Esperanto:solfege escrita por Petit Ange


Capítulo 12
Tom XXI: O Som e o Silêncio / Tom XXII: Milagre




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Voe, voe, passarinho...

Em meio ao caos de uma Tokyo devastada...

Com meu próprio sangue escorrendo de mim...

Sentindo os braços dele me envolvendo tão carinhosamente...

...Você sabe que não pode fugir.

Mais ou menos na tarde do dia 24 de abril...

...Eu morri.

 

Esperanto:Solfege
Petit Ange

 

Tom XXI: O Som e o Silêncio.

 

Ela olhava para seu joelho ralado, e cada vez que o fazia, sempre se assustava com o que parecia ser um grave ferimento. O sangue brotava como se fosse água saindo de dentro da terra. E quando ela apertava a região do joelho, o líquido escarlate parecia escapar com velocidade redobrada.

Não podia evitar. Continuava sentada naquela calçada de pedra, com seu kimono sujo de terra, o joelho machucado. E os olhos vertendo lágrimas.

“Mamãe...!” – chamou. – “Mamãe, aqui...!”

Logo após ter choramingado, ela ouviu os passos delicados de sua mãe, passos de um par de pés minúsculos enfiados em zoris [1] de plataforma média.

Ela sentiu um suave perfume floral, e então, ouviu o farfalhar do tecido do kimono. E, logo, uma moça estava ajoelhada diante dela.

De cabelos negros como os da criança, presos num coque no alto da cabeça, a jovem tinha os delicados olhos pretos e a pele pálida como a de uma boneca japonesa. O kimono que usava era negro, com desenhos de pétalas róseas de cerejeira. Um suave sorriso iluminou sua face de contornos perfeitos.

“O que aconteceu, Maiko-dono?”

Logo depois dessa pergunta, ela percebeu o machucado no joelho rosado. E, com imensa ternura, tocou-lhe na perna.

“Como foi cair desse jeito, querida?” – perguntou, surpresa.

“Eu tropecei... Minha zori rasgou...!” – apontou para o chinelo de madeira, um pouco distante da menina. – “Meu joelho dói...!”

“Ora...” – ela suspirou. – “Não chore mais, Maiko-dono, minha pequenina. A mamãe te carrega. Não precisa mais chorar.”

Em questão de minutos, a pequena era levada no colo pela mãe, no passeio diário que elas faziam por entre as árvores da praça. Mesmo com o joelho latejando, naqueles momentos, a criança era a criatura mais feliz do mundo.

Tanto a senhora Isono quanto sua cria achavam que aquela felicidade iria durar para sempre.

Uma família tradicional, tranqüila e feliz.

Um conto-de-fadas.

 

...

“Dizem que ela pegou no volante e fez o carro perder o controle...”

“Será mesmo? Eu ouvi falar que acham que é suicídio coletivo.”

Do lado de fora da casa que cheirava a incenso e cigarro, a criança de cabelos negros e um vestido de luto tão preto quanto encarava o chão. Mais precisamente, acompanhava a rotina incessante de um grupo de formigas que passava por ali, levando pedaços de folhas nas costas.

Maiko Isono, a sobrevivente do trágico acidente envolvendo a tradicional família Isono. Uma pobre criança, cujo destino seria decidido, agora, pela família paterna da mesma.

Os adultos não a deixaram ver os corpos dos pais. Alegavam ser ‘coisas que uma criança não devia olhar’.

“Que nada... Não importa o que foi. Vocês viram o estado deles? Os legistas fizeram um trabalho de mestre em reconstituírem os cadáveres!”

“Sim, eu ouvi que o pobre Isono-kun estava irreconhecível...”

“Como essa menininha escapou sem nenhum arranhão?!” – perguntavam-se as vozes veladas, exalando aquele maldito cheiro de cigarro.

“Que injusto para Isono-kun e a esposa! Eles eram tão bons!”

“Poderia ter morrido a criança, não acha? Eles podiam ter outra filha...” – comentou uma mulher obesa.

“Não diga isso!... A criança não tem culpa!”

Maiko permaneceu quieta, aquiescendo silenciosamente enquanto ouvia a conversa das adultas.

Elas estavam erradas... Todas erradas...

Ela era a culpada.

Sua avó, seus tios, todos que olhavam para ela, por trás do luto... Todos diziam a mesma coisa, seja com voz, seja com gestos.

Ela era culpada. Ela merecia ser pisoteada.

Humilhada. Odiada.

Ela merecia tudo aquilo por ter sobrevivido, por não ter morrido junto com os pais. Por ter dado trabalho para a avó, por ter acabado com os tios...

Por sua culpa, todos estavam muito, muito tristes.

Por isso, Maiko, aquela criança, não merecia compaixão.

E, sim, o ódio. Puro e simples. Queria mesmo que todos a odiassem e percebessem que ela não era digna de pena.

Era uma assassina.

De acordo com os parentes e conhecidos, assassina dos próprios pais.

“Querida... O que aconteceu? Teve outro pesadelo?” – a voz de sua mãe ainda estava fresca em suas memórias.

“Quer dormir conosco, Maiko-dono?” – a do pai também.

“...Estou com saudades dos senhores.” – ela respondeu em alto e bom som, sozinha, apenas olhando para aquelas formigas.

Quem sabe o destino que teria, assim que a avó e os tios decidissem...

Mas queria mesmo era ter morrido naquele acidente. Era só o que queria, só um mísero desejo: ter morrido...

E permanecia pensando, deitada em sua cama, ‘Por que mãe? Por que não vem me salvar agora?’.

 

Desde que as aulas retornaram, depois do acidente envolvendo a aluna morta, os tempos houveram sido de terror e descrença.

“É o que eu estou dizendo, cara!” – o rapaz deu outra dentada no pão. – “Isso não tá me cheirando bem! Definitivamente, meu sensor de Tiranos não me engana!”

E, aparentemente, naquele lugar, entre aquelas pessoas, também não era diferente o clima.

Os outros dois, entretanto, ao contrário do caçador frustrado, permaneciam quietos, comendo seus lanches.

“E a roupa dela?! Isso sim é ainda mais preocupante!” – ele continuava. – “Ninguém aparece de uniforme de Educação Física logo na primeira aula à toa sem um motivo realmente sério!”

Na verdade, Najato era o único que falava alguma coisa. Irieko e Himitsu, cada um em seu lugar, estavam mergulhados no mais profundo e pensativo silêncio.

“E ela apareceu toda machucada no dia seguinte à sua expulsão, né, Himitsu? Cara, isso é mal! Isso é muito mal!” – suspirou pesadamente, passando a mão pelos cabelos negros. – “O cara tá machucando ela sem interferência alguma! É só passar e levar! Isso é muito mal!”

Ignorando os chiliques do caçador, a anjo das asas verdes virou-se para o loiro, que tão logo a percebeu dirigindo-se a ele, ergueu a cabeça.

“Irieko-san?” – encorajou-a a prosseguir.

“Para onde ela vai, assim que começa a te evitar?” – aparentemente, as suas perguntas eram um pouco mais sérias que as do outro.

“Geralmente, se esconde na biblioteca... Ou, em último caso, vai para o banheiro das mulheres...” – os ombros caíram, para completar a figura desanimada. – “Não consigo alcançá-la. Ela sequer olha pra mim.”

“...Já fazem dois dias.” – a anjo suspirou.

“É... Dois dias...” – concordou.

Irieko cruzou os braços, parecendo mais pensativa que o normal. Quando ela ficava com aquela cara, ela dava medo. De tapa-olho, como estava agora, então, mais parecia uma assassina profissional de filme.

“Onde a Maiko-san está agora?” – perguntou, por fim.

“...Provavelmente, na Sala de Advertência. Os professores ficaram chocados com o uniforme de Educação Física dela, ao invés do normal.”

“Ei, Himitsu?”

“Pois não?”

“Por que você ainda não tomou uma atitude?” – mas aquela, pelo seu tom de voz, não era uma cobrança. Era simplesmente um ‘tirar de dúvidas’. – “Maiko está obviamente sofrendo, e você... Só suspira o tempo inteiro.”

O loiro tirou uma mecha de cabelo do rosto, sem vontade, e logo desviou os olhos azuis de sua comida para o gramado límpido.

“Maiko-chan me disse que eu não devia mais interferir... Já estava bom. Eu entendo o ponto de vista, dela, mas... Às vezes, eu quero muito arrombar aquela porta e tirá-la de lá...” – suspirou pesadamente. – “Não posso simplesmente fazer isso. Querendo ou não, há variáveis que devem ser consideradas, e...”

“Se eu diminuir as variáveis, você a resgata?” – a anjo declarou, repentinamente.

Najato, que estava sendo até então sumariamente ignorado, e Himitsu, que até deixou o pão cair, olharam-na, sem entender.

“I-Irieko-san...?” – realmente sem entender.

“Homens...” – ela ergueu-se, dando um tapa de leve em sua testa, como que censurando aquela idiotice deles. – “Quanto falta para voltarmos pra classe?”

“Bom, uns oito minutos...” – o caçador estava boquiaberto. – “Que que cê vai fazer, Irieko?!”

“Resolver essa história. Vocês, homens, são um bando de inúteis.”

“E-ei, espera!...”

“Himitsu?” – ela chamou, quando já estava relativamente distante dos dois.

“Pois não...?”

“Ligue para a Maiko. Só mais uma vez. Só insista mais essa vez.” – e, dizendo isso, ela foi andando até o prédio escolar do loiro.

Najato, que já não entendeu nada no início, agora estava entendendo muito menos. Coçou a cabeça, absorto em tentar achar uma explicação racional para aquele súbito surto de caridade.

“Vai entender as mulheres...” – disse, enfim.

 

A desculpa que ela usou foi a mais esfarrapada possível. ‘Eu estava cuidando dos afazeres domésticos, e então... Minha saia rasgou, foi um acidente normal’. Mas, pelo menos, ela adiantou. O professor regente acreditou naquela sua mentira. Ele a fez prometer que daria um jeito de arranjar uma saia nova ou de costurar a sua, e ela disse que iria fazer isso em breve.

A verdade, entretanto, era um pouco mais amarga que isso. E, por isso mesmo, Maiko recusava-se a lembrar dela. Só não havia enlouquecido ainda porque sabia que, em breve, tudo isso ia acabar...

De um jeito ou outro, ia acabar.

Enquanto o professor ia buscar alguns papéis para ela preencher, depois daquela advertência, Maiko tirou o celular do bolso da calça de Educação Física. Sempre quando olhava a tela, um sorriso teimava em querer nascer no rosto; o papel de parede era ela e Himitsu. Foi num dia em que eles estavam se divertindo, um dia inocente, muito distante daquele.

Mas, tão logo nascia, a vontade de sorrir logo morria. Havia milhares de chamadas perdidas ou não atendidas. Todas elas do número de celular do loiro.

Como o celular estava no silencioso, ela viu quando o anjo das asas róseas ligou para ela outra vez, naquele exato instante. Maiko continuou encarando a tela, aquele número conhecido. Mas não tocou no aparelho com a intenção de atendê-lo.

Apenas ficou-o olhando, imaginando que, por trás daquilo, Himitsu devia estar se sentindo frustrado e preocupado.

Queria poder atendê-lo. Mas, definitivamente, não podia.

Quem sabe, agora, as coisas estavam melhores para ele. Morando junto com Najato, as rondas eram mais práticas. E, agora, não havia mais a preocupação de uma Maiko inútil em seu encalço, a ser protegida. Um mundo ideal...

A chamada insistiu até a última possibilidade, e então, o número de chamadas não atendidas veio a se somar. Ela respirou profundamente, exausta.

Mas assim que ouviu o professor se aproximar de novo, guardou o aparelho no mesmo instante em seu bolso de novo.

“Pronto, Isono-san. É só preencher isso aqui e já pode sair pra sua aula.” – ele sorriu, ajeitando os óculos.

“Claro, professor.” – em situações normais, ela estaria emburrada e rebelde. Mas, há algum tempo, ela já não tinha ânimo para ficar assim.

Poucos minutos separaram-na do término daquela tarefa, e assim que a concluiu, ergueu-se, arrumando a roupa amassada.

“Amanhã mesmo estarei com o uniforme de novo.” – prometeu, numa mesura.

“Muito bem.” – o homem assentiu. – “E... Isono-san?”

“Sim?” – virou-se.

“Por favor, procure brigar menos por aí.” – apontou para seu próprio rosto, num gesto claro de quem não gostou dos curativos e outros acessórios do tipo no rosto dela. – “Você é uma boa jovenzinha... Não devia ficar fazendo isso.”

“Claro. Me perdoe, eu tentarei maneirar.” – curvou-se outra vez, retirando-se.

Diferente das outras brigas, na qual ela espancava e era espancada, aquela não era uma guerra normal: tratava-se exclusivamente de um elo fraco, e ela era o tal. Ela é quem sofria as conseqüências físicas. Todas as conseqüências.

No instante em que saiu dali, Maiko deixou os ombros caírem e a fisionomia apagar-se outra vez. Parecia, novamente, um zumbi.

Ela se virou, pronta para já caminhar de volta a sua sala e suas aulas, mas esbarrou, distraída, em um obstáculo.

“Ah, perdão... Eu estava...” – quando fixou seus olhos no dito obstáculo, engoliu em seco. – “Irieko?!”

“Bom dia, Maiko.” – a moça cumprimentou.

A japonesa teve ímpetos de sair correndo. E, sem dúvidas, teria mesmo feito isso, se não sentisse, de repente, a mão pálida da outra agarrar-se no seu ombro.

“Receio que tenhamos de ter uma conversa.” – ela disse, séria. Seu tom de voz era sombrio. – “Minha saia rasgou, hein?” – imitou sua frase, dita anteriormente.

“Vo... Você estava ouvindo...?!” – engasgou.

“Agora, seja uma boa menina e me conte sem enrolação porque diabos está evitando a todos nós. O que diabos aconteceu, assim que Himitsu deixou a residência Isono. Se a explicação me convencer, eu paro de te incomodar, e Himitsu e Na-chan farão a mesma coisa.” – ela disse, sem se abalar. – “Se não me convencer, eu receio ter que insistir e insistir, até que resolva me contar tudo.”

“Já chega, me solta! Irieko, você nem desse colégio é!” – ela debateu-se. – “Saia daqui, é sério, me deixe ir embora!...”

A última coisa que queria era mais problemas.

Ninguém precisava saber do que era composta a sua nova vida, sozinha no mesmo teto que Takuchi Isono. Só ela sabendo já estava suficientemente terrível.

“Vai me contar por bem?” – continuou, os olhos âmbares fixos nos castanho-escuros da japonesa.

“Não vou te contar nada, solta o meu ombro!...” – pediu de novo, tentando, em vão, libertar-se daquele aperto de aço.

“Eu temia que você fosse ser assim mesmo, teimosa.” – suspirou.

Irieko, então, fez o que Maiko não achou que ela faria: pegou-a no colo, como naquele dia, onde eles enfrentaram (ou quase) o youkai do lago. E a anjo das asas verdes fazia isso com uma facilidade surpreendente, como se Maiko fosse um saco de plumas em suas mãos firmes.

Por mais que a jovem se debatesse em seus braços, a outra não se abalou nem um pouco. Pelo contrário, foi andando, como se nada acontecesse, até a janela mais próxima, e abriu-a, deixando que a fresca brisa da manhã brincasse com seus cabelos esverdeados.

“O-o que vai fazer, Irieko...?!” – Maiko perguntou, assim que a viu impulsionar-se para frente.

Em um hábil movimento, a japonesa ouviu o som de um farfalhar de asas, como as pombas da praça que levantavam vôo quando se chegava perto demais delas. E, ao olhar para baixo, ela viu várias penas verdes caírem, delicadamente, enquanto o chão e a escola se afastavam cada vez mais, numa velocidade surpreendente.

IRIEKO ESTAVA VOANDO, COM ELA NO COLO! Só essa compreensão fez seu estômago revirar dolorosamente.

“AIEEEEE~!” – agora, diferentemente de antes, quando ela tentava se soltar, Irieko estava era sendo mais esmagada.

“E agora? Vai me contar?” – ela sorriu, cínica.

Maiko engoliu em seco. – “Não!...”

Num minuto, ela estava sendo amparada pelos braços da moça de tapa-olho negro, e no instante seguinte, repentinamente, aquele porto seguro desapareceu. A garota dos cabelos verdes como suas asas simplesmente soltara-a, deixando que se virasse como podia agarrando seu pescoço.

Maiko nunca achou que isso fosse, de fato, acontecer. Quando voou com Himitsu, no dia da boate, ele a segurou protetoramente, jamais deixou que ela escorregasse e fez algumas manobras perigosas, mas todas segurando-a firmemente.

Irieko voava alto e em linha reta, nada assustador como naquele dia, onde a chuva era torrencial e as manobras a faziam querer vomitar... Mas saber-se simplesmente amparada pela força de seus próprios braços era assustador demais!

“AAAAHHH! IRIEKO, PARE COM ISSO!” – segurando-se ainda mais forte, Maiko já podia até mesmo ver a sua morte, por algum motivo.

“Só te seguro se me contar o porquê de estar fazendo isso.” – e a anjo insistia.

Que Shiho Himeno o quê! Irieko sim era o mal em pessoa!

E, ao ver que ela não ia cooperar nem assim, a moça apelou para sua última arma: com um movimento rápido como o de uma ave de rapina, ela deu uma volta, e quando a japonesa percebeu, ela estava assim, suspensa no ar por milésimos de segundo.

E, então, começou a sua queda livre.

Por sorte, o uniforme de Educação Física era uma calça, o que obviamente não mostraria sua calcinha. Se estivesse de saia, como estava Irieko, sem dúvidas, a cena seria ainda mais deprimente.

A maluca soltara-a! Soltou-a assim, no ar! Maiko caía como se fosse um passarinho abatido por um caçador.

Por algum motivo, a cabeça enevoou, e o medo assaltou-a: o mais primitivo instinto de sobrevivência dizia-a que aquela era uma situação de risco extremo, que a anjo não estava brincando (e talvez até já tenha feito isso muitas vezes com outras pessoas), e que a morte por espatifar-se no chão numa altura daquelas e com aquela velocidade... Bem, não era nada simpática.

“EU CONTO!” – rendeu-se, enfim, contendo-se para não gritar como uma criança. – “EU CONTO, IRIEKO! APENAS VOLTE AQUI!...”

No segundo seguinte, um par de braços pálidos envolveu seu corpo trêmulo.

E, então, uma anjo de cabelos e asas verdes e tapa-olho sorria animadamente, um sorriso vitorioso e irritante. – “Gostou do seu bungee jump?”

“E-eu... E-eu não creio que... Ca... Cair para o vazio... Sem nenhuma corda... Seja muito... Divertido...” – ela sussurrou, tremendo mais do que se tivesse visto uma assombração.

Irieko riu. – “Agora, seja uma boa menina e me conte tudo.”

“...Só se você me prometer que não vai falar nada pro Najato e pro Himitsu. Isso fica sendo nosso segredo. Não fala nada, por favor...” – sussurrou. A última coisa que queria era deles sabendo daquela sua miséria.

“Palavra do Houka no Tenshi, Iriel. Não vou falar nada.”

A anjo deu meia volta, pronta para voltar à escola e parabenizou-se mentalmente por fazer tudo isso em tempo suficiente para não ter problemas com algum segurança que passasse pelos corredores. Posta sob pressão, Maiko Isono era uma criancinha dócil.

E isso era muito bom. Muito bom.

“...Meu tio.” – ela sussurrou, escondendo o rosto.

“Quem? Aquele tal de Ta-algumacoisa Isono?” – ergueu uma sobrancelha, começando a imaginar coisas. – “Maiko, o que aconteceu?”

“...Meu tio está abusando de mim.” – ela suspirou. – “Desde o dia em que Himitsu deixou aquela casa.”

Está, no presente, não estava.

Tem alguma coisa errada, cara!’, Irieko ouviu Najato resmungando, em sua mente, e repentinamente, deu-lhe razão. ‘Meu sensor de Tiranos não falha!

Maldição! Irieko iria bater em Himitsu assim que o encontrasse de novo!

 

 

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Petit Ange

 

Tom XXII: Milagre.

 

Ela sempre soube. Ou melhor, desde que os ouviu falar.

Alguma coisa em si soube daquilo. Talvez porque, em alguma outra vida, já tenha passado por isso, com algum de seus ‘deuses’. Talvez porque simplesmente soubesse entender as reações humanas.

Mas Irieko sabia que só podia ter algo a ver... Com aquilo.

E, por isso mesmo, se aqueles dois idiotas só sabiam lamentar pelos cantos, ela iria tomar as rédeas da situação. Foi o que fez: as ordens que deu foram claras e muito precisas.

Para Himitsu: ficaria no apartamento do caçador e da anjo gótica, faria a comida que Maiko mais gostava e iria recebê-la, como um bom anfitrião. Também iria ligar para o serviço dela e dizer que a mesma estava adoentada, que não ia poder trabalhar.

Para Najato: esperaria a garota algumas esquinas antes da loja de conveniência onde ela trabalhava. Não a deixaria ser vista por ninguém de lá. Iria levá-la até a porta do prédio e começar sua ronda normal de caçador de youkais.

E, para ela, Irieko, sobraria os bastidores.

Ela estava acostumada, afinal. Mas aqueles bastidores, em especial, ela gostou de estar. E, agora mesmo, parada diante daquela porta, respirou fundo, buscando seu auto-controle.

Na-chan havia dito à Himitsu, quando ela falou de seu plano, “a Irieko é a melhor de nós três pra essa missão. Eu não ia me agüentar”.

De fato, ela era a melhor deles para ir até a residência Isono.

Neste tipo de situação, o melhor era NÃO esperar. A japonesa não tinha todo esse tempo, e o sofrimento que algumas horas naquele ambiente representavam era o suficiente para a anjo dos cabelos verdes agir com cautela e rapidez. Sem nenhum segundo a ser perdido.

Tocou a campainha pela primeira vez. Não ouviu um só movimento.

Tocou-a mais uma vez. Novamente, nada.

Aquele homem estava lá, seus ouvidos aguçados captavam o som abafado da TV. O cretino não queria atendê-la, isso sim.

Apertou a maldita campainha de novo, mas não ouviu movimento de lá.

Trincando os dentes, a garota fez o que qualquer pessoa sensata faria: jogou seu ombro contra a porta. Duas vezes foram suficientes, com sua força de criatura inorgânica, para derrubar a porta.

“Com licença, Isono-san.” – ela foi pedindo, passando como se nada tivesse acontecido.

Com o som ensurdecedor, a silhueta de um homem divisou-se pelo corredor. E, logo, ele apareceu: o grotesco tio. A aparência dele era de alguém acabado. Mas, por debaixo daquela camada de desespero, ele era alguém relativamente jovem. Irieko sacudiu a cabeça para si quando viu a garrafa de alguma bebida alcoólica qualquer na mão dele.

“Mas o que...?!” – ele bradou, olhando da porta para a garota estranha: uma estudante com o mesmo uniforme da sobrinha, mas de coloração azul, ao invés do negro da saia da outra. Tinha um tapa-olho preto e usava coturnos góticos, além de uma spike no pulso esquerdo. – “Quem é você?! O que fez com a por...”

“Eu vim pegar as roupas da Maiko-san, sua sobrinha.” – Irieko o cortou, antes que ele falasse mais. E já ia andando, não esperando sua permissão. – “Poderia, por favor, me dizer onde é o quarto dela?”

Seguindo a perigosa ameaça que era aquela moça, o homem rapidamente barrou seu caminho.

“O que diabos pensa que está fazendo?! Maiko não vai a lugar algum! E você destruiu minha porta!”

“Tem razão... Maiko pode não ir a lugar nenhum.” – concordou. – “Mas o que a Polícia diria, assim que soubesse de um caso de estupro incestuoso...? Será que o senhor também não iria para lugar nenhum?”

O silêncio disse tudo.

Irieko viu que ele queria desesperadamente rebater aquela afirmação, e não encontrava palavras para tal. E também viu quando ele conteve-se para não reagir com a força física.

Apenas para inspirá-lo um pouco mais, a anjo procurou no bolso de sua saia por alguma coisa. E, quando a achou, puxou um maço de notas.

“Não se preocupe, isso dá para o conserto da porta e ainda sobra para mais dessa distração lamentável na sua mão.” – e ela o viu perder a fala. E sorriu por isso. – “Agora que nos entendemos... Onde é o quarto da Maiko-san?”

 

“Cheque-mate!”

A foice fincou-se no chão com tal força que o som sequer parecia o de metal chocando-se no calçamento da praça.

Uma jovem de cabelos ruivos e encaracolados parou, estática, quando viu sua ‘deusa’ cair ao chão, imóvel e silente. As asas da cor do mel das abelhas sacudiram-se uma última vez, e as penas ao redor do cenário cessaram.

Penas vermelhas e douradas pararam de cair.

“Yuriko-chan...” – a garota sussurrou, incrédula, vendo a pequenina que devia estar, no máximo, na terceira série, caída.

“Cheque-mate, Eiki no Tenshi [2], Ambriel!” – a pequena de pele pálida sorriu ainda mais, acariciando o cabo de sua arma. – “Agora, leve essa sua moleca para o Elysion. [3]”

Enquanto Remliel ria, enquanto a tal ‘Ambriel’ continuava abraçada ao corpo daquela criança, os gêmeos observavam ao fundo a cena.

“...Nunca havia visto um ‘Erasi’ trabalhando antes.” – Mashiro comentou. – “Você nunca me deixa te ver em serviço, Shiho-kun.”

“É que a visão é grotesca, Mashiro-kun.” – o anjo das asas negras sorriu. – “É mais ou menos como foi com essa criança.”

Enquanto eles conversavam, houve tempo o suficiente para que a loira voltasse até os gêmeos, e sorrisse abertamente para ambos.

“Viu como se faz, Suriel? Nós trabalhamos assim, chegar e ceifar, repetidamente, com todos os anjos e ‘deuses’ que encontramos, sem ficarmos fazendo tratos desnecessários com hanyous vingativos.”

“...É, eu acho que ainda não peguei o jeito de um ‘Erasi’.” – ele sorriu.

“Para onde foi Ambriel com o cadáver?” – Mashiro perguntou, de braços cruzados.

Remliel pôs o cabo da foice apoiado em seus ombros, e tão rápido quanto apareceram, suas majestosas asas escarlates desapareceram, numa chuva de graciosas penas. Ela pareceu pensar um pouco, com um risinho de escárnio.

“Não sei quanto ao corpo, mas... A alma foi para o Elysion, ora essa.” – disse, por fim.

“...Isso que você fez foi desnecessário. Este anjo não estava fazendo nada de errado para você atacá-lo.”

Remliel parou, erguendo uma sobrancelha:

“O que você andou ensinando pra esse menino, Suriel?”

“Absolutamente nada.” – ele continuou sorrindo. – “Mashiro-kun sabe que eu sou um ‘Erasi’ e não comenta nada disso comigo. Até desaprova o que eu faço, também.”

“Estamos fazendo nosso trabalho, hanyou.” – ela replicou, aquela sua mania de olhar para sua foice enquanto acariciava-a, como se ela fosse viva. – “Os ‘Construxi’ são uma desgraça para os Anjos! Ficam aí, adiando a morte dos seres orgânicos... A harmonia natural das coisas é bem clara. A morte chega rápido e ainda mais rápido ceifa a vida de todos.”

“Ainda sim, foi desnecessário...” – sussurrou.

“É você que fica andando com esse ‘Erasi’ todo errado. Ele já foi um ‘Construxi’ babão do mesmo nível daquele... Sehriel!” – praguejando assim, naquelas horas, aquele anjo assassino parecia simplesmente uma criança mimada. E isso sim era perigoso: ela era uma garça entre as garças. – “Odeio anjos como o... Sehriel ou o Hamael. Odeio mesmo. Uns idealistas sem-noção. Ficam aí lutando contra o que não tem solução, como se estivessem fazendo um grande favor.”

O gêmeo youkai tinha de discordar. No fundo mesmo, ele até simpatizava mais com este tipo de anjo. Claro que, desde que Shiho (ou Suriel) começou a obedecê-lo, as mortes que causava como um ‘Erasi’ foram diminuídas drasticamente.

Um ‘Erasi’ não precisava de ‘deuses’. Por isso, de fato, quando Remliel dizia que Shiho ainda era um maldito idealista, no fundo... Ele concordava.

“Shiho-kun, vamos embora?” – ele deu meia volta. – “Cansei de ficar assistindo esta menina brincar.”

“Claro, Mashiro-kun!” – o outro sorriu, acompanhando-o. – “Nos vemos por aí, companheira de mortes?”

Os dois ouviram qualquer coisa como ‘Moleques...’ ser proferida pelos lábios de Remliel, e a mesma sequer deu-lhes adeus. Apenas continuou seu caminho.

 

Respirando profundamente, Maiko saiu da estação do metrô, sentindo o ar frio da noite brincar entre seus cabelos. Baixou os olhos, cansada, certa de que se continuasse daquele jeito, iria dormir. Há dias não conseguia ter uma noite de sono decente. Por vários motivos.

Antes que começasse a pensar em coisas desnecessárias de novo, ela olhou ao seu redor: a vida continuava. Haviam pessoas rindo, outras falando no celular, outras com um rosto preocupado... Outras andavam de mãos dadas com seus namorados, outras estavam sozinhas, algumas com sacolas de compras de mercado ou lojas...

A vida, definitivamente, continuava. E isso era triste. Ela não precisava de ninguém para fazer isso.

Alguns considerariam aquele o dia mais feliz de suas vidas, outros o mais triste. Mas disso Maiko sabia desde criança; que ninguém é necessário no mundo. E, aí estavam mais pensamentos desnecessários.

A depressão que a assaltou, desde que Himitsu foi embora, era mais forte que qualquer outra que já teve.

Foi como se... Toda a sua vida tivesse ido embora junto com as palavras do loiro, junto com suas malas, seus passos firmes.

Tudo bem. Eu vou, Maiko-chan. Eu vou embora.

Ela não queria que tivesse ido. Mas, se tivesse ficado, se tivesse brigado mais com Takuchi Isono... Temia o que poderia acontecer. Himitsu estava melhor lá fora, seguro na casa do caçador Hajaya.

Ao menos, ele merecia isso. Himitsu merecia esse descanso.

Ela também iria continuar com a vida. Como estava fazendo agora. E tentando ignorar o fato de que teve de confessar todo seu martírio a anjo Irieko.

Agora mesmo estava indo trabalhar, como se fosse mais um dia normal. Iria trabalhar bastante, e depois, voltaria para casa. E, com sorte, o tio estaria dormindo ou teria saído. E, então, ela iria respirar com alívio, trêmula... E tomaria um banho. E iria dormir. E iria esquecer que existia um mundo lá fora.

Sua vida tornou-se apenas um punhado de atitudes mecânicas, de coisas que ela já sabia ou não queria se importar.

Mas sua mente, de vez em quando, recusava-se a mergulhar naquela apatia. Às vezes, ela ainda lhe pregava peças.

Como aquela, por exemplo. Oh, ironia! Se não era Najato, parado sentado num banco. Era uma ilusão muito real, como todas as outras que ela tinha. Dando um sorrisinho para si mesma, ela estava pronta para passar por ele e esquecer-se logo de tudo aquilo assim que chegasse para trabalhar, mas uma mão a impediu de continuar seu caminho.

“Oiê, Ma-chan! Até que enfim te encontrei!” – abriu um sorrisão. – “Hoje cê demorou mais que o normal!”

“Najato!” – surpresa. Muito surpresa. – “O que você está...”

“Vamos lá?” – e, sem maiores explicações, ele foi puxando-a, ignorando os olhares alheios na cena. – “Precisamos nos apressar! Eu preciso te deixar lá em casa e ainda fazer a ronda!”

Não, talvez fosse errado dizer que só os anjos eram excêntricos. Aparentemente, aquele garoto era tanto quanto.

“E-ei!...” – tentava argumentar, enquanto era puxada. – “O-o que está fazendo? E-eu preciso trabalhar! Ei...!”

“Não esquenta com isso, viu? O Himitsu já ligou e já cuidou de tudo. A sua chefia pensa que está com mais um ataque de gripe.” – ele explicou. – “Precisa cuidar melhor da sua saúde, Ma-chan!”

Definitivamente, a vida é tão estranha quanto satisfatória.

E, enquanto se afastavam daquele lugar, Maiko pôde ver um rapaz de aparência estrangeira e cabelos ondulados e negros sentado na mureta de um bar. Ele parecia triste. Muito triste.

De fato, pensou, ela devia estar bem assim, se não fosse o caçador aparecendo, literalmente, do nada na sua vida, outra vez.

“Hum... Tá sentindo isso, Ma-chan?” – ele perguntou, mas logo percebeu a bobagem que havia dito. – “Ah, não! Você é uma civil... Humana normal... Que deslize!” – ele riu da própria idiotice. – “Eu tô sentindo youki nessa área, então... Podemos apressar o passo? Vou ter de voltar e checar os arredores.”

“A-apressar o passo...?” – perguntou, ainda em choque.

Assim que ele percebeu que podia fazer isso, pegou no pulso dela firmemente, e saiu correndo, como se fossem duas pessoas desesperadas pelo ônibus.

 

Najato simplesmente deixou-a na porta da casa dele, enquanto ela, abobalhadamente, ainda tentou um “e-ei!”. Tocou a campainha ele próprio e, no segundo seguinte, já descia outra vez até o térreo, dessa vez pelas escadas, com o celular na mão (provavelmente iria ligar para Irieko encontrá-lo de novo naquela área da loja de conveniência).

A eficiência parecia estar sendo uma palavra-chave, porque pouquíssimo tempo depois dele ter saído, antes que ela tivesse tempo de digerir a informação, a porta se abriu. E então, a surpresa.

Geralmente, depois que eles voltavam da escola, em situações normais, iam direto para o trabalho da garota, então, ele continuava de uniforme escolar assim como ela. Mas, quando não tinha aulas, ele se vestia bem assim: nem formal demais, nem informal demais. Quase como um príncipe.

Desde que ele saiu da residência Isono, tudo se tornara triste. Era quase como se estivesse vivendo num mundo monocromático. E, de repente, tão de repente, vê-lo assim... Foi demais para ela. Era como um sonho. Não podia ser real.

“Hi... Himitsu...?” – a voz era tão fraca que, se fosse sussurrada para alguém normal, certamente não teria entendido.

“Maiko-chan.” – ele também parecia tão descrente quanto ela, mas ao contrário da outra, sorria. – “Queira entrar, por favor.”

Temerosa, ela foi dando seu primeiro passo. Era para estar trabalhando, não entrando na casa dos outros. Olhou ao redor, constatando o que já imaginara: a casa, tirando as cortinas abertas (mesmo com as janelas fechadas... Se bem que elas também estavam fechadas na primeira vez em que ela entrou ali), não mudou nada.

A mesma casa de sempre. Aquela mesma atmosfera que ela não sabia descrever, mas que a fazia se sentir bem.

Aquela casa e a sua, a de seu tio, eram totais opostos.

“Maiko-chan, me permite?” – ela ouviu o loiro falar-lhe, estendendo a mão, como se quisesse pegar a dela. Como num sonho.

E, imediatamente, baixou os olhos. Mesmo que fosse um sonho, não mudava a realidade de que ela estava suja, invariável e eternamente. Himitsu era alguém puro demais em sua vida, era uma existência na qual ela se apoiou, entre tantos motivos, por isso... Não podia maculá-lo por tocar-lhe.

“Não... Por favor, é melhor não...” – sussurrou, afastando a sua mão.

Ele deu um sorriso triste. Mas logo pareceu se recompor, exibindo aquele seu riso polido. – “Então venha por aqui!”

Sem maiores escolhas, ainda pensando no que estava fazendo ali, ela o seguiu. Atravessaram o corredor e chegaram, então, ao quarto de visitas, aquele que Najato não mostrou porque era um cômodo sem uso. Assim que o quarto se acendeu, Maiko pôde ver num canto duas malas suas, e mais alguns objetos que não couberam.

“...O que é isso?” – surpresa demais para falar qualquer outra coisa.

“Irieko-san e Hajaya-san, depois de analisarem os fatos, decidiram trazê-la para ficar aqui por tempo indeterminado conosco.” – ele sorriu mais. – “Então, Irieko-san foi falar com nosso tio e pegou as suas roupas.”

Surpresa, a japonesa ergueu os olhos para fitá-lo. E não viu, tampouco em seu rosto, traço algum de mentira.

“Eu vou dormir na sala, então... Você pode ficar tranqüila. O quarto tá bem limpo, você vai ficar ótima aqui, Maiko-chan.”

Definitivamente, era como um sonho.

Para alguém que, até a pouco, estava no inferno, de repente ser jogada para o paraíso daquele jeito era... Não haveria explicações. Nunca.

Os olhos involuntariamente encheram-se de lágrimas. Aquela cena, infelizmente, estava ficando cada vez mais comum em sua vida.

Estava... Salva?

“Seh... Himitsu...?” – ela sussurrou-lhe.

“Sim?” – a voz dele era suave como uma carícia.

Nota mental: encher Irieko e Najato, aqueles dois cretinos, de abraços bem apertados, na primeira oportunidade que tivesse (ou seja, assim que os visse). Isso, se já não estivesse acordada desse sonho perfeito até lá.

Estava... Realmente salva?

“Eu... Estou feliz.” – e ela sabia que isso iria deixá-lo assim também. – “Estou muito feliz... Por voltar.”

A partir daí, para ela, aquilo não passava de uma alucinação. Uma loucura feliz.

Era quase como se tivesse voltado àqueles tempos inocentes, aqueles onde ela não sabia que estava para morrer, aqueles onde ainda era uma menina esmagada pela culpa, pela dúvida. Onde era, se comparada a Maiko de agora, uma estudante normal.

Os malditos haviam bolado um plano perfeito. Era tudo minimamente pensado para que ela se sentisse bem, tão logo pisasse naquela casa.

Ela sabia que Najato e Irieko estavam, aparentemente, nas suas rondas habituais. Então, coube à Himitsu fazê-la sentir-se bem. E ele sabia exatamente do que ela precisava. Sempre soube, afinal.

Brincar ridiculamente de guerrinha de comida na cozinha foi, no mínimo, algo que ela nunca pensou estar fazendo se, atualmente, estivesse em seu trabalho, sorumbática como sempre (quem sofreu mesmo foram as lulas feitas de salsicha... Najato ia ter um troço assim que visse o estado da sua cozinha).

Depois daquele jantar ridículo (que acabou sendo consumido enquanto eles limpavam a bagunça da cozinha), Maiko sentou-se com Himitsu na mesinha da sala e eles fizeram os exercícios de Matemática (por sorte, a mochila dela estava consigo, uma vez que ela saía direto da escola para ir ao trabalho). Parecia fazer eras desde a última vez que sentaram juntos para estudarem. E aquilo pareceu encher ainda mais a japonesa com a impressão de que tudo não passava de um sonho bom.

Graças à inteligência do loiro (ironicamente), todos os deveres de casa não demoraram muito. E, como a temporada de provas iria começar logo, eles iriam deixar para começar a estudar amanhã, quando estivessem mais descansados.

O anjo das asas róseas ligou a TV, apenas para ver passando um anime qualquer no canal assistido pela última vez.

“Maldito otaku... [4]” – resmungou a morena, com uma enorme gota no canto da cabeça, pegando o controle e trocando por qualquer outra coisa.

“Tem uns animes muito interessantes. Tipo aquele que Hajaya-san disse ter se inspirado para imaginar Irieko-san. Ele me mostrou os DVDs dia desses, e...”

“Não acredito que você virou um otaku também, Himitsu.” – gota ainda maior.

Por algum momento ela ficou silente, de cabeça baixa. Agora, pela primeira vez desde que entrara ali, estava pensando no que não devia.

Principalmente em Irieko. No que ela havia feito. No que havia feito-a contar.

“Ei, Himitsu?”

“Sim?”

“Você disse que a Irieko e o Najato bolaram um plano, né?” – não o esperou confirmar aquilo. – “O que ela... Disse pra vocês?”

Repentinamente, ele ficou igualmente calado. E demorou relativamente até ele falar-lhe de novo.

“...Ela só disse que você estava com problemas sérios. E que não podíamos mais perder tempo. Disse que julgamos mal a situação e então já começou a falar de planos. Foi... Bem estranho.” – comentou.

Como o prometido. Irieko não falou nada. Ou, pelo menos, se falou, eles não deixavam transparecer uma reação indevida.

Aquilo era um sonho, não era?...

Nenhuma realidade sua podia se comparar àquele momento. Não quando, repentinamente, tudo declina e volta a ser um pântano de dor, se possível, ainda pior do que sempre foi.

...Só podia ser um sonho.

“Estou cansada. Acho que... Quero dormir.” – sussurrou, encolhendo-se, como se estivesse, repentinamente, com muito frio.

“Permite-me ajudá-la?” – e a voz de Himitsu fez-se ouvir.

Quando ela virou para encará-lo, viu aqueles olhos azuis que tanto a faziam perder o ar. Sentiu o calor de sua pele, o cheiro inebriante... Era tão real que...

“Eu posso andar sozinha...” – replicou.

“Não, eu insisto. Deixe-me te levar até o seu quarto, Maiko-chan.” – insistiu, naquele seu sorriso de sempre. – “Por favor?”

Ela hesitou. Sua maior vontade foi repetir “não”, e insistir naquilo até ele perceber que ela era suja, que não merecia.

“Se você insiste... Tudo bem, Himitsu...” – mas, no fim, foi isso que disse.

O seu paraíso expandiu-se como numa progressão geométrica quando ela sentiu os braços dele envolverem-na, tão carinhosamente, tão delicadamente... Tão igual ao que ele sempre fazia.

Nunca poderia descrever a nostalgia que a assaltou naquele instante.

Aquele foi seu maior prazer. De todos os abraços que ele já lhe dera, aquele foi o mais precioso, o mais necessário.

Deixou-se ser carregada em seu colo até o quarto, e ouviu-o desligar a TV (provavelmente ele velaria seu sono. Himitsu sempre fazia isso, quando podia, e ainda mais agora), desligar as luzes da sala e de todo o resto, e deixar a do corredor ligada. Respirou fundo, escondendo seu rosto no ombro dele.

Naquele exato instante, ela quis chorar como um bebê. Porque, sonho ou não, era o ápice de seu alívio. Naquele instante, ela sentiu-se verdadeiramente salva. Mesmo estando invariavelmente suja, mesmo tendo incontáveis memórias ruins...

Ela estava salva. Estava ali. Sem mais punições.

Assim que entraram no quarto, Himitsu, amparando-a com apenas um braço, puxou as cobertas e, delicadamente, deitou-a na sua cama.

Ele sorriu-lhe e ia se afastar, mas Maiko rapidamente segurou seu braço.

“...Não vá.” – sussurrou, como uma criança assustada.

“Eu só vou buscar uma cadeira, Maiko-chan.” – ele explicou-se. – “Já volto para ficar aqui com você.”

“Depois que você foi embora... Deu tudo errado, Himitsu...”

E então, ela agarrou-se ao braço dele, que puxava as cobertas até seu pescoço. Agarrou-se tão forte quanto aquele medo de tudo ser só um frágil sonho e ela acordar naquela casa cheirando a álcool, naquela tortura infindável.

“Meu tio... Ele... Ele me...” – engasgou. As lágrimas, que antes ela conseguia bloquear, já não tiveram mais nenhum obstáculo. – “Deu tudo errado, Himitsu... Eu estraguei tudo...”

Ver aquelas lágrimas foi um martírio para Himitsu. E Maiko sentiu a mão dele secando suas lágrimas, pacientemente, delicadamente.

“Não precisa mais chorar, Maiko-chan...” – ele consolou-a. Mas ela viu, ela viu pelo seu rosto o tamanho de sua tristeza. Era tão ou mais palpável que a dela. – “Agora, você está comigo. Já está tudo bem...”

“Mas... Mas você... Eu não estou feliz, e a culpa sequer é sua...” – conteve um soluço, sem muito sucesso. Tudo o que menos queria era fazer uma cena na frente dele; Himitsu também devia estar triste como ela, e não chorava. Não era justo ela fazer isso, então. – “Eu não...”

O anjo inclinou-se sobre ela e, num rompante, sua testa encostou-se na dela. Maiko viu aqueles cabelos dourados tão preciosos caírem por seu rosto, fazendo-lhe cócegas.

“O que você quer que eu faça para alegrá-la um pouco, Maiko-chan...?” – ele sussurrou em seu ouvido, a voz baixa, tão baixa quanto a dela.

A japonesa fechou os olhos. Respirou profundamente.

E tornou a abri-los, os lábios entreabertos num único pedido. – “Fique comigo esta noite, Himitsu... É só isso que eu quero...”

 

[1] Zori é o chinelo de madeira tradicional dos japoneses.

[2] “Anjo da Coragem”, em japonês.

[3] Elysion é a forma grega correta. Foi latinizado e hoje é tradicionalmente conhecido como Elysios, “Elíseos”, os campos onde as boas almas descansam no Hades (o Inferno da mitologia grega).

[4] Termo que significa “sua família”, e designa um fã de um determinado assunto, qualquer que seja.


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