Esperanto:solfege escrita por Petit Ange


Capítulo 23
Tom XXXVIII & Tom XXXVIX: A Última Canção III e IV




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Esperanto:Solfege
Petit Ange

 

Tom XXXVIII: A Última Canção III.

Só naquele minuto ela teve a decência de realmente pensar naquele fato.

Até então, ele estava escondido em algum lugar de sua mente, ruminado em silêncio, em segredo, num lugar cheio de outros assuntos aos quais ela não dava a devida importância.

Mas, quando aquela cena desenrolou-se diante de seus olhos, foi como um gatilho enfim apertado.

...Sehriel jamais havia ficado irritado.

Himitsu já. Com Takuchi Isono, disso ela lembrava bem.

Mas o anjo inorgânico, o dono dos poderes e das asas... Sehriel nunca havia sequer reagido diante da situação.

Era como se esperasse e aceitasse aquele destino.

Ser perseguido pela eternidade por um outro anjo sedento de vingança e sangue de humanos específicos.

De repente, como num filme, em alguma ficção incrível e inacreditável, o Anjo da Justiça, Sehriel, ergueu-se e cuspiu aquelas palavras.

Cale essa maldita boca.’

Seu tom, suas palavras... Tudo sugeria, mesmo debaixo da raiva, a calma inabalável. Mas aquilo é que o tornava ainda mais assustador do que Remliel.

Aquela mesma calma.

O anjo das asas rubras, ao menos, externava de uma forma bem clara e direta os sentimentos que o incomodavam. Como uma criança, quem sabe; estava sentindo ódio, estava ferido, e estava faminto por vingança diante de uma extrema injustiça do passado.

Mas Sehriel... Ele apenas se levantou, apenas rosnou aquilo, com uma calma ainda sim absoluta, e caminhou.

Nenhum gesto a mais. Aquilo era o genuíno desejo de vingança fria.

Seria esse, afinal, o ódio acumulado?

Aquele que ficava guardado em algum cantinho do coração dele a cada ‘Deus’ perdido, a cada derrota contabilizada?

Era demais. Por isso ela estava assustada.

Era ódio demais. Muito mais do que em Remliel.

Sehriel estava ardendo completamente em raiva.

Mas, quem sabe, isso fosse porque, ao contrário do outro, o anjo das asas róseas jamais teve válvula de escape. Ele sempre preferiu guardar para si.

Até aquele momento, onde tudo explodiu de uma forma que a apavorou.

E o que restou foi aquilo: o sangue e o silêncio.

Era quase como se o anjo houvesse voltado àquele seu estado de ‘Erasi Primordial’, como lhe contara Shiho Himeno.

“Saia daí, Remliel.” – ele lhe disse.

Entretanto, como Maiko previu, só recebera o silêncio em troca.

Aquilo não era em nada parecido com uma guerra e, ao mesmo tempo, era totalmente igual a uma.

Era como assistir à mais estranha das partidas de xadrez.

Uma partida feita essencialmente de movimentos dúbios, ou quem sabe uma seqüência de armadilhas que trariam, independentemente do resultado, apenas a neutralidade no final de tudo.

Porque ela sabia que tanto Himitsu Isono quanto Sehriel sabiam o quão sem sentido era aquela briga.

Quem sabe, por isso se absteve por tanto tempo de reagir.

Não importava, na verdade. Nada daquilo era realmente importante diante dos fatos, aqueles nus e crus.

A guerra aconteceria independentemente da sua vontade.

Cabia à Sehriel apenas acabá-la o mais rápido possível.

E, quem sabe, honrar enfim aquelas mortes inevitáveis, toda a ajuda que até então tivera. Provavelmente, era isso mesmo que faria.

“O que foi? Não estava me provocando até agora?” – o loiro continuou. – “Onde está sua coragem, afinal?”

Mas Remliel não respondia.

A poeira precisou baixar aos poucos, deixando para trás o rastro amarronzado de terra, para que Maiko Isono visse que não havia ninguém ali.

Aquela anjo havia sumido.

Surpresa, a jovem fez o que qualquer pessoa normal faria em uma situação do tipo: olhou para o céu.

Procurou aquele anjo assassino. Mas, assim como Sehriel, não o viu em lugar nenhum daquele céu que ia amanhecendo aos poucos.

Sua primeira reação foi a de se levantar e sair dali.

Porque, de alguma forma, mesmo não achando Remliel, sabia que o oposto não acontecia; Maiko sentia claramente que estava sendo observada.

“Maiko-chan...”

“Ah... Sim?” – como uma criança pega em uma travessura por um adulto, ela surpreendeu-se pela repentina ação.

“Por favor, não saia daí.” – ele frisou. – “Não se preocupe, está bem? Remliel não vai fazer nada com você.”

E ela sorriu em meio ao pânico. Porque sabia absolutamente disso.

“...Eu sei.” – assentiu.

E, talvez pela ação de um milagre, talvez apenas porque o sorriso dela ainda trazia à tona algum pedaço de Himitsu Isono, o loiro também devolveu-lhe o sorriso, daquele modo que só ele era capaz de fazê-lo.

Mas, no momento seguinte, ele parou de sorrir. Como quem percebe algo muito antes do outro.

“Não se mova, está bem?”

E Maiko engoliu em seco, prevendo. – “S-sim...”

Houve apenas um segundo após sua resposta para respirar.

E nada mais. Depois disso, ela ouviu um zunido forte passar por seus ouvidos, e seu coração acelerou tanto em tão pouco tempo que ela achou sinceramente que sua morte não seria um assassinato, seria um ataque cardíaco.

A jovem fechou os olhos e encolheu-se em si mesma o máximo que pôde. Mas o som continuava; e, com o frio do medo percorrendo-lhe completamente as entranhas, ela se perguntava quando ia morrer. Porque aquele som era completamente anormal, diferente de tudo que já escutara.

Um estranho vento zunia juntamente com aquele som agudo. Era como se fossem... Dardos?

Não. E Maiko soube muito antes de abrir os olhos.

Penas. Penas vermelhas espalhadas pelo chão como cacos de vidro.

Muitas e muitas. Ela tentou contar, mas num misto de apreensão e medo, não soube sequer por onde começar.

Aquelas penas... Tudo aquilo devia ter-se cravado em seu corpo.

Só aquela ciência foi o suficiente para privá-la temporariamente do senso comum de tempo e espaço.

Após o que pareceu ser um espaço de horas incontáveis, aqueles sons cadenciados deram lugar à um outro muito mais alto, muito mais urgente. Era o som da própria Remliel.

Lá em cima, no céu do amanhecer, ela descia com a velocidade de um míssil.
Era, talvez, como ver um pássaro marinho mergulhar certeiramente no mar e sair com um peixe em seu bico. Sim, a sensação era a mesma.

Não!...’ – foi o que pensou.

Talvez, seu último pensamento realmente coerente.

Uma vez mais, ela surpreendeu-se ao continuar viva depois do que pareceu ser uma das visões mais traumáticas de sua existência.

Sehriel havia, simplesmente, pego o braço de Remliel.

Como um adulto faz com uma criança, frustrando-lhe por completo qualquer tentativa agressiva. Era uma diferença de níveis e forças absurda.

E, muito provavelmente, isso é que fazia tudo aquilo mais assustador.

Maiko viu tudo isso desenrolar-se ali, perto de seus olhos.

Remliel ser bruscamente puxada para o chão, Sehriel sem um pingo de emoção em seu rosto, o braço ensangüentado – que ele usara para ferir uma anjo inorgânica que não exibia sinais recentes de machucados, apesar de sua roupa ter sangue – puxando-a firmemente, e o som.

Pareceu-lhe o som de gravetos partindo quando se pisam em cima deles. Mas também veio, junto com ele, quase como se fossem coexistentes, o gemido de Remliel. E aquele ângulo impossível de seu membro superior.

Quebrado. Definitivamente e inconfundivelmente o loiro quebrara seu braço.

Tudo aquilo, mesmo tendo acontecido bem perto dela, foi tão rápido, tão estranhamente diferente da realidade, que ela mal pôde acompanhar.

Só teve a certeza do que viu quando Remliel foi rendida ao chão.

O cabelo de Himitsu impedia Maiko de ver-lhe o rosto. Mas já imaginava que tipo de expressão ele estava fazendo.

Provavelmente, a mesma com a qual ele a soltou e prometeu calar a boca daquela menina que, antes parecendo tão forte, agora não passava de uma vítima fácil. Algo que era até estranhamente digno de pena; a desvantagem era, agora, muitíssimo óbvia.

“Você...!” – a loira gemeu, com o rosto pressionado no chão.

“Fique quieta agora.” – e ele respondeu-lhe, com o tom ainda encharcado de irritação. – “Já estou farto, Remliel...”

Na mente da assassina de asas rubras, muito mais que a emergência da situação, uma outra imagem estava assaltando-a desagradavelmente.

Najato Hajaya. Ou melhor, seu cadáver.

Por Deus, ela havia feito uma promessa à ‘Construxi’ daquele menino.

“...Eu prometi que iria vencê-lo de uma vez por todas pelo garoto, Sehriel.” – ela falou-lhe, o rosto ainda pressionado na superfície áspera.

Em resposta, o loiro ajoelhou-se em cima das costas dela. Provavelmente, num humano, aquele ato seria capaz de sufocar. Mas, numa criatura tão imortal quanto o próprio, tudo o que fez foi arrancar-lhe mais dor.

“Hajaya-san era... Era uma pessoa muito gentil... Uma pessoa muito boa...” – disse, entre dentes. – “Nem ele e nem Irieko-san jamais iriam querer uma coisa dessas em seus nomes.”

Quem sabe...

Muito provavelmente, quem sabe... Sehriel estivesse certo.

Aquele menino era mesmo teimoso e estranho. Parecia-se, de alguma forma, com ele. Arda.

Uma vez mais, o coração da loira vacilou ao se lembrar da cena de sua morte.
Na hora, ela não pensara em nada. Só sentiu.

Mas, depois... Foi como se a realidade de seu ato tivesse, enfim, se abatido em seus ombros. O peso do pecado.

...Será que Sehriel também já se sentiu assim?
Remliel achara aquele sentimento horrível. O gosto amargo que ele deixava teimava em alastrar-se pela boca.

“Mesmo assim... Por ele ou por mim... EU NÃO O PERDOAREI, SEHRIEL!” – mesmo assim...

Porque havia ainda uma parte muito grande de si que clamava a vingança.

“EU TAMBÉM CANSEI DE PERDOÁ-LA, REMLIEL!”

Com uma fúria que a própria Anjo do Massacre desconhecia em seu nêmesis, Sehriel segurou-a pelos cabelos e jogou seu rosto uma primeira vez contra o chão.

Depois, uma segunda vez. Uma terceira. Quarta.

E seguiu-se um período aparentemente imenso, cheio de dor e de estranhos latejares. Remliel sentia claramente algo em si estalar o tempo todo. Não sabia o quê, mas sentia que seria difícil apagar a dor. Mesmo que se curasse.

Um som agudo perpetuava-se em seus tímpanos, parecendo subir algumas oitavas cada vez que o rosto batia de encontro ao chão.

Se tivesse pulmões humanos, Remliel certamente já estaria afogando-se com todo aquele sangue que estava engolindo e respirando.

E, Deus... Era tão forte.

Aquilo era o ódio. Talvez, ainda mais forte que o dela.

Ela o reconhecia: impossível confundir aquilo com qualquer outro sentimento senão o puro ódio.

Assim como ela.

Afinal, os dois não eram tão diferentes.

...E Remliel soube que, há muito tempo, ele já havia experimentado a mesma dor. O que veio a seguir foi só uma injustiça. Uma perda de tempo.

Como um adolescente que já tinha aquela peça específica em sua coleção mas, ainda sim, apenas por prazer, decide ter mais uma.

E só quando ele puxou-a pelos cabelos uma vez mais, pronto a grudar-lhe a face no chão de novo, é que Remliel viu seu novo troféu.

Maiko Isono, a garotinha.

Era como aquela tal de Mariko. O mesmo valor.

...Não. Aquela humana era insubstituível. A japonesa da era atual era mais como... Como era o nome?...

“Por que tanto esforço em proteger aquele Peixinho-Dourado, Sehriel?”

Apesar dos óbvios ferimentos, do sangue e do latejar, Remliel parecia... Absolutamente divertida.

Como se uma nova camada de cores houvesse se depositado em suas pupilas, permitindo-lhe ver um outro mundo. Totalmente diferente e cheio de possibilidades. Uma criança incrivelmente curiosa para testar todas elas; era isso que parecia naquele momento.

E, em meio àquele frenesi de fúria, Sehriel ainda teve presença de espírito o suficiente para esmagar o rosto dela contra o chão, suspirando.

“Peixinho-Dourado?” – repetiu, sem entender.

“Você sabe... Não se faça de bobo.” – ela sorriu. – “Você passou mais de um milênio sem pisar em território oriental de novo porque justamente não queria mais lembrar daquela sua menina... Mas, ironicamente, hoje está aqui com essa garotinha que, fisicamente, muito lembra aquela jovem.”

Com um aceno rápido de cabeça, ela indicou Maiko.

“É como uma criança que joga seu peixinho morto na privada e, no dia seguinte, compra um outro para substituí-lo. A mesma coisa.” – o sorriso aumentou ainda mais. – “Encare sua falta de sorte, Sehriel, e admita que Maiko Isono não passa de uma sombra do passado que você quer consertar.”

E envolta em um prazer subitamente sádico, ela percebeu-o afrouxar o aperto.

“Isso não é verdade.” – mas a voz dele não falhou como suas ações.

“...Maiko e Mariko. Um hiragana [1] de diferença. Coincidência ou não?”

“Eu disse que não é verdade.” – repetiu, ainda mais sério.

O cheiro de hesitação.

Porque, mesmo sendo um ‘Erasi Primordial’, Sehriel continuava sendo um tolo. Remliel podia, facilmente, manipulá-lo assim.

Com a pura e simples verdade.

Sehriel fedia a hesitação. E isso, qualquer um sabia, era o perfeito estado para uma troca de posições. Desta vez, ela é quem iria o ferir.

E, prometia, com muita dor. Extrema dor, por ele tê-lo feito com ela.

De fato, a única coisa realmente surpreendente ali foi aquilo. Sehriel reagindo! Ela poderia morrer feliz agora, tendo uma vez mais aquele prazer incomensurável!

“Pode confessar à mim, Sehriel...”

A loira fechou os olhos, respirando profundamente, enquanto sentia na garganta o líquido viscoso. O gosto de sangue preencheu-lhe até o âmago.

Fechou o punho duas vezes, como quem prepara-se para imprimir toda sua força em um único movimento. Literalmente, debater-se-ia por sua vida.

“Prometo que não conto... À NINGUÉM!”

E veio a liberdade.

Sehriel abriu as asas róseas e afastou-se, impotente, diante das agulhas vermelhas. Penas voando, certeiras.

A pele tingia-se de igual rubro a cada lâmina inorgânica acertada.

E Remliel, sabendo-se diante de uma situação na qual não poderia perder um só segundo, voou. Baixo o suficiente para que pudesse, na verdade, correr. Mas preferiu usar as asas; elas sempre lhe davam mais velocidade.

A foice, caída um pouco distante de onde ela estava, depois de sua queda, foi pega por sua mão que não estava quebrada.

E, atrás de si, ouviu Sehriel seguindo-a. Ele era rápido...

Mas, desta vez, a vitória seria de ninguém além da própria Remliel.

Porque, diante de si, a pouquíssimos metros, estava a garota rodeada por todas aquelas lâminas vermelhas que deviam ter-lhe perfurado até matar.

Maiko Isono, o novo peixinho.

O sol iluminou a foice azulada, fazendo-a arder em pequenos pontos cor-de-ciano. Seria uma visão divina, se não fosse a certeza de que aquela mesma visão seria aquilo a lhe matar.

A loira já sentia o antegozo da morte. Ouvir o grito estrangulado da vítima, o gemido que jamais abandona a garganta...

E o sangue brotando como água saindo da terra.

E, depois, ver o rosto de Sehriel. Aquele rosto que misturava a angústia, a descrença e a profunda dor.

...Queria vê-lo muito chorar desta vez. Mais uma vez.

E mataria aquele peixinho para isso.

“É a sua hora, Maiko Isono!” – e sua voz foi quase um rugido.

Remliel sentiu, então, o contato de sua arma com a carne tenra da humana.

Cortou-a como se faz com manteiga. E sentiu o que, em termos terrestres, mais se aproximaria do total e absoluto êxtase ao fazê-lo.

Porque, logo atrás de si, ouviu o grito de Sehriel.

E aquele gemido estrangulado de Maiko Isono à sua frente.

...Estava satisfeita.

 

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Petit Ange

Tom XXXVIX: A Última Canção IV.

Você continua tão fácil de ser enganado, Sehriel.’ – era seu pensamento naquele instante. – ‘Sua incompetência merece a morte dessa criança.

Em algum lugar de sua mente, Remliel já estava simplesmente adiantando a situação para as partes, ao seu ver, mais interessantes.

A parte onde Maiko Isono caía morta, por exemplo.

E, principalmente, o que viria depois disso: o desespero.

Era mesmo essa parte que Remliel queria ver. Porque ver os rostos de Sehriel, cada encontro um corpo novo, desfigurando-se na incredulidade diante da morte era... Possivelmente, a melhor coisa deste mundo.

Os anjos deviam procurar aquele tipo de passatempo. Seriam muito mais felizes, não tinham dúvidas, quando os achassem.

Pousando, assim, logo atrás de Maiko, a loira virou-se, com vagar, com genuíno prazer, para admirar sua obra-prima.

Mas não viu o sangue.

Só a viu, de costas, encurvada, as mãos sobre o estômago ileso.

“O que...”

E, depois disso, só sentiu o potente soco em seu rosto que, assim como fora da última vez, com uma rajada que ela soube tardiamente que foi um golpe, a arrastou para uma distância incrível, com um baque que ergueu a terra.

Desta vez, muito mais do que certeiro, ele foi desesperado, e a distância percorrida por ela em pleno ar não foi tanta.

E, quando tocou o chão uma vez mais, instintivamente pondo a mão sobre o rosto, seu susto estava muito longe do real motivo.

A dor latejante em sua bochecha podia esperar.

...Mas o fato de Maiko Isono estar viva não podia mesmo!

“Maiko-chan!” – e observou, silenciosa, Himitsu Isono correr até ela. – “Tudo bem com você? Está machucada?!...”

A japonesa, talvez ainda mais surpresa que Remliel, ergueu-se, cambaleante.
Passou a mão em seu rosto, deslizando-a por seu pescoço. E, pelo que parecia, apenas para se certificar, apalpou sua barriga. Estava viva.

Erguendo a camisa do uniforme, ela percebeu que tudo o que tinha era um hematoma. Não um corte aberto capaz de fazer vazar seus órgãos como a água vaza de uma banheira transbordando... Apenas um hematoma (bem, ele parecia feio, mas entre isso e uma morte como aquela que devia ter tido, estava agradecendo à todos os deuses agora!).

Himitsu, ao ver aquilo, pareceu suspirar, oscilando entre o alívio e o desgosto.

“Não dói?” – insistiu.

“E-eu... Só um pouquinho... M-mas é como... Se tivessem me batido...” – ela dizia, sem acreditar. – “Como assim, eu não morri?...”

Porque, diabos, ela viu sua morte!

Remliel voou em sua direção, com aquela maldita foice, e jogou-a contra seu corpo. Teve a absoluta certeza de que acertou-a!

E, sorrindo depois de tanto tempo, Himitsu permitiu-se esquecer por um momento apenas daquela situação e abraçar a morena.

Maiko não recusou, apesar de ainda parecer reticente quanto ao momento.

“Que bom...!” – suspirou ele. – “Achei mesmo que...”

“O que foi que aconteceu?...” – sim, ela ainda estava muito surpresa.

Porém, ao contrário da jovem Isono, Remliel, tão logo se localizou uma vez no tempo e no espaço, vendo-se no chão, com o rosto e o corpo doendo e, ainda sim, numa desvantagem tão óbvia que o inimigo até mesmo baixava sua guarda em um momento que ela podia classificar apenas como “nojento”, deixou a mente trabalhar um pouco mais obviamente.

Já tinha visto isso antes. Aliás, não fazia muito tempo...

O jovem Najato Hajaya. É claro. Mas, no caso dele, Iriel encharcou aquele tapa-olho que sempre usava com as malditas...

Era a mesma coisa. A mesma sensação de ter a carne me suas mãos, de sabê-la danada, mas simplesmente, no momento em que era a hora de ver o tamanho do estrago, perceber que ele simplesmente não aconteceu.

Antigamente, os humanos chamavam isso de milagres. Inexplicáveis, nos momentos mais estranhos... Mas, no caso, um outro nome seria um pouco mais certo. Não. Mais usado, precisamente.

“Você... Você colocou bênçãos em Maiko Isono?! Impossível! Ela não estava assim da...” – perguntou, enfim, de onde estava. – “Como você...?!”

...Ah.

Ah, meu Deus, não...

“Sehriel, você...!”

Quem sabe, seu rosto acabara de traí-la, porque Remliel não soube que espécie de expressão acabara de fazer.

Só soube que sua voz falhara diante da compreensão... Infame!

E que o rosto de Himitsu Isono corara levemente.

Foi o suficiente para ter a confirmação. E para sequer conseguir esconder seu sorriso. – “Não acredito que fez isso!...”

Maiko, erguendo a sobrancelha, também notou a vergonha do loiro.

“...Do que ela está falando?” – e, enfim, aquele tom de voz foi tão ácido quanto o da garota dos primeiros dias, aquela rebelde que espancava os colegas.

“Hã... Remliel está só exagerando...” – falhou.

“O que ela sabe que eu não sei?” – voz ainda mais desgostosa.

Erguendo-se, desta vez, a ponto de até mesmo se esquecer de sua dor, a loira jogou uma mecha de seus cabelos para trás.

“Você se perguntou o que acabou de acontecer, certo, Isono-san?”

Desta vez, agarrando-se ainda mais à Himitsu como uma criança, quando é abordada por alguém suspeito, Maiko se limitou a assentir, com o rosto mostrando clara desconfiança.

“Isso foi uma benção. Nós usamos isso em certos humanos, quando eles correm um pouco mais de perigo que o habitual. É uma espécie de barreira.” – explicou ela. – “Já ouviu falar daquelas histórias onde alguém cai de grandes alturas ou praticamente destrói seu carro e só sai com um arranhão ou dois? É mais ou menos esse o efeito de uma benção. Podia muito bem ser um milagre.”

Emendando um sorriso, como quem ainda se diverte por alguma piada obscura e secreta, Remliel balançou negativamente a cabeça.

“Sehriel tem um poder muito forte, essa benção foi... Como dizer? Fora de série. Eu não consegui te matar. Devia tê-la partido em duas; tudo que consegui foi um hematoma.” – diferente de Iriel que, não tendo um poder tão forte assim, infelizmente perdeu seu ‘Deus’ com aquele mesmo golpe. – “Mas, bem... Pergunte-se como conseguiu essa proteção.”

As sobrancelhas da jovem ergueram-se, como quem começa a entender, enfim, onde a outra queria chegar.

Virando-se para o loiro, ela o encarou.

“O que você fez, Himitsu? Alguma coisa enquanto eu estava dormindo?” – muito desconfiada.

“Err... Na... N-na verdade, eu não...” – e, se possível, quanto mais minutos corriam, mais ele ficava vermelho.

“Vou dar uma dica.” – Remliel fechou os olhos.

...Para reabri-los, chocada, frisando completamente sua frase. – “Como pôde NÃO perceber que ele colocou isso em você quando dormiram juntos?! Não, ou melhor: como foi que FEZ ISSO, Sehriel?!

E, como previu, o silêncio.

“Odeio admitir, mas foi a maneira mais criativa de abençoar um ‘Deus’ que eu já vi!” – riu. – “Preciso guardar essa...”

Mas, na verdade, Remliel estava sendo bastante ignorado, por assim dizer.

Porque Maiko Isono encarou Himitsu. E nem sequer estava ouvindo a outra.
Ela estava entre o vermelho-vivo da completa vergonha, a desgraça absoluta, e o branco da palidez do susto, a surpresa extrema.

(Isso sem mencionar seu rosto que, de tamanho o susto, sequer tinha uma expressão realmente identificável).

“...Você. Fez. Isso?” – perguntou, muito calma e pausadamente.

“Ah... V-veja bem, Maiko-chan, eu não...”

“Ou melhor... Sehriel fez isso?!” – frisando tanto quanto a loira já o fizera.
Mais silêncio. Constrangedor, para dizer o mínimo.

Se aquela fosse uma competição para quem ficava mais vermelho no menor período de tempo, a disputa estaria acirradíssima.

Agarrando, subitamente, Himitsu pela gola da camisa, ela o chacoalhou.

“CHAME O SEHRIEL AQUI, JÁ!” – mas, quem sabe, o vermelho de também raiva da japonesa contribuísse para sua vantagem.

(Provavelmente, sendo Sehriel cautelosamente esperto como era, sabia que numa hora dessas era melhor se esconder para sempre).

“Ma... Maiko-chan, por favor, acalme-se!...” – e, enquanto isso, Himitsu sufocava enquanto era sacudido à exaustão.

Vermelha, muito mais do que aquelas penas que antes tentaram matá-la, a japonesa respirou fundo. Apenas para, tão logo o fazer, voltar a sacudir o outro.

“Você... Você... O que era aquilo que botou em mim?! VOCÊS DOIS FIZERAM ISSO!” – rosnou. – “Tem noção de que, agora, até ela...” – e aponta para Remliel. – “...Já sabe disso?!”

“Ma-mas... Foi a única forma que Sehriel encontrou de...”

“DANE-SE!” – e ela praticamente pulou em cima dele.

“S-sim!” – encolheu-se.

Passando a mão pelos cabelos, ela forçou-se a, finalmente, se acalmar (enquanto pensava que, definitivamente, NUNCA MAIS FARIA NADA SEM PROTEÇÃO. ARGHMALDITOSEHRIELELEPAGARIAPORISSO!).

“...Da próxima vez, e deixe isso bem claro à esse cretino, façam isso de uma forma decente.”

Se um dia Remliel e os gêmeos Himeno conversassem, deixando as diferenças de lado, veriam que, na verdade, tinham muita coisa em comum.

Uma delas era aquele suspiro de enfado e absoluta descrença ao assistir uma cena classificada entre o antológico e o patético protagonizada pelos jovens Isono. Aquela, definitivamente, muito mais do que o incidente do soba e das declarações tão cheias de açúcar que podiam matar, era... Ridícula.

Eles estavam completamente esquecidos da anjo inorgânica. Estavam, naquele momento, vivendo no mundo deles.

Aquele que tinham antes de tudo caminhar para onde foi.

Sem dúvidas, foi a última chance.’ – pensou.

Para ter salvo Maiko Isono de uma morte daquele jeito, com uma só chance de ter dado-lhe uma bênção (e isso, por mais envergonhada e tipicamente japonesa que a jovem fosse, estava berrando aos quatro ventos, aparentemente), aquela foi a primeira e última chance.

Como foi com Najato Hajaya... Agora, era questão de encurralar Sehriel uma vez mais e acabar com aquela humana. Diferente do caçador, ela não tinha nenhuma habilidade especial.

Simplesmente repetir seu combo e... Morte.

O problema, evidentemente, seria como fazer isso de novo. Sacrificou seu braço (que estava quebrado até agora, deuses!) e sua única chance para conseguir fazer-lhe um dano.

E ainda mais agora, com o anjo das asas róseas sabendo-se sem cartas na manga... Seria praticamente impossível.

E, enquanto isso... Arda continuava morto. Esquecido no tempo.

Sehriel, no entanto, estava bem ali. Na sua frente, divertindo-se com a outra.

Não era ele o Anjo da Justiça?

Então, que lhe explicasse. Onde estava a justiça naquilo?

Ela nunca fizera absolutamente nada para lhe ter sido tirada a chance de um futuro. Apenas, quem sabe, esteve na hora errada e no lugar errado.

Mesmo assim... E mesmo sabendo que, na época, Sehriel era um ‘Erasi Primordial’ e pouco lhe importava o que os outros sentiam...

Mesmo sabendo que, na verdade, se fosse olhar bem, hoje em dia ela fazia com os outros exatamente o que aquele maldito fez com ela...

Mesmo assim, onde estava a Justiça?

Nêmesis [2] nunca veio em seu auxílio. Com as próprias mãos ela teve de fazer sua história.

E vendeu sua própria alma para tal.

...Isso se tivesse uma.

Não. Era sempre a mesma história...

No fim, sempre era ela quem estava perdendo...

‘Já é hora de acabarmos com isso.’ – pensou. Era mais como um mantra. – ‘Já chega de brincadeiras.’

Que Maiko Isono a perdoasse, algum outro dia, quem sabe no Inferno, eles teriam mais tempo de discutirem a vida sexual deles ou o que fosse.

Naquele momento, porém, outros assuntos bem mais importantes clamavam sua atenção.

Deixando o braço se regenerar mais uma vez (ah, perdera a mão, fora espancada à exaustão, quase teve a cabeça arrancada, agora o braço quebrado... Malditos aliados de Sehriel. Ou eles eram baratas muito resistentes ou ela precisava, urgentemente, entrar em forma de novo!), ela suspirou profundamente.

E, empunhando a foice, voou em direção deles uma vez mais. Sem nenhum plano, na verdade; era apenas o desejo de sangue que a movimentava.

“Concentre-se, Sehriel!” – o chamou, à distância.

Foi como se toda aquela tensão, que antes havia subitamente desaparecido, deixando no ar aquela conversa patética, tivesse voltado de uma vez só.

O loiro foi rápido o bastante para reagir, mais ou menos, do jeito que ela esperava que o fizesse: do jeito de um príncipe idiota e romântico. Colocar-se na frente de Maiko Isono muito pouco mudaria. Ela podia fatiá-lo também.

...Do mesmo jeito que já fizera com ele e outros ‘Deuses’ seus inúmeras vezes.

“Inútil.” – revirou os olhos.

Porém, uma vez mais, com a surpresa intraduzível no rosto, ela foi pega de surpresa por aquela criatura.

Porque, simplesmente, assim sem explicações, viu-se no chão, enquanto o corpo contorcia-se em dor uma vez mais.

“...É quase inacreditável.” – confessou.

“Você mesma disse, não é? Que estaria sempre levando isso a sério.” – o loiro devolveu, olhando-a de suas alturas. – “Eu também, Remliel. Desta vez, também estou levando isso a sério. E ainda estou muito irritado.

...Sim. Ela sabia disso.

E por isso tudo que soube que foi a culpada.


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Notas finais do capítulo

[1] Um dos alfabetos silábicos do Japão. Usado para todas as palavras para as quais não existem kanjis (porém, às vezes, o hiragana é usado ao invés de um kanji, pelo mesmo ser pouco conhecido). Porém, cabe dizer que, quando usado para a pronunciação geral de um kanji, como foi o caso comparativo dos dois, é chamado então de furigana.

[2] Nêmesis (também chamada Rhamnusia) é a deusa grega da Vingança. Seu nome significa, literalmente, ‘Receber Aquilo que lhe é Devido’. Atualmente, é um termo que também identifica o pior inimigo de alguém.



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