esse era o dever de um ‘Deus’. Não foi ela que, durante toda sua vida, debateu-se pela mesma?

Com Takuchi Isono, com os colegas de classe, com qualquer um?...

Por que temer um simples anjo agora?

(É claro que seu cérebro não estava na mesma sintonia, e passou a desfiar mil e uma razões para temer, especificamente, Remliel. Mas ela ignorou todas).

“Pode vir, desgraçada!” – rosnou. – “Vou acabar com  você...”

(Não estava tão certa disso, mas ia tentar...)

A loira abriu um sorriso ainda maior diante daquela pose claramente defensiva, com aquela hesitação entre correr e lutar até a morte.

Esse era o tipo de ‘Deus’ a quem valia a pena matar!

Porém, a voz atrás de si a fez retesar-se, mesmo que em momento algum cessou sua trajetória.

“NÃO!...” – o que pareceu ser o lamento apavorado do rapaz Isono atravessou seus tímpanos. – “Maiko-chan, abaixe-se!”

E, em seguida, veio a sua confirmação.

O olhar de Maiko Isono ficou hesitante, assustado, impressionado e decidido. Quatro emoções em milésimos de segundo.

...Nada bom.

Remliel desviou o olhar, procurando ver o que Sehriel pretendia fazer, mas foi muito tarde para uma reação sua.

Maiko, por sua vez, abaixou-se tão rápido que só houve tempo de ouviu um barulho que mais parecia carne sendo fatiada e, em seguida, Himitsu colocou-se à frente dela, ajoelhado, abraçando-a daquela forma na qual ela nada podia ver.

E, então, aquele barulho pesado de alguma coisa caindo no chão.

“...Está tudo bem, Maiko-chan?” – ele sussurrou-lhe. Cauteloso.

Cauteloso demais. Como se houvesse alguma coisa ali, em algum lugar daquela súbita paz, que ela, definitivamente, não devia saber.

“Mas o que...” – e não houve tempo de terminar a frase.

A japonesa soube do que era o som quando viu todas aquelas madeixas loiras, um amarelo muito pálido, como o sol, no chão.

...Só não pôde ver o resto do corpo de Remliel.

 

 

Esperanto:Solfege
Petit Ange

 

Tom LXI: A Última Canção VI.

“Himitsu... O que você fez...?” – perguntou, depois de ter certeza de que sua voz, quando falasse, já não sairia trêmula e falha.

Mesmo assim, aquela estranha imagem em sua mente era o suficiente para que não precisasse de respostas. Sehriel fizera, basicamente, o que devia ter feito a muito tempo: deu um basta àquilo tudo.

“...Nada demais.” – ele respondeu.

“Então... Por que não me deixa ver?”

E ele sussurrou diretamente em seu ouvido. – “Não acho que seja bom para você, Maiko-chan.”

Acabou? Era assim mesmo?...

Ver toda aquela luta por dominação e ter visto a morte de frente duas vezes (três, se contasse seu pânico quando ela e Sehriel caíram dos céus) e, de repente, perceber-se outra vez jogada em um mundo de paz foi demais para seu cérebro; ele ainda tinha a impressão de estar no meio da guerra.

Mas, enquanto Himitsu a levantava do chão, ainda impedindo-a de ver o que estava atrás dele usando seu próprio corpo, Maiko percebeu que estava errada.
De alguma forma, aquilo estava mesmo acabado...

O silêncio, a falta de qualquer ação por parte de Remliel deixava aquilo, muito mais do que nunca, cristalino.

“Por que ela não está levantando?...” – perguntou.

O loiro suspirou. – “Um dano dessa magnitude demora a ser curado.”

A garota lembrou-se, subitamente, daquela vez onde ficara surpresa de saber que eles não morriam mesmo se os degolassem.

Então, Remliel não estava, exatamente, morta.

Apenas impossibilitada de agir até que aquela ferida óbvia fosse curada.

“Quanto tempo...?”

“O bastante para que possamos ir embora.” – e sorriu.

De alguma forma, pensou Maiko, aquilo havia acabado. Não para sempre, porque o próprio disse que a loira voltaria a se erguer muito em breve, mas... Ao menos, por enquanto, estariam em paz.

Tão logo sua mente assimilou aquela sensação de segurança, mesmo sabendo que a situação ainda não estava totalmente calma, foi como um bálsamo.

A cabeça anuviou na hora, como quem tomba diante de um desmaio sem lutar, e só então a morena percebeu o quanto estava cansada. Um pequeno latejar no fundo dela indicava uma futura e irritante enxaqueca.

“...Vamos mesmo ter de comprar um novo uniforme, né?”

A voz ao seu lado despertou-a, de alguma forma.

E Maiko viu-se sorrindo, achando graça daquilo mesmo em meio à tensão. Deixou que a cabeça descansasse no ombro dele, e envolveu-lhe as costas, impedindo a si mesma de desabar e sentindo o incrível alívio de ver-se viva o suficiente para poder fazer aquilo de novo.

“Provavelmente, vamos...” – e, não agüentando-se, riu. – “Mas, claro, o meu também não está lá nas mais perfeitas condições!”

Quando sentiu-o abraçá-la em retorno, Maiko deixou-se fechar os olhos.

“O que será que vão dizer quando nos virem assim?...” – ele também estava rindo, ao imaginar a cena.

A outra revirou os olhos, ainda com um sorriso. – “Vamos dizer que, agora, você virou um banchou. [1]”

“Q-quê?! M-mas eu não sou um...!”

Maiko riu, se possível, ainda mais depois daquela reação.

“Muito bem! Faça exatamente isso quando os professores perguntarem a você, tipo ‘Isono-san! Você, um banchou?!’, com aquela cara de quem não acredita!”

Ele também rira, mas aparentemente por outro motivo.

“Será que é...?”

E a japonesa o encarou, confusa. – “Hã?”

“Sehriel está dizendo que as meninas vão ficar muito decepcionadas quando descobrirem que eu sou um banchou.”

A imagem mental da óbvia e palpável decepção que aquelas malditas que ficavam tirando fotos dele teriam ao saber da notícia, bem como a imagem mental de um Himitsu banchou (isso existia?!) foram o suficiente para fazê-la rir ainda mais, até ter a impressão de estar lacrimejando.

“Eu dava minha alma pra ver essa cena...” – comentou, voltando a rir.

“...Ah.” – e o loiro fez uma careta.

Erguendo a sobrancelha, Maiko sentiu algo estranho. – “O que ele disse?”

“Err... N-não acho que seja nece...”

“Fale.” – interrompeu-o.

Gota. – “Sehriel disse que você tem muito mais cara (e força) de aneki [2] do que eu de banchou.”

‘...Me pergunto quando vou conseguir aceitar o fato de que existem duas consciências num corpo só. Parece até ficção científica.’ – pensou ela, imaginando aquilo com uma bizarra sensação de estranheza.

Porém, ao contrário da mente, suas ações estavam muito mais decididas e, definitivamente, focadas.

“Me faça um favor, Himitsu: mande o Sehriel pra...”

“Sim, já entendi.” – e, antes que ela terminasse a frase, o loiro abraçou-a mais.

E, mesmo com o rosto de quem seria capaz de cometer um assassinato em pouco tempo, Maiko apenas suspirou, deixando-se ficar naquele abraço até quando pudesse. Fechou os olhos com vagar, quase sentindo (e tendo certeza de que isso aconteceria, se continuassem ali) como se pudesse dormir ali mesmo.

“Ei, vamos continuar?...”

“Hã?” – desta vez, ele quem não entendeu.

“Já que terminamos aqui e já ignoramos mesmo as passagens de trem, vamos continuar voando até Nara.” – explicou, contendo um bocejo. – “Quero parar em algum hotel e dormir até amanhã...”

Himitsu sorriu. – “Provavelmente, Maiko-chan vai acordar no meio da madrugada se dormir a tarde inteira, assim que chegarmos...”

Dando de ombros, ela ergueu as sobrancelhas, encarando-o com um risinho óbvio. – “Tudo bem. Tenho meus planos para a noite, também.”

“I-isso é...” – e Himitsu, como o esperado, ficou mais que vermelho.

“Tá bom, podemos jogar damas, então.” – a ironia foi palpável.

O loiro encarou o chão, ainda sem saber o que dizer.

“Errr... Hã, bem... Va-vamos continuar, então...” – por fim, depois de expirar longamente, decidiu apelar para a praticidade. – “C-com licença...”

Pegando-a no colo, ele não esperou mais para abrir as asas e retomar o vôo que atrasaram, graças à perseguição de Remliel.

E só lá em cima é que ela percebeu o quão bonito era o nascer do sol.

Com toda aquela situação e a fuga alucinada, ela mal estava prestando atenção nas coisas ao seu redor. Mas, agora, com aquela estranha paz de espírito invadindo-a, a jovem parou para olhar aquelas cores.

Os tons frios e delicados de azul e roxo iam sumindo aos poucos, até se tornarem só um complemento daquelas cores fortes que surgiam no lugar – o vermelho e dourado. Era quase como uma cena de filme; e só então ela percebeu o quanto já achava natural ver tudo daquela perspectiva (lembrando-se, assim, com nostalgia daqueles tempos em que agarrava-se à Himitsu com pânico, achando sempre que iam cair e se espatifarem no chão).

E, ponderou depois disso, estar com ele daquele jeito, naquele lugar, era melhor do que estar em um avião.

Maiko suspirou, pensando em como o nascer do sol parecia-se muito com o pôr do mesmo; os tons eram sempre lindos e vibrantes. Parecia até mesmo que eles estavam viajando no fim da tarde, para aproveitarem a noite da cidade.

...A verdade é que ela o achou bonito. Simples assim.

Era uma oportunidade única. Porque, só mesmo assim para vê-lo nascer!

Se estivesse em Tokyo, numa hora daquelas, se já não estivesse de pé limpando a bagunça da madrugada de seu tio, estaria se preparando para comer alguma coisa (e, às vezes, nem ter tempo de tomar café da manhã) e sair, em seguida, correndo para pegar o trem e não se atrasar para a escola.

...Ah. Pensando nisso, ela não poderia mais voltar. Tudo que a prendia na capital estava perdido.

Não estava muito diferente de uma sem-teto, pensando bem...

“Que tipo de explicação eu vou dar pra minha chefe quando ela não me ver no trabalho hoje de noite...?” – suspirou.

Himitsu desviou o olhar, encarando-a de forma questionadora.

“Fala do seu trabalho, Maiko-chan?”

“Sim.” – suspirou de novo. – “Não, pensando bem, não vou sequer voltar pra Tokyo para falar com ela... Vou estar numa fuga divertida em Nara. Seria engraçado, se não pensasse nas conseqüências.”

“A polícia?” – ele supôs.

“Também... É questão de tempo até que minha chefe ou a escola ligue para meu tio e ele diga que não tem notícias minhas ou suas. A polícia vai nos procurar, sem dúvidas.”

O loiro assentiu, compreendendo a gravidade que a situação iria assumir.

“...Quer resolver isso agora?” – questionou-a, cauteloso.

Maiko sabia que ele podia muito bem fazê-lo. Com a ajuda de Sehriel, um Anjo, o que Himitsu não poderia fazer?

Mas meneou a cabeça, sorrindo diante da idéia que passou-lhe pela mente.

“Não. No momento, só quero um hotel e uma boa cama.” – deu de ombros. – “E, amanhã, não quero pensar nisso. Porque vamos ter um encontro e esses assuntos atrapalhariam a diversão.”

Ele surpreendeu-se.

“Encontro?...”

“Claro!” – a morena revirou os olhos, como se fosse óbvio. – “Somos dois adolescentes (teoricamente) loucamente apaixonados que fugiram de casa e foram para Nara. É claro que precisamos de um encontro.”

“Hum... Aqueles com sorvetes, compras, vista das luzes da cidade de noite, numa ponte, e tudo o mais?”

“Há! Algo bem de filme assim... Que tal?”

“...Parece divertido!” – e sorriu diante da idéia, aprovando-a.

“É claro que, hoje, só quero dormir...” – de fato, na verdade, ela já queria fazê-lo ali mesmo. – “...Então, amanhã vamos tirar o atraso! Com tudo a que temos direito, aliás!”

Himitsu assentiu, parecendo tão animado quanto. – “Certo! Amanhã, então...”

Aquela atmosfera tão calorosa deu lugar à um frio no estômago que nada tinha a ver com o medo por aquela altitude.

Maiko percebeu-se, melancólica, pensando em uma questão um pouco mais prática, e definitivamente preocupante.

“...Ah, mas não tenho nenhum dinheiro comigo.” – na verdade, todo seu dinheiro estava nas mãos de Takuchi Isono.

“Está tudo bem, Maiko-chan.” – e, inclinando-se, beijou-a na testa. – “Quanto a isso, não precisa se preocupar.”

Ela estava pretendendo trabalhar naquele mês e pagar todo o incômodo e as dívidas que deu por ficar um mês na casa de Najato. E, mesmo se ele dissesse que não precisava (coisa que sabia que ele diria), iria pagar igual. Irieko, mais prática nestes assuntos, iria aceitar de uma vez e mandar o rapaz calar a boca.

Depois disso, Maiko pensava em alugar algum lugar onde ela e Himitsu pudessem morar juntos.

E é claro que, muito possivelmente, esbarraria em burocracias mil, já que era menor de idade.

Por isso, já planejava um novo encontro com seu tio, no qual daria aquela notícia, a qual ele certamente iria gostar de ouvir: ela já não iria mais incomodá-lo. Que vivesse sua vida como desejasse; mas, enquanto seu responsável legal até os dezoito anos, precisaria assinar algumas coisas e guardar certos segredos.

Se tudo desse certo, teria sua própria casa e sua própria vida. Terminaria o colégio naquele ano e, então, arrumaria um emprego.

...Se bem que, imaginava, Himitsu seria totalmente contra aquilo. Ele iria querer vê-la numa universidade.

Mas aquelas discussões poderiam ser pensadas mais tarde.

...Seria mesmo tudo perfeito, se não fossem aqueles pequenos erros de cálculo.

Mesmo assim, Maiko Isono viu-se apenas mais inspirada, e não lamentando aquele destino. De alguma forma, naquele momento, ela não estava mais interessada em agir como sempre o fez, até então: com passividade lamentosa.
Iria apenas viver. Isso seria o suficiente, acreditava.

E, depois, quando ficasse maior de idade... Será que Himitsu aceitaria casar-se com ela (se estivesse viva até lá – nunca se sabia que tipo de confusões iriam atrair dessa vez, além de Remliel)? Considerando o idiota... É, muito provavelmente ele iria aceitar, sim.

...E isso, obviamente, trazia à tona algumas outras questões, como que tipo de cerimônia realizar: tradicional ou católica?

(Maiko só então percebeu que, diabos, não era batizada!).

Suspirou, ainda mais pesadamente.

“O que aconteceu?” – Himitsu, então, perguntou.

Emendando qualquer desculpa (no momento, porque alguma hora iria ter de falar aquilo para ele), a japonesa encarou o céu. – “Fico pensando se não devemos parar em algum lugar para, primeiramente, comprarmos algumas roupas...”
Olhando para si próprio, o loiro arqueou a sobrancelha.

Se fossem à Nara daquele jeito, as pessoas seriam capazes de achar que eles saíram de alguma guerra.

Não que não fosse verdade, de certa forma, mas ninguém precisava saber...

“Tem razão...” – suspirou também.

“Acho melhor eu ir em alguma loja aqui, na próxima cidade mesmo.” – ela avisou. – “Se virem você, Himitsu, vão querer chamar a Polícia. Você tá horrível!”

“...Tanto assim?”

“Bastante.” – assentiu.

Dando de ombros, afinal, o loiro concordou.

“Tudo bem. Mas, então, amanhã... Quando sairmos, eu vou escolher alguma coisa para a Maiko-chan.” – sorriu. – “E você vai ter de usar.”

Isono estremeceu ao ouvir isso, tudo com aquele sorriso inocente.

“...Que tipo de roupa vai comprar pra mim?” – medo.

“Assim como meu nome, isso é segredo. [3]” – sorriso ainda mais inocente.

“...Ah, claro.” – e, é claro, isso não a ajudou em nada.

Ele riu. – “Sehriel disse que terá prazer em sugerir alguns modelos.”

E Maiko torceu o nariz diante daquilo. – “Já falei pra você mandar ele pra...”

“Por favor, Maiko-chan.” – num tom bastante sensato, o loiro tocou em seus cabelos, brincando com uma mecha dos mesmos. – “Ele nos ajudou, afinal. A força, as asas... Tudo é dele. É o mínimo que podemos fazer para retribuir.”

Bom... É verdade. Ela odiava admitir, mas era a pura verdade. Himitsu, teoricamente, morava ‘de favor’ em Sehriel.

Precisava cooperar com ambos, não é?...

“Tá bom!” – e cruzou os braços, emburrada. – “Mas só um, entendeu? Só um! E eu não vou usar na rua...!”

“Ah! Mas era essa a intenção...” – ele parecia decepcionado.

Gota. – “Por alguma razão, atualmente, tenho muito medo do que vocês vão escolher pra mim...”

“Prometo que não vai ser muito embaraçoso.”

“...Quer dizer que vai ser um pouco, né?” – gota ainda maior.

“Mas está tudo bem, Maiko-chan!” – o loiro sorriu, tranqüilamente. – “Afinal, estaremos em Nara! Lá, ninguém nos conhece.”

De alguma forma, pensou Maiko, aquele sorriso parecia dizer a ela que aquele era só o começo. Muitas outras coisas divertidas ainda os aguardava.

E aquilo, sem dúvidas, a deixou mais feliz do que jamais esteve, a ponto de esquecer-se de toda a tensão de momentos atrás. Naquele instante, era como se nada existisse no mundo senão eles.

Abraçando-o o mais apertado que conseguiu, ela também abriu um sorriso.

“Já disse que te amo hoje, Himitsu?~”

Encostando a testa na dela, ele negou. – “Hoje, ainda não.”

“Ainda não?! Bem...” – ela pareceu decidida a consertar seu erro. – “Então, lá vai: te amo!~”

Ah, estava para chegar o dia em que ele se cansaria de ouvir aquilo... Não. Esse dia nunca viria.  E isso era uma certeza tão imensa quanto o oceano.

“Também a amo, Maiko-chan.”

Logo atrás, veio um estranho som que parecia e, ao mesmo tempo, não parecia com o de asas.

“O que...?”

Himitsu tentou olhar para trás, ver se não era algum pássaro, mas não houve sequer tempo para tal.

Porque seus olhos, assim como os de Maiko, preferiram descer sobre o peito de ambos, onde uma lâmina os atravessara, pingando o sangue deles.

 

“Quer, Mashiro-kun?”

Encarando, com a sobrancelha erguida, o irmão-gêmeo oferecer-lhe um pacote de salgadinho comido pela metade, o hanyou suspirou.

“Não, muito obrigado.” – recusou.

Shiho, não se fazendo de rogado, voltou a comer.

De alguma forma, já sabia que o jovem Himeno responderia assim antes mesmo de oferecer algo.

Sempre que ele estava pensativo, não fazia nada além de ponderar e maquinar; se as batidas do coração ou o ato de respirar não fossem puramente automáticas e inconscientes, certamente Mashiro iria se esquecer até de fazer essas coisas.

“O que o está preocupando?” – perguntou o moreno, apesar de já saber, obviamente, o que era.

Desviando o olhar, o hanyou suspirou de novo.

“Estou tentando focar-me outra vez no meu objetivo, Shiho-kun...” – explicou, de forma um tanto desanimada. – “Parece que me envolvi um pouco demais nos problemas alheios, ultimamente.”

“...Eu te falei!” – colocando outro salgadinho na boca, Shiho resmungou. – “Mashiro-kun, você é bonzinho demais.”

“Infelizmente, vou ter de concordar...” – ainda desanimado.

A verdade é que Suriel não sabia o que dizer naquele momento.

Estavam voltando para o hotel onde estava Hotaru Himeno, depois de terem visto Sehriel e Maiko Isono desaparecerem no horizonte da estação. Porque, afinal, sabiam que já não tinham mais utilidade e já não os veriam de novo.

Mashiro pretendia chegar lá e, muito provavelmente, despencar em um sono justo e merecido.

Manter duas barreiras foi cansativo demais para ele. Mesmo com o sangue maldito de Kuro correndo por suas veias, ainda sim, era difícil usar aquelas coisas. Aparentemente, era uma negação, ao contrário de seus outros possíveis irmãos.

E, com um sorriso que beirava a melancolia, mas que podia também ser interpretado como um de aceitação, ele sabia que nunca teria a chance de treinar aquelas suas habilidades.

Antes disso, veria seu pai morrer. Por suas mãos ou as de outro alguém.

...E, depois, morreria ele próprio.

“Ora. Vamos lá, Mashiro-kun! Por favor, anime-se!” – ouviu Shiho dizer-lhe, repentinamente. – “Precisa manter seu foco. Em alguns meses, a barreira vai abrir completamente. Antes disso, os Guardiões serão forçados a agir. Precisamos estar sempre atentos à eles.”

“Eu sei, eu sei...” – suspirou uma terceira vez. – “Mesmo assim, é estranho, mas eu ainda...”

Os jovens Himeno pararam de falar.

Pararam até mesmo de andarem.

Porque aquela súbita ciência os fizeram congelar. Era como parar no tempo e, de repente, sentir o mundo desabar lentamente, virando aos poucos, como alguém o faz com algum tabuleiro de xadrez para ver as peças caírem no chão.

Mashiro não sabia como explicar aquela sensação. Era como sentir uma parte de si mesmo torcer e retorcer. Não era agradável.

Shiho, por outro lado, já estava acostumado. Era natural sentir aquilo num mundo habitado pela mortalidade.

“Você...”

“Sim, eu percebi.”

A primeira imagem que apareceu na mente do jovem hanyou foi a de Maiko Isono. Aquela jovenzinha tão imatura e tão irritante.

E tão estranhamente cheia de vida.

“Parece que Remliel os alcançou...” – Shiho resumiu a situação.

“Acabou?” – foi só o que ele perguntou.

“Sim. Ela está morta.” – confirmou o anjo.

Num sinal de entendimento, ele assentiu positivamente. Algum impulso infame em si próprio quis morder o fundo de sua bochecha, mas controlou-se antes disso. Mashiro manteve-se parado, sem falar ou fazer nada.

E, então, deu um primeiro passo. Voltou a fazer seu caminho até o hotel.

“Mashiro-kun...”

Para Shiho, aquilo era natural. Mais do que natural.

Pessoas morriam o tempo todo, e nada podia-se fazer para evitar aquilo. É claro que era um choque um tanto perturbador quando se conhece a vítima em questão, mas ainda sim, não há nada que se possa fazer.

Mas, Mashiro... Ele era um ser orgânico, por mais que fosse fácil de esquecer-se daquilo. Ainda era influenciado pelas leis da mortalidade.

“Ei, Shiho-kun.” – chamou-o.

“Hum?”

“...Me dê um salgadinho.” – estendeu a mão. – “E vamos embora. Mamãe está nos esperando.”

Ele concordou, baixando os olhos. E deixou que o gêmeo pegasse um.

 

Era como estar diante de um déjà-vu em cores vivas.

O mesmo céu tingido do dourado do amanhecer. Os mesmos fios de ébano deslizando por sua visão, obstruindo parte da paisagem áurea e escarlate. A mesma garota que não se movia em seus braços. O mesmo sangue. O mesmo inimigo que lhe feriu pela retaguarda. A mesma sensação de queda e vertigem.

Era tudo absolutamente igual.

Ou melhor, teria sido tudo absolutamente igual.

Porque um detalhe crucial naquilo tudo não se encaixava na queda anterior.

Maiko Isono estava viva lá. Estava inteira, por assim dizer. Não vertia sangue nem tinha seu coração bruscamente perfurado.

Sehriel viu-se caindo uma vez mais, incapaz de voar com aquela dor correndo-lhe as entranhas.

Mas, desta vez, ao contrário daquele estranho déjà-vu que parecia a tantos quilômetros de distância, estava mais desperto do que nunca. Debatia-se por uma vida que não era sua.

A queda foi inevitável, mas ele fez o possível para machucar-se apenas ele próprio. Maiko Isono foi plenamente poupada, como da outra vez.

E os braços dela, percebeu, não mais o enlaçavam.

Remliel, como ele imaginou, desceu dos céus e parou logo à frente deles. A lâmina estava vermelha. As gotículas do líquido de aroma estranhamente metálico e salgado caíam no chão, desaparecendo na cor da terra.

O loiro encarou-a, tão incrédulo como se nem sequer a conhecesse.

Remliel não tinha no rosto aquela expressão de vingança doentia, aquela raiva que se liberava como uma explosão nuclear.

Não. Era simplesmente o rosto de um algoz ao olhar para sua vítima decapitada.

Um olhar de tediosa satisfação.

“Como... Você...”

“Se você pode abençoar uma humana durante momentos como aquele...” – ela falou, num tom controlado. – “...Por que eu não poderia me abençoar também?”
É claro. Isso explicaria a recuperação relâmpago dela...

Ah. Que estranho...

Maiko não estava se mexendo.

“Ei, Sehriel.” – a loira falou, num tom mais baixo, como quem confessa um segredo. – “Você não acha que, muito mais triste do que morrer...”

Ele apenas queria falar que ela já podia se mexer. A queda já passara.

Mas a voz ficava presa na garganta.

O corpo dele não se movia. Será que isso, essa sensação deprimente, também estava acontecendo com Maiko?

Ah, precisava confortá-la, se fosse assim...

...Porque era uma sensação muito horrível. De verdade.

“...É morrer, assim, sem falar nada?”

Ora, Maiko! Vamos, chega de brincadeiras. Já passou a hora de se assustar. Agora é hora de reagir.

Ainda envolto naquele silêncio doloroso, Sehriel olhou para aquela foice.

Azul... Um azul tão bonito... Estava maculado com o vermelho de uma vida perdida. Então, será que, na verdade, aquele não era um azul maldito?

...Não podia ser o sangue de Maiko Isono aquele, podia?

Tinha de ser só dele. Do mesmo jeito que antes. Só precisava ser o dele.

Obrigou-se, então, a olhar para a humana de abraço frouxo.

E soube que, a partir dali, nunca mais seria o mesmo.

...O olhar que Maiko Isono lhe dignou. Aquele olhar assombrar-lhe-ia, disso não tinha dúvidas, até o fim dos tempos.

Assim como aquele olhar de Mariko o fazia.

Porque ambos eram iguais...

...Ambos eram a total ausência de um olhar. Era simplesmente o foco da morte, a visão do nada. A morte absoluta.

Por que o peito de Maiko estava cheio de sangue? Era só o dele que deveria...

Morta. É isso, não é?

Totalmente e absolutamente morta.

Sem nenhum som. Sem palavras. Sem ações. Só a morte. Do mesmo jeito que foi com Mariko... Não é?

“Agora, Sehriel... Será que, agora...”

Não. Isso de novo não.

“...Você finalmente entende...”

Por favor, Deus. Qualquer um. De novo não.

“...A minha dor?”

Não podiam levar Maiko. Tudo, menos ela.

De novo não...

Remliel estava rindo?... O que será que era tão engraçado assim, para ela rir daquele jeito?... Queria muito saber.

Queria rir com ela daquele jeito. Precisava rir.

“PATÉTICO!” – ela riu. Riu muito. – “Pelos deuses, Arda foi morto por alguém patético como você! Nunca me conformarei com isso!”

De que importava isso, agora...?

Maiko Isono estava...

Ela... Estava...

Ah.

...Até quando isso iria durar? Até quando ele iria ter de passar por isso?

Dia após dia, fugindo de seu próprio coração. Apenas porque tinha a ciência de que, dia ou outro, alguém viria e tiraria aquela pessoa do seu lado.

Ele aceitou aquele destino que jamais foi designado à ele. Aceitou sem nenhum som.

Como se o próprio estivesse morto.

...Quem matou Mariko? Quem matou Maiko e Himitsu Isono?

Quem matou o próprio Sehriel...?

Aquela criatura à sua frente matou todos eles. Aquela criatura que ria e segurava uma arma cheia de sangue dos mortos.

Cabelos loiros que brilhavam à luz do sol tímido.

Olhos estranhamente avermelhados, acastanhados... Era difícil definir sua cor real. Mas eram exóticos como os de uma assassina.

Pele branca, muito branca. Imaculada.

Ele odiou tudo. Odiou aquele riso, aquela aparência, aquela foice, aquela voz...
Sehriel odiou como nunca odiara até então.

Odiou por tudo o que devia ter odiado naquele dia onde sua pequena Mariko morreu. Odiou até mesmo por Maiko, que morrera tão rápido que foi privada até deste sentimento necessário.

O ódio era assustadoramente rápido. Ele fluía demais.

Era assim que Remliel se sentia?...

Corrompida até o âmago por tanto ódio?

Por que era tão forte...?

Por que era tão... Bom...?

Um instinto profundamente escondido brotou de si próprio, como raízes sobressaindo-se da terra. Era assustador; um instinto tão forte, tão estranhamente animalesco... Tão... Bom.

Sehriel tentou lutar contra ele. Porque conhecia muito bem aquela inclinação.

Um ‘Erasi’ que nasceu sabendo matar, um ‘Primordial’, quer queira ou quer não, sempre será um ‘Erasi’. Isso era fato.

O que o anjo fazia era apenas refrear aquele instinto quando ele tentava sair.

Exigia muito auto-controle e disciplina, é verdade, mas com o passar dos séculos, foi ficando cada vez mais raro, até quase desaparecer completamente. Ele de disciplinara e mudara sozinho.

Mas, naquele momento, milênios de ensinamento próprio simplesmente foram engolidos por aquela onda de ódio louco.

Não...’ – e alguma parte de si ainda tentou controlar-se, implorando para ser escutada. – ‘Não... Por favor... Não faça... Isso... Não...

Porém, já era tarde demais.

Sehriel já havia largado o corpo inerte de Maiko Isono e deixado escapar da garganta o que mais parecia ser o rosnado de um animal ferido. Não da forma convencional, mas daquela; sabendo-se sozinho mais uma vez.

Remliel mal teve tempo de perceber o que de fato a acertara. Só sentiu o impacto, e caiu.

Mas logo foi erguida de novo, desta vez pelo pescoço, por uma mão que parecia sedenta por vingança. Uma mão que a faria visitar as mesmas profundezas do ódio vingativo que ela.

A loira percebeu, desta vez sem nenhum prazer e satisfação, que Sehriel já não parecia mais disposto a parar, como da última vez.

Ele havia se perdido no ódio.

...De novo, um ‘Erasi’.

A mão, cravada em seu pescoço como presas de uma cobra, continuou ali enquanto sua outra segurava os cabelos de Remliel. Com uma força bruta e anormal, ele os puxou.

Não precisou de mais do que um segundo para a anjo das asas vermelhas entender o porquê daquilo.

Porque, assim como seus cabelos estava sendo puxados, seu pescoço estava sendo penetrado por unhas, por dedos que tinham apenas um objetivo.

...Ele iria separar sua cabeça do resto do corpo de novo.

Desta vez, literalmente, com as próprias mãos.

E mesmo que ela cravasse suas próprias mãos nos braços dele, tentando tirar-se daquela situação, era impossível.

Sehriel tinha tanta força e ódio que a subjugara completamente.

Ouvindo sua própria carne rasgar, ela só esperou pelo pior.

Mas, ao sentir um estranho estremecer, soube que Sehriel a estava abençoando. Ele a queria curada o mais rápido possível.

Provavelmente, para que a torturasse de novo e de novo...

Indefinidamente, já que nenhum dos dois iria morrer...

Remliel sentiu o sangue abundante jorrar de seu pescoço, empapando sua roupa e seu corpo.

E com um grunhido que mal parecia ser seu, agonizando em um mar de dor calorosa, calou-se ao ter seu corpo separado em dois distintos pedaços.

 

Sehriel arfou, encarando suas mãos. Trêmulas e cheias de sangue.

Tinha a respiração pesada, mesmo que, necessariamente, não precisasse respirar. Era mais como um reflexo.

Desviou o olhar para o corpo caído no chão, regenerando-se.

...Remliel não podia escapar só com isso.

Ainda não era o suficiente.

Nunca seria o suficiente.

Ela precisava sofrer muito. Gemer muito. Agonizar. Gritar. Ele queria tudo isso; queria sua ruína.

Vingança por Maiko Isono e Mariko.

Iria vingá-las e vingar a si próprio.

Era uma promessa que o loiro não tinha a menor pretensão em descumprir.

...Ainda não era o suficiente.

E jurava que nunca seria.

Inclinando-se, tocou nos cabelos de Remliel. Sedosos, abundantes. E pegou-os, enroscando os fios entre seus dedos.

Erguendo-a pelas madeixas, encarou-a no fundo de seus olhos.

E Remliel não viu nada lá dentro, senão o vazio de um ódio que queimava em silêncio, muito calmamente.

Soube então que teria de morrer milhares de vezes antes de ver aqueles olhos se satisfazerem.

E, então, sentiu uma dor gritante perfurar-lhe o estômago.

...Aquele era só o começo.


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Notas finais do capítulo

[1] Termo que designa um líder de gangue (geralmente school gangs) em idade escolar. Conseqüentemente, é sempre respeitado e temido pela vizinhança e colegas.

[2] ‘Aneki’, feminino de ‘aniki’, é um termo respeitoso usado para com uma irmã mais velha. Porém, se usado na hierarquia das gangues (escolares ou não), significa a designação de uma superior quando esta é mulher.

[3] Em 41 capítulos, certamente já estamos fartos de saber que Himitsu significa, literalmente, ‘Segredo’. Podem me matar pela nota desnecessária. XD



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