Esperanto:solfege escrita por Petit Ange


Capítulo 22
Tom XXXVI & Tom XXVII: A Última Canção I e II




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É chegada a hora...

“Isso mesmo, pequena.” – sussurrou. – “Agora, entreabra a boca. Assim.”

Ele sorriu, concentrado, enquanto deslizava o dedo com aquela tinta vermelha em seus lábios. Os mesmos estavam gelados e inerte; do jeito que deveriam ficar. Mortos. Uma boneca perfeita.

Seus olhos perfeitos piscaram uma, duas vezes, acostumando-se com a nova visão. Pálida como um lírio, de lábios vermelhos aquela pequenina parecia até mesmo uma divindade.

Mas, ponderava, ela não poderia mais sorrir.

Era uma verdadeira lástima. Quando viva, aquela pequenina devia ter tido um sorriso muito bonito. Afinal, uma criaturinha tão delicada que parecia um pintarroxo só podia ter um riso assim; cristalino como o Lago de Fogo.

Ah, estava pensando demais de novo...

Meneou a cabeça, lembrando a si próprio de que tinha mais o que fazer, e voltou a se concentrar em passar-lhe o batom, sempre cuidando para que não ficasse vermelho demais. Seu senso imortal de estética (que, de alguma forma estranha, estava sempre se atualizando para a modernidade. Afinal, a época de adorar mulheres com curvas cheias já havia acabado) acusava que uma pele assim tão branca ficaria estranha com tanto vermelho.

“Será que eu não deveria ter passado um batom mais rosado em você, minha pequena?...” – perguntou à ela.

E, como imaginou, não obteve resposta alguma.

A jovem continuou inerte, de olhos fixados no nada, opacos como a morte. Ela apenas deixou a cabeça cair um pouco mais, abruptamente, graças aos dedos do rapaz soltando seu queixo.

“Hum... Não. Acho que é melhor assim, não acha você também?” – decidiu-se, então. – “Desse jeito, você fica parecendo... Como era o nome? Geisha [1], não é?”

Até onde seus conhecimentos o levavam, ele sabia que só o lábio superior era plenamente pintado. No inferior, era um pouco diminuído para dar a impressão de uma flor desabrochando. Simbolismo oriental... A sabedoria graciosa daquele povo era, definitivamente, uma coisa que devia ser mantida na memória do mundo.

Mas, pensou, como não estava pintando o rosto daquele pintarroxo de pó branco de arroz, deixar-se-ia pintar os lábios dela à maneira ocidental.

Findada a tarefa, o rapaz passou a mão em seus cabelos, afastando os fios negros da franja que teimava em cair em seu rosto, tomando cuidado para não sujar-se com o batom que lambuzava seu dedo. E admirou sua obra-prima.

A pequena humana estava mesmo parecendo uma divindade misteriosa.

Sua pele já era branca. Branquíssima. A palidez natural unida ao branco inerente à morte. As pessoas deviam compreender um pouco mais o quão belas ficavam neste momento; através dos fluídos orgânicos, através dos órgãos apodrecendo, havia a poesia inevitável de um corpo sem alma.

Por sorte, sua pequena bonequinha ainda não estava apodrecendo. Estava recendendo a flores de cerejeira.

Era estranho, pensou o rapaz. Às vezes, os humanos cheiram a flores.

E o mais estranho era que, muitas vezes, dependendo da nacionalidade, cheiravam a um determinado tipo. Pequeninos pintarroxos japoneses exalavam o aroma da cerejeira. Graciosas garças vermelhas holandesas recendiam a tulipas.

Ah, distraindo-se de novo...

Meneou a cabeça de novo, desta vez, em sinal de óbvia reprovação diante de si próprio. Mas, pensou, era inevitável não entregar-se àquela tarefa tão relaxante.

Há muito tempo nenhum humano pisava naqueles domínios. Não era, aliás, um lugar onde muitos filhos dos homens podiam aparecer. Por isso, sempre que um ser da esfera terrestre, primata ou não, tinha a chance de vir, era motivo de muita surpresa e curiosidade. Inclusive, é claro, do próprio rapaz.

Ele tinha, porém, sua própria maneira de expressar a incomensurável alegria de receber um ser tão intrigante quanto um humano. Quando era um ‘homem’, podia ser um bom anfitrião e ter um aperto de mão firme. Era o bastante, acreditava. Mas, quando era uma ‘mulher’...

Não. Ele não era um pervertido como outros colegas seus. Em realidade, teria de admitir, era o mais respeitador da tríade.

Mas uma humana é, se possível, ainda mais misteriosa que um humano. E muito mais interessante.

Ainda mais um pequeno pintarroxo japonês como aquela jovenzinha.

 

“...De nos reerguermos.”

A primeira coisa que quis fazer foi vestir aquela mocinha. Estava tão horrível em vestes indignas e imundas. Uma japonesa deve vestir-se como japonesa; porque, de alguma forma, parece que todas nasceram para serem belas flores ao vestirem aqueles kimonos. E ele fazia questão de que ela ficasse ainda mais bela.

Dispensara a ajuda de moças mais experientes depois de perceber que estava ficando excluído daquela transformação. E dedicara-se, o próprio, a vesti-la.
Escolher um kimono não foi difícil. Só de olhar para aquele corpo – pálido, branco como um lírio. Tão delicado, tão tentador e ainda sim, como uma flor que lentamente se mostra na primavera perfumada, ainda não totalmente maduro – já soube que a cor das hortênsias combinava perfeitamente com ela.

E vestiu-a. Daquele jeito. Dedicou boa parte de seu tempo preparando-a. Quis até mesmo tentar pintar seu rosto, mas acabou percebendo que a beleza daquela humana era como a de uma flor silvestre: pura e direta. Não a beleza aristocrática de outras mulheres. E aboliu nada que não fosse o batom (bem, talvez tenha pintado seus olhos de preto, apenas para realçá-los, admitia... Mas não ficou nada mal, pelo contrário).

Agora, terminando finalmente seu rosto, ele admirava-a. Um kimono largo, enfeitado com desenhos de delicadas cerejeiras róseas. O enfeite dourado de cabelos, claro, também complementado com cerejeiras em flor. Suspirou, satisfeito. Estava pronta, afinal.

“...Sabe o que nós devíamos fazer?” – comentou, acariciando de leve a cabeça dela para não lhe estragar o penteado. – “Sentarmos à beira do Lethe [2] e tomarmos um chá. Algo bem tradicional. O que acha?”

Ah, o silêncio...

Mas será que seria um pouco demais transformar as margens do Lethe em um jardim tradicional?

...Ele podia se zangar, se soubesse. Não podia arriscar.

O que, pensou, era uma outra verdadeira lástima. Um local tão bonito! Podia muito bem servir, nem que fosse só um pouco, para uma diversão inocente.

Cenários assim tão bonitos deveriam ser divididos com aquela pequenina jovem vestida em um lindo kimono. Sua beleza, o lago azul cristalino, o cheiro de chá...

Aquilo sim era uma recepção digna de um anjo superior como ele.

“Quer me servir um ou eu posso cuidar dessa parte, hum?” – continuou.
Absorto, ele passou a mão pelo rosto, sentindo a pele macia em contato direto com seus dedos. Suspirou de novo.

“Pode me falar, pequena. Não tenha medo...” – sorriu. – “Afinal, Sehriel não vai acordar tão cedo... Temos todo o tempo do mundo.”

 

 

Esperanto:Solfege
Petit Ange

 

Tom XXXVI: A Última Canção I.

O sol nascia e se punha todos os dias.

As estações passavam discretamente, varrendo folhas, transformando tudo em gelo, colorindo de róseas primaveras.

Vinha a escuridão da noite, substituindo o calor da manhã.

E os gritos. Todos os gritos.

Vilarejos em chamas. Guerras. Cheiro de carne decomposta.

Gritos que imploravam por piedade, pelas vidas que sabiam que iriam perder. Vozes esganando-se em seus últimos momentos.

Não havia nada de novo em nada daquilo. Ao menos, nada que Sehriel já não tivesse experimentado milhares de vezes, todos os dias.

A satisfação não estava em matar as pessoas. Nem em ouvi-las agonizar.

Era simplesmente pelo fato de estar cumprindo seu papel.

Se tivesse de comparar, o faria, toscamente, à algum animal que, na época do acasalamento, não necessariamente está apaixonado pelo parceiro.

É dominação e sujeição. Destruição e ressurreição.

Uma questão de instintos profundamente enraizados. Como um animal levado pelos ânimos da primavera.

Nada mais, nada menos.

E Sehriel estava satisfeito com aquilo.

E esteve até o dia em que encontrou aquela moça. A miúda Koromo. Ela foi o prelúdio: de alguma forma, seu coração soube disso.

...Se ele tivesse um coração...

Depois de Koromo, alguma coisa em si mudou.

Ela sempre perguntou se não era por causa de sua barriga. De fato, desde os tempos mais remotos, mulheres que carregavam dentro de si outras pequenas vidas sempre eram estranhamente veneradas (talvez não fosse essa a palavra certa...) pelos demais. Quase como se fossem deusas em algum aspecto.

Não. Sehriel jamais pensou naquela barriga anormal como sendo mais do que uma característica, como pensava sobre narizes e lábios.

O problema concentrava-se bem mais em como ela a adquirira.

Porque mesmo um ‘Erasi’ imortal e insociável sabe que fêmeas cuja semente da vida foi implantada forçadamente em seus úteros eram previsivelmente rancorosas. Agiam como animais feridos que lambiam suas próprias feridas. E odiavam tudo; o pai daquela vida e até a própria vida.

Mas Koromo não odiava a criança que foi concebida tão traumaticamente.

Nem um pouco... Na verdade, Sehriel precisava admitir: ela amava aquele parasita. Idolatrava-o.

Os primeiros anos como um ‘Erasi’ que adquire subitamente uma consciência e não mais puramente age por instinto foram os mais difíceis.

E seriam bem mais, tinha de admitir, se não fosse... Koromo.

Ou melhor, sua morte.

Sim. Porque aquele parasita que ela tanto idolatrava, apesar das origens, teve de matá-la para poder nascer.

E a tola Koromo apenas encarou sua criança suja de sangue e vida e sorriu.

Sehriel nunca a vira sorrir daquele jeito; e pensou se todos os humanos sorriam com aquela felicidade tão transbordante que era capaz de contagiar positivamente todo o ar à sua volta.

Só de olhar, digo que você é uma negação para nomes.’ – ela falou-lhe, num sussurro de moribunda. – ‘Mas parece que você terá de escolhê-lo por mim...

E morreu. Morreu com aquele sorriso.

Foi uma morte tão patética e simplória quanto ela.

Mas pareceu digno. Ao menos, pensava Sehriel, ela morrera em paz.

Irônico, se pensar que quando a encontrou ela falava de superioridade feminina e de sonhos impossíveis.

No fim, morreu como uma simplória que achava a maternidade fascinante.
Mas, de alguma forma... Sehriel sentiu-se triste por ela.

Triste...

Aquela foi a primeira vez que experimentou aquela sensação. Achou-a patética.

Um aperto no peito que produzia um segundo aperto, inenarrável e na garganta. E a sensação de vazio na mente.

Toscamente, desajeitadamente, ele descreveu a si mesmo e recordou-se: aquele era o gosto amargo do pesar.

E percebeu: uma criança chorava.

A criança-parasita de Koromo.

Sehriel era um anjo. Uma criatura imortal, inorgânica e desprovida de sentimentos e por vezes até sensações por bilhões de anos. Uma máquina perfeita de assassinatos.

Nenhum instinto profundamente enraizado em si dizia como fazer um bebê parar de chorar; só se o matasse.

Ponderou se não fosse melhor matá-lo.

Enquanto isso, o bebê continuava chorando nos braços da mãe-cadáver.

E chorou durante muito tempo, até que o anjo de róseas asas o pegasse no colo, sacudindo-o como faria com um objeto.

Como se faz isso parar de chorar?...’ – perguntou-se, já sentindo a bastante conhecida irritação por aquele som estridente.

Olhando para trás, aquele Sehriel de atualmente teria de rir de si mesmo.

Ele agiu errado desde o começo...

A começar por ter ignorado totalmente a miúda Koromo, que o ajudou a conhecer o gosto de humanidade pela primeira vez. Ele nunca dera um nome para aquela criança-parasita-chorona.

Chamava-a simplesmente de ‘ei, você’.

A criança-parasita cresceu aos poucos, e foi gradativamente parando de chorar (e é claro que os freqüentes gritos do anjo para que ela calasse a boca, mesmo quando caía e ralava o joelho até arrancar sangue, contribuíram muito para tal estado). Ela cresceu e tornou-se parecida com Koromo.

Quando Sehriel olhava para aquela pequena atentamente, lembrava-se da mãe dela. De como a influência dela sobre ele fora grande.

Aquela criança jamais perguntou da mãe. Talvez, porque se sentisse satisfeita o suficiente com o ‘guardião’ desajeitado.

Ela cresceu como alguém silenciosa, bastante tímida, e que tropeçava freqüentemente nos próprios pés.

E, mais uma vez, o Sehriel de atualmente riria de si mesmo. Ele sequer ensinara aquela parasita a caminhar ou falar.

Tudo que ela aprendeu foi por seu próprio mérito.

...Pensando bem, precisou parar em um estabelecimento modesto no caminho para alguma cidade além das montanhas, assim como precisou que a esposa do dono deste estabelecimento viesse, com um sorriso, acariciar a cabeça da criança e perguntar à Sehriel qual o nome dela, para que ele percebesse.

Jamais dera atenção alguma àquela criança. Ela cresceu gostando da visão dos campos branquíssimos de arroz. Ele sabia disso.

Mas só. Não se importou em curar suas feridas, tanto as físicas quanto as emocionais, não se importou em ensinar nada.

Sequer incomodou-se em ser importante em sua vida patética.

Porque pensava sempre em Koromo. E uma sensação de injustiça abatia-o; aquela parasita matara sua pequena idiota.

Aquela parasita era fruto de uma violência imperdoável. Era a continuação daquele ato infame.

Sehriel, no fundo, sempre odiou-a.

...Odiou-a. Pela segunda vez, ele viu-se sentindo alguma coisa.

E, assim como aquela vez em que ouviu o ‘pesar’ correr por suas veias inexistentes, também sentiu o ressentimento. O ódio.

Por uma mísera criança de cabelos pretos e olhos curiosos.

Ela não tem nenhum nome.’ – respondera ele, rudemente (talvez porque, na época, ainda não conseguia administrar bem sua raiva e frustração diante daqueles sentimentos novos que vinham um atrás do outro).

Hã? O senhor deu nenhum nome à ela?!

Sehriel não entendeu o choque daquela mulher.

O que havia de errado nisso? Não ter um nome... Milhares de coisas invisíveis aos olhos humanos também não tinham nome.

E, mesmo assim, existiam. Independentemente da vontade deles.

Um nome não era nada mais do que uma extensão de ignorância. Nada que precise ser alardeado. Nem sequer é necessário.

Por isso, quando a pequenina olhou bem para os olhos da mulher que lhe deu um onigiri e pediu para juntas pensarem em um nome, Sehriel sentiu como se estivesse vendo o supra-sumo da idiotice.

E concordou como um adulto concorda com as inocências de uma criança quando a pequena disse que seu nome seria Mariko.

Por que tanta felicidade por um nome?...’ – ele perguntava-se. Parecia tão idiota, tão desnecessário.

Mariko. Será que Koromo iria gostar daquele nome, se estivesse viva?

Ele teria achado engraçado, se a sensação de que via algo patético não viesse antes da graça.

Depois de ter recebido um nome, a pequena morena parecia um trapo à parte que foi elevado à condição de humano de fato. Foi ridículo.

E ela passou a agir como humana. Foi ainda mais ridículo.

...Pensando bem, ele achou ridículo até aquele dia.

O dia em que uma Mariko já em seus doze ou treze anos encarou fixamente Sehriel. Olhou-o tão dentro de sua alma inexistente que ele quase sentiu-se tentado a desviar os olhos.

E disse: – ‘Chame-me pelo meu nome, Sehriel.

Até então, ele continuara chamando-a normalmente de ‘você’. Porque não via sentido algum em mudar o fato.

Mas, ali, fora obrigado a sussurrar aquele nome idiota.

...E, então, perdeu-se para sempre.

Um nome é sempre muito poderoso. É a coisa mais importante deste mundo.

Hoje em dia, ele sabia muito bem disso.

Um nome está sempre revestido de significado e é essencial para determinar qual poder terá a entidade nomeada. [3]

Uma vez que o nome é pronunciado, ele não pode mais voltar.

E prende-se para sempre no coração de quem o disse. Quando um nome é dito em voz alta, ali está o fim: a ligação já não podia mais ser desfeita.

Como um anjo, mesmo sendo um ‘Erasi’, ele sabia disso. Sentia isso.

E aconteceu aquilo que nunca deveria ter acontecido: ele deixou-se apaixonar.

Talvez, “paixão” não seja uma palavra adequada.

Mariko sempre foi uma figura assexuada em sua vida. Até aquele dia.

Ou, talvez, ele já houvesse gostado dela há muito tempo, só descobrindo quando finalmente sussurrou seu nome e percebeu-a como uma humana de fato.

Ele errou ao deixar que aquela jovenzinha ocupasse seu coração.

...Isso se seres inorgânicos possuíssem um.

Não. Talvez, ele realmente tivesse um coração.

Passando tanto tempo entre os humanos, Sehriel desejou, talvez pela primeira vez em toda sua ‘existência’, ardentemente ter um. Por mais que soubesse que, na verdade, um ser divino apenas imita os que vivem de fato.

Tendo ou não um coração, o mais puro sentimento seria todo de Mariko.

A verdade imutável era aquela.

Seria tudo daquela menininha que ele viu crescer, filha de uma humana que o fez descobrir que não precisava ser apenas uma máquina assassina.

E Sehriel desejou de verdade ser um mortal.

Porque sabia qual seria o destino certo de Mariko. E sabia o que acontecia com anjos e seus protegidos após a morte do segundo.

...O outro erro. A imortalidade desejar ser mortal.

Não. Aquele foi seu último erro.

Porque não houve mais o calor. Não houve mais o sorriso tímido.

Nunca mais haveria Mariko.

 

A foice azulada pingava o sangue que um dia correu por dentro daquele corpo, carregando a vida como um rio o faz com plantas.

Ele devia saber que, um dia, isso acontecia.

O pecado nunca fica sem resposta. Nemesis era sempre impiedosa.

A Vingança sempre espreitaria. Estava de mãos dadas com o destino dele; sim, sua mente sempre soube.

Cedo ou tarde, algum anjo irritar-se-ia com aquilo.

Iria se debater como um cão de guerra, não somente se contentar com a morte de mais um humano e procurar, servilmente, outro ser vivo a quem agradar.

Alguma coisa dentro de si sempre o alertou: ele estava colocando Mariko em perigo convivendo com ela. Amando-a.

...Ali estava sua confirmação.

A confirmação feita de um cadáver nos braços, o cadáver banhado em sangue que ele falhou em proteger.

E diante de si, o algoz. O algoz em forma de mulher com a arma da morte azul como um céu puríssimo, com pedras brilhantes como estrelas.

O algoz que, um dia, chamou-se ‘Morphya’.

Aquelas mãos tiraram a vida da única pessoa que foi capaz de fazê-lo sentir. Um anjo jamais sente; é uma mera ilusão de seus desejos. Mas Mariko... Ela o fez sentir-se, pela primeira vez, vivo.

Mesmo que essa fosse a mais errada das ilusões. Ela aconteceu.

Mas não voltaria a acontecer. Por mais que lamentasse, jamais mudaria o fato de que acabou. Simples e puramente: acabara.

“Acabou, Remliel...” – ele sussurrou. – “Você venceu.”

“Não, Sehriel. Eu ainda não venci.”

Como não venceu? O que mais faltava para que Remliel se sentisse satisfeito?

O anjo de róseas asas não sabia dizer. Ou melhor, não tinha a menor vontade de pensar naquela dor.

Porque, naquele momento, uma outra dor bem maior assaltava-o.

Baixou os olhos, ainda incrédulo.

Em seu colo, estava ela. Os cabelos negros que ele tanto adorava espalhados pelo chão, enroscando-se, indisciplinados, nos braços mortos.

A pele era pálida... Tão pálida... Seria aquela a assinatura da morte?

Sehriel sempre viu humanos fecharem os olhos quando morriam. Mas Mariko não o fez. Sequer teve tempo para tal.

Em seus olhos, ele não via mais nada. Nem a vida, nem a própria morte.
Era um vórtice vazio.

Tão vazio quanto os olhos de Remliel, que ardia em vingança e, mesmo assim, dizia-se insatisfeito.

Um verme rastejou onde deveria ficar o coração de Sehriel.

Ele sentiu aquele verme e perguntou-se o que seria.

Uma dor. Era uma dor indescritível; ela transbordava como o leito de um lago na temporada das chuvas.

Cada vez que olhava seu próprio reflexo opaco nos olhos mortos.

...A dor transbordava.

“Agora sim. Agora eu venci.”

...Transbordava. Somente isso. E doía.

“Agora, você consegue compreender...” – Remliel sussurrou, acidamente. – “...A minha dor?”

Lágrimas. Era isso que estava transbordando?

Um anjo... Estava chorando?

Ele estava... Chorando?

Pela primeira vez em anos, Sehriel sentiu em si uma vez mais aquele impulso irrefreável de um ‘Erasi’: levantar e destruir.

Aquela criatura à sua frente, de asas tão rubras quanto o sangue em suas mãos.

Ele sentiu genuína vontade de despedaçar cada centímetro de pele. Cada partícula de sua alma.

Até transformar aquele sorriso assassino em nada absoluto.

Mas tudo não passou de uma vontade. Uma vontade vã.

Porque ele compreendeu a dor de ‘Morphya’. A dor de Remliel...

E não conseguiu mais levantar.

 

Aquela foi apenas a primeira de muitas. Apenas a primeira morte; o que os homens chamam de ‘pontapé inicial’.

O que seguiu-se a partir de então foi uma coleção de fracassos.

Humanos que transformavam-se em memórias tão logo eram tocados por aquela mesma foice azul-mar.

Mas Sehriel nunca mais chorou por nenhum humano.

Aquelas lágrimas impossíveis seriam apenas de Mariko. Tudo seria dela.

E ele aceitou; Remliel merecia ter sua vingança.

Fechou os olhos para sua própria vontade e deixou. Deixou como um adulto deliberadamente deixa uma criança vencer continuamente em um jogo.

Porque, em algum lugar de sua mente, achava que aquela era a sua punição.

Por Arda, por Mariko, por todos seus pecados...

...Ele deixou.

 

Isso até aquele dia.

O dia onde ele estava caindo dos céus com uma mocinha em seus braços.

Era como estar prestes a perder Mariko uma vez mais. Isso não iria mais acontecer. Não podia acontecer.

Porque ele sabia que iria quebrar se, acaso, acontecesse.

Como uma criança que continuamente ganha de um adulto e esquece o quão hábil o mesmo pode ser, Remliel esqueceu-se de que ela sempre estaria muitos níveis abaixo de Sehriel.

...E ele decidiu. Em uma fração de segundos que durou uma eternidade.

Desta vez, ele seria o adulto que colocaria aquela moleca de volta em seu devido lugar.

 

 

Esperanto:Solfege
Petit Ange

 

Tom XXXVII: A Última Canção II.

Havia uma coisa que Remliel nunca iria aprender. Ele achou que, um dia, ela viria como veio a ele: calma e silenciosamente. Instalando-se sem avisar na mente e agarrando-se como se a vida dependesse disso ali. Para sempre.

Por isso, Sehriel esperou. E porque também achava que precisava pagar por seus pecados.

Continuar até que o outro se sentisse plenamente satisfeito por Arda era, quem sabe, a melhor maneira de um criminoso como ele pagar. Mas não aconteceu.

Remliel nunca aprendeu a lição.

A verdade é que eles eram diferentes dos humanos. Isso era fato.

E, portanto, a dor deles também devia ser diferente.

Uma forma de afastamento daquele mundo cheio de matéria orgânica? Sim, não podia negar. Mas, pensava Sehriel, era a única maneira.

Um anjo não pode sofrer a dor do luto da mesma forma que um humano.

Um simples piscar de olhos perfeitos equivale a toda uma vida imperfeita.

Era isso que diziam, não?

Se era assim, então uma dor como a de Remliel era impensável. Era errada. Porque ele poderia piscar os olhos quantas vezes quisesse.

Mas jamais iria fechá-los para sempre um dia.

Isso devido ao fato de que eram “excremento de Deus”. [4] E “excrementos de Deus” jamais morriam.

...Com quem ele falara um dia?...

Mihael...?

Não lembrava. Mas lembrava-se da sua voz.

Não seria bom se pudéssemos, um dia, sentir dor sem precisarmos nos conter? Como se fôssemos... Humanos?

Mas somos apenas anjos.’

‘Sim. Só anjos. Mas, não seria bom?’

E Sehriel lembrava-se de como assentiu. De como concordou, do fundo da alma, que aquele seria o presente mais belo de todos. A dádiva suprema concedida à um anjo...

‘Seria a melhor coisa deste universo.’

...Poder ser capaz de chorar sabendo que, um dia, a dor iria acabar.

A única coisa que da qual a matéria orgânica tinha certeza é de que, um dia, iria desaparecer. Morrer. Mas a matéria inorgânica nunca tem este prazer.

Como dissera Mihael...

‘A imortalidade só existe porque existe a mortalidade.’

‘Mas nós não estamos vivos.’

Nem vivos, nem mortos.’ – concordou ele. – ‘Apenas existimos.

Para dizer a verdade...’ – suspirou. – ‘Eu sequer compreendo porque o Universo nos deu sentimentos, se também nos deu vida eterna. Ou melhor... Será que temos sentimentos de verdade? Ou é apenas mais um mecanismo para nos aproximarmos da vida terrestre?

...Não. Estaria mentindo se dissesse que só se lembrava de sua voz.

Sehriel também lembrava do sorriso melancólico dele.

Você já gostou de um animal ou planta?

Assentiu. – ‘Um animal.

‘...Humano?’

‘Sim.’

‘E como se sentiu?’

‘...Foi o sentimento mais belo que experimentei.’ – confessou o anjo, tentando se concentrar no som das ondas batendo nas pedras. – ‘Foi algo como...

‘...Pela primeira vez, você desejou ser um humano, não?’

Silêncio. A vergonha queimando.

‘...Ardentemente.’

‘Então, você sabe que temos sentimentos de verdade.’ – concluiu. – ‘Mas o problema é que convivemos com criaturas frágeis que vivem um século, se bem cuidadas. É muito pouco tempo. Nós vivemos uma eternidade antes delas e vamos continuar aqui. É pouquíssimo tempo. Então, também acabamos sentindo as coisas tão intensamente. Isso é muito...

‘...Triste?’ – arriscou.

E tão belo quanto.

...A dor de um anjo devia ser contida. O mínimo possível, o mais distante que pudesse tornar.

Para um humano, isso seria patético. O mesmo que alguém dopar-se para fugir dos problemas.

Mas os homens sempre podiam dar tempo ao tempo.

E, um dia, chegaria a morte e os levaria.

Mas criaturas imortais não tinham este privilégio. Por isso, do ponto de vista de matéria sentimental e inorgânica, aquilo não era um sinal de fraqueza. Não era patético. Era necessário. Talvez, o único remédio que conhecessem.

...Isso porque havia algo muito pior que a morte, aquela que os separava. Muito mais perigosa até mesmo que as palavras.

Havia também a memória.

Não. Antes que ele visse qualquer ilusão diante de si, os olhos forçaram-se a se abrirem. E tudo o que viu foi o céu. Ele tinha uma cascata de fios negros encobrindo-o parcialmente, e Sehriel compreendeu em questão de milésimos.

O céu continuava a se afastar cada vez mais.

Do jeito mais seguro que pôde, colocou-se no chão. Do jeito que sempre colocou-se quando caía em pleno vôo.

E, no momento em que todo seu peso transferiu-se para os membros inferiores, sentiu uma dor aguda e penetrante, como se milhares de pequeninas agulhas atravessassem sua pele. A dor de uma ferida aberta que sangrava profusamente.

O sangue, por um breve momento, foi a única coisa na qual se concentrou. Ele manchava sua roupa, escorria por seus ombros e suas costas, grudava-se em cada poro que conseguia encontrar. E era tão quente quanto a pele de um mamífero. Um pequeno corte nunca é o suficiente para isso ser percebido, mas uma ferida daquela magnitude mostrava como nunca; o sangue é muito quente. E derramava-se, não queria parar. Era como remar contra a maré.

Mesmo assim, lembrou-se do ondular negro que, por um momento, explodiu diante de seus olhos e cobriu o espectro de cores do amanhecer – do roxo ao dourado-vivo – da abóbada celeste. E soube o que era aquilo.

Então, diante disso, suspirou. – “...Você não fechou os olhos.”

E sentiu-a estremecer em resposta. – “Desculpa...”

“Não, tudo bem...” – riu. – “Eu já sabia que Maiko-chan não iria conseguir. Estava, na verdade, esperando por isso.” – e acariciou sua cabeça, como se faz com uma criança.

“Me desculpe...” – repetiu.

Houve o silêncio. Maiko Isono realmente achou que o havia decepcionado.

E sentiu-se, vendo quão estranho aquilo soava, como uma criança que é vista negativamente pela mãe. Com desapontamento.

Mas não sentiu aquilo por ‘Himitsu’. Era ‘Sehriel’ cuja reação a preocupava.

“...Eu é quem peço desculpas.” – ele suspirou, então.

E, destarte a surpresa, ela se obrigou a deixar o abrigo de seus braços e encará-lo de forma desentendida.

“Hã? Mas você não...”

“Manchas de sangue são difíceis de lavar.” – ele disse. – “Se não fizermos isso logo, não sei se dá tempo...”

“Ah...” – e encarou sua própria roupa.

O uniforme escolar, de fato, estava cheio de respingos de sangue. Não tinha nenhum desenho ou padrão definido, eram simplesmente pontos aleatórios de vermelho-vivo. Provavelmente, pensou, foi daquele golpe. Fora tão horrível; o sangue literalmente esguichou!...

Muito mais do que o medo da queda, aquela coisa vertiginosa que a fazia perder o ar a cada metro, com uma sensação de que iria vomitar tamanho o frio no estômago, e agarrar-se à Himitsu com ainda mais força do que o usual, ela se preocupou com aquele sangue.

Porque o ouvia esguichar ainda. O vermelho continuou sujando-a, mas muito mais sujou à ele.

“Acho que o meu ainda podemos salvar. Mas teremos de comprar um novo pra você...” – Maiko sorriu.

Ele assentiu. – “É verdade.”

“...Você só me dá trabalho.” – suspirou a garota, mesmo que, na verdade, fosse exatamente o contrário.

Mas, no meio de uma guerra, ela sorriu; lembrando-se daqueles tempos em que ela achou que sua vida ainda estava normal e definitivamente aceitável.

“...Desculpe, Maiko-chan.”

Ah, aquele era Himitsu. Seu Himitsu.

Ele estava ali, através de Sehriel. Duas consciências em um só corpo; mas a japonesa sabia muito bem. Sabia que era ele quem, naquele momento, baixava os olhos, envergonhado.

“Tudo bem, vai. Levante a cabeça.” – desta vez, foi ela quem acariciou a dele.

E, só por um momento, um pequeno lapso de segundos, ela sentiu como se toda uma vida estivesse de novo passando diante de seus olhos. Ela estava reproduzindo uma Maiko Isono que desapareceu há muito tempo, juntamente com aqueles dias de paz.

No meio da guerra, aqueles passarinhos esqueceram-se, mesmo que por aquele curto espaço, de que estavam diante da morte. Um último cheque.

“Ainda está de pé...” – a voz atrás deles resmungou.

E, de imediato, Maiko viu-se uma vez mais abraçada daquela forma estranhamente temerosa. E visualizou aquela que havia conseguido ferir Himitsu, pela brecha que os braços do mesmo deixavam.

Remliel. Aquela garotinha de asas vermelhas e uma foice anormalmente grande se comparada à ela. Aquela que, de acordo com a própria, tinha a aparência da ‘Deusa’ anterior de Sehriel.

A jovem não pôde pensar em mais nada senão “o mal absoluto”. Sim. Remliel respirava o ódio; vivia para o ódio.

E aquilo a transformou em um monstro. Seria muito triste se não fosse tão assustador. E o que tornava a situação ainda mais insuportável era justamente aquilo: desta vez, a nova vítima era a própria Isono.

Mas Himitsu (ou seria Sehriel?) continuava quieto. Silencioso demais; como se, de alguma forma, filtrasse a presença dela do cenário.

Maiko só podia comparar, temerosa, aquela atitude dele à de alguém que deliberadamente ignora outro alguém, a fim de evitar conflitos desnecessários.

Mas, infelizmente, aquele era um conflito desnecessário por si só; um que se alastrou por mais de um milênio. Era praticamente inimaginável.

“...Eu pretendia ceifá-lo numa tacada só.” – suspirou a loira. – “Mas parece que você é mesmo como uma barata, Sehriel: precisamos sempre nos certificar de pisarmos uma segunda vez ou simplesmente se levanta.”

Revirando os olhos, ela olhou em volta, como quem se reconhece no cenário.

“Estava tentando fugir de mim. Até quando vamos ficar assim, correndo um atrás do outro, hã?” – suspirou. – “O menino Hajaya foi muito mais corajoso em seu grito de morte.”

Diante daquilo, Maiko engoliu em seco.

Najato. É mesmo... Tudo parecia-lhe tão irreal, tão rápido, tão estranho que ela sequer lembrou-se, até então, que de fato Najato Hajaya havia sido...

Não. A hora de chorar por ele estava perto e longe ao mesmo tempo. Mas não era ali. Não com todo aquele medo consumindo as veias.

Se uma pessoa como Najato Hajaya perecia diante de Remliel, então ela, Maiko Isono, uma simples colegial com um punho um pouco mais forte que a maioria das garotas, não tinha chance alguma.

Iria ser esmagada se Sehriel perdesse.

Mas o mesmo estava tão quieto, tão protetoramente envolvendo-a que... Ela duvidava muito que isso fosse acontecer.

Estava tão quieto...

“Himitsu?...” – chamou-o. Por Deus, quieto demais.

“Vamos lá, Sehriel. Já chega disso. Levante-se e venha me enfrentar como homem ou me dê a garota Isono e poupemos o trabalho!”

Os passos... Remliel estava se aproximando.

Seu caminhar de infante, delicado e ritmado, era tão diferente daquela imagem de ódio animalesco que ela exalava.

Era praticamente sem sentido associar as duas coisas.

O corpo da japonesa tremeu inconscientemente. Porque, quanto mais os passos chegavam, mais o cheiro de morte vinha junto; mais aquelas mãos invisíveis pareciam ávidas, prontas a agarrar e levar.

E Himitsu continuava tão parado. Tão... Estaria ele ignorando-a ainda?

Ou na verdade...?

“Maiko-chan.” – e, então, subitamente, ele sussurrou-lhe.

“Ah!” – e ela estremeceu. Aquele timbre... – “O que foi? O que...”

“Tem de me prometer uma coisa.”

Mesmo com aquela voz tão diferente do usual, ainda mais estranho do que era com Remliel, Himitsu Isono (e disso ela tinha certeza) tocou-lhe o rosto.

Tracejou-o com vagar, como quem saboreia aquele toque com toda a alma. Quem sabe, uma última vez.

“...O que?” – ela sussurrou, tentando manter, ao menos, sua voz firme.

“Promete que não sairá daqui, aconteça o que acontecer?”

Maiko encarou-o, num surto de coragem.

Aquele era um Himitsu que ela não conhecia. Alguém no limiar das duas personalidades. Havia fogo em seus olhos azuis.

Eles, geralmente gentis e calmos como a superfície de um lago, como o céu plano coberto de sol, agora tinham outra tonalidade; uma profundidade totalmente nova. E perigosa até demais.

Era o poder de uma decisão?...

“O que você...”

“Prometo que não irá acontecer nada com você.” – ele continuou, acariciando-lhe o rosto e o tomando em suas mãos. – “Mas precisa me prometer, igualmente, que não vai sair daqui.”

E ela sorriu. Porque, subitamente, muito mais que Najato, muito mais que o medo, lembrou-se de como havia uma Maiko Isono que, no passado, não acreditara nas palavras dele.

É claro que Sehriel a protegeria. Os dois o fariam. Isso era tão certo quanto o nascer e o entardecer. Tão certo como o oxigênio presente ali.

Talvez, isso lhe fosse suficiente.

Talvez, fosse a coisa mais preciosa que jamais teria.

“Sim. Tudo bem, Himitsu, eu prometo...” – por isso, desta vez, não houve hesitação nenhuma em sua resposta.

“Obrigado.” – ele sorriu.

E voltou a ficar sério em seguida.

...E só então Maiko ouviu uma vez mais os passos.

Havia, por um instante, se esquecido de Remliel. Aquele era o poder do loiro: suas mãos afastavam toda e qualquer dor sua.

Fora uma tola por não ter percebido mais cedo que isso também era um fato.

Porque, afinal, ‘Himitsu Isono’ nascera especialmente para ela.

“Que patético... Finalmente desistiu de lutar e vai ficar só esperando pela morte dela?...” – o riso de ironia mórbida da anjo inorgânica era, quem sabe, o único som a partir dali. – “Realmente patético...”

Uma vez mais, o profundo silêncio.

“Me pergunto como Arda foi morto por alguém como você...”

E, de repente, um estrondo. Tão forte, tão rápido, que Maiko estremeceu violentamente, tendo que esganar um grito abafado antes que ele saísse.

Uma estranha nuvem de poeira ergueu-se, cobrindo parte daquele cenário feito de caos e silêncio.

E Sehriel ergueu-se no momento seguinte, deixando a morena onde ela devia ficar até o fim.

Enquanto ele se levantava, Maiko Isono viu seu rosto.

E tudo o que pôde divisar em sua expressão era asco. Ódio. E o desejo absoluto de violência. A justiça com as próprias mãos.

E, mais do que tudo, aquilo que a deixou parada não foi necessariamente a promessa que fizera à ele. Foi aquele sangue.

Não o de suas costas, com a camisa rasgada pela foice. Mas o de sua mão.

Aquele que pingava tão alto, tão estranho. O sangue, sem dúvida, da anjo das asas vermelhas, arrancado em algum espaço de tempo entre aquele ódio borbulhante e o estrondo que ela ouvira momentos antes.

Só isso. Sangue e silêncio.

Remliel desaparecera em algum lugar naquela poeira.

“Cale essa maldita boca.” – só então Sehriel rosnou aquela resposta. – “Cale essa boca agora ou eu vou fazer isso por você.”


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Notas finais do capítulo

[1] Geisha (ou Geiko) significa, literalmente, ‘Artista’. É o nome dado às jovens de entretenimento tradicional do Japão, cujas habilidades vão de Literatura à danças e música clássica.

[2] Em Grego tradicional, significa ‘Esquecimento’. É um dos rios do Hades (Inferno), onde as almas são mergulhadas e se esquecem de sua vida anterior.

[3] Yuuko (xxxHolic) que perdoe por isso, mas de fato, desde os primórdios da filosofia japonesa prega-se que nomes são sempre importantes na composição de um objeto ou pessoa. No Japão, esse princípio é conhecido como Kotodama (literalmente, ‘Alma da Palavra’).

[4] Só pra constar: este termo foi usado por Rosiel, em “Angel Sanctuary”, no volume #7 (brasileiro).



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