Esperanto:solfege escrita por Petit Ange


Capítulo 11
Tom XIX: Takuchi Isono I/ Tom XX: Takuchi Isono II




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/16066/chapter/11

Voe, voe, passarinho...

Em meio ao caos de uma Tokyo devastada...

Com meu próprio sangue escorrendo de mim...

Sentindo os braços dele me envolvendo tão carinhosamente...

...Você sabe que não pode fugir.

Mais ou menos na tarde do dia 24 de abril...

...Eu morri.

 

Esperanto:Solfege
Petit Ange

 

Tom XIX: Takuchi Isono I.

 

Himitsu olhava para o celular, impassível, as sobrancelhas arqueadas. Mas o celular parecia vencer, de longe, a guerra silenciosa.

O número para o qual você ligou encontra-se fora da área de cobertura ou desligado’, respondia a voz metálica e entediada de mulher.

E, quando ele tentava de novo, a voz respondia-lhe no mesmo tom.

A mesma frase. Repetidas vezes.

“...Maiko-chan não atende o celular há dois dias.” – respirou profundamente, enfim vencido.

Guardando o aparelho de novo em seu bolso, o loiro revirou os olhos, procurando alguma coisa na qual se entreter enquanto esperava o casalzinho que foi pegar alguma coisa numa loja ali perto.

Há pouco mais de dois dias, uma situação insólita desenrolou-se na residência Isono. E, por conta dela, Himitsu estava atualmente impossibilitado de aparecer lá.

Na escola era a mesma coisa: ela não falava mais com ele. Nem mesmo com Hajaya-san ou Irieko. Simplesmente evitava a todos, usando qualquer coisa como desculpa. E o pior é que ela era tão eficiente nisso que realmente conseguia seu intento, quando ele dizia evitava-os completamente.

Himitsu não era idiota. Maiko estava, definitivamente, escondendo alguma coisa dele. E era algo tão sério a ponto de evitar até mesmo o caçador e a anjo das asas verdes.

Munido de vontade extra depois de perceber (de novo) isso, ele discou outra vez o número do seu celular. E, como sempre, ele tocou.

...E continuou tocando, pelo tempo em que o loiro insistiu.

Desligando, o anjo Sehriel sentiu-se ainda mais impotente. Desde que estava impossibilitado de entrar na residência Isono, estava de passagem na casa do caçador. Mas, por mais que tivesse levado suas malas, a mente havia ficado lá: dia e noite perguntava-se o que diabos havia acontecido naquela casa.

Ao seu lado, ele viu quando um rapaz alto e uma moça loira de aparência delicada ocuparam o lugar na máquina de pelúcias.

“Este é o Oyabin. E sua missão é apanhá-lo.” – o rapaz completou, sério.

“Mas está trancado. Não quer que eu quebre o vidro com um soco, né?” – a mocinha loira perguntou, os olhos azuis grandes de preocupação.

“Este será o plano B!”

Himitsu não pôde deixar de rir quando ouviu isso. Às vezes, escutar conversas alheias era uma distração e tanto.

Mas, ao contrário do que os outros podiam pensar, aquilo era algo temporário: tão logo a moça ficou concentrada em sua ‘missão’ (com milhares de fichas no balcão, caso ela errasse), o silêncio voltou a reinar absoluto, e os pensamentos também retornaram, com força total...

O que aconteceu com você, Maiko-chan?’. Afinal, ela já o havia perdoado. As coisas estavam bem, até aquele dia...

Aparentemente, ele havia subestimado a ameaça Takuchi Isono.

Devia ter eliminado esta ameaça tão logo a identificou. Jamais iria se perdoar, enquanto vivesse, por ter feito vista grossa até aquele dia.

“Desculpe a demora, Himitsu!” – ouviu uma conhecida voz, e então, agradeceu à providência divina por eles terem chegado. – “Tinha tanta coisa boa naquele lugar que eu demorei pacas pra escolher!”

O anjo de cabelos loiros e sedosos foi presenteado, repentinamente, com um crepe. – “Esse é pra você.” – Irieko respondeu.

Novamente, ele guardou o celular e pegou o doce. Ao dar uma dentada, constatou que era de chocolate branco.

“Muito obrigado, Hajaya-san... Não precisava se incomodar a esse ponto.”

“Já que estou sendo, literalmente, o anfitrião... Não custa dar uns agradinhos a mais, né?” – ele sorriu. – “A ronda vai começar agora, acho.”

“Mais importante que isso...” – Irieko interrompeu. – “Conseguiu contatá-la?”

Himitsu baixou os ombros, no rosto, uma expressão melancólica.

“Não. Nem na escola. Ela me evita e foge de mim o tempo inteiro.” – sussurrou. – “Está, definitivamente, com o comportamento de... Não sei...”

“Um animal lambendo suas próprias feridas?”

“É. Quase isso...” – suspirou. – “Pra ela agir assim, algo muito sério aconteceu.”

“...Mas você não pode mais entrar na residência Isono.” – Irieko quase que completou a frase com aquilo que ele estava pensando.

“Infelizmente...” – concordou.

Najato interrompeu-os, tocando no ombro de ambos.

“Parem de ficar discutindo coisas que não podemos mudar. Depois da ronda, quando estivermos mais calmos, vamos pensar em alguma coisa, ok?” – ele pigarreou, como um adulto responsável chamando a atenção de duas crianças. – “Por enquanto, concentrem-se naquilo que está aos alcances de cada um.”

E foi andando na frente, comendo seu crepe, resmungando qualquer coisa sobre ‘como pode alguém pensar em coisas sérias logo antes de caçar youkais? Tira toda a graça da brincadeira!’.

“...Bom, infelizmente ele está certo.” – Irieko respirou fundo, odiando aquela constatação.

“É mesmo. Vamos esquecer isso, por enquanto.” – ele sorriu, e seguiu o rapaz de cabelos negros.

Mas, infelizmente, esquecer totalmente era algo além de seu alcance.

 

Alguns dias antes, as coisas sequer davam mostras de que seriam daquele jeito...

Talvez, se ainda sobrevivesse até alguém perguntar-lhe “qual a coisa mais difícil que você já fez?”, ela iria responder sem hesitar “bater numa porta”.

Nem mesmo com a desculpa de ir levar chá estava conseguindo coragem para entrar. Não tinha nenhum relógio consigo no momento, mas se o tivesse, certamente veria que perdeu preciosos minutos ali. Totalmente parada, sua cabeça maquinava mil e uma maneiras de se aproximar, mas nenhuma parecia boa o suficiente, encorajadora o bastante para transformar-se em ação.

Talvez levar chá, quando já passara até da hora do almoço, fosse uma idéia imbecil. Ela devia ter comprado alguma coisa... Será que ele havia comido?

Não achou que seria o arrasto de Najato por tanto tempo. Se soubesse disso, teria mesmo comprado algo. E isso, por algum motivo, a fez se sentir ainda pior. Teve vontade de jogar a bandeja ali mesmo e ir redimir-se, passar em qualquer mercado e comprar algo que ele gostasse, algo que pudesse acalmar-lhe aquela ânsia de perdão, nem que fosse um pouquinho.

Se bem que... A hora do almoço passou há muito tempo...

Não, precisava se acalmar. Já não estava nem pensando coisa com coisa!

Iria bater na porta, oferecer calmamente o chá, e então, pedir desculpas, civilizadamente, como uma donzela decente. Isso. Era perfeito. Não tinha erro. Himitsu iria perdoá-la, iria compreendê-la... Ele sempre compreendia, afinal. Tudo que faltava era a coragem para fazer isso.

Estendeu a mão trêmula, e quando iria bater na porta, ela ouviu o som da mesma abrir-se, sem nenhum esforço da sua parte. A bandeja tremeu em sua mão, e por pouco não caiu das mesmas de susto.

Como imaginou, Himitsu apareceu logo na sua frente.

Maldição’, foi tudo o que conseguiu pensar, nervosamente vermelha.

Agora que as aulas estavam suspensas pela morte da aluna na Feira Cultural (um acidente com milhares de versões, todas elas muito diferentes entre si), as tardes de ambos eram dez vezes mais tranqüilas. Na verdade, o único trabalho que ela tinha mesmo era a loja de conveniência, de noite, porque quando ela percebia, o loiro já havia cuidado de todos os serviços domésticos.

Também naquela hora, quando voltou para casa, a louça estava toda limpa e guardada, a sala cheirava bem, o corredor estava brilhante... Até mesmo seu quarto estava arrumado. Himitsu tinha feito o serviço completo.

Nessas horas, ela sentia-se um monstro por tê-lo destratado enquanto ele continuava agindo normalmente. De fato, essa sua inconstância irritava até mesmo sua pessoa, de vez em quando.

“Err... Bo-boa tarde, Sehriel...” – ela gaguejou, totalmente nervosa.

Ele tinha nas mãos um livro de capa inteiramente negra (bastante grosso, devia ter umas seiscentas páginas ou mais), e estava usando fones.

Dali, ouvia-se levemente uma música J-rock qualquer (coisa típica de adolescente como ele, mas ainda se surpreendia por anjos não terem um gosto extremamente refinado para artes e músicas, como ela imaginou sempre...). Na surpresa, ele até mesmo tirou um dos fones do ouvido.

“Maiko-chan... O que está fazendo aqui?” – e então, seus olhos azuis encontraram o precioso líquido. – “Ah... Veio me trazer chá...?” – incrédulo.

“A-achei que você estivesse com... Errr... Já almoçou, Sehriel...?” – ela atropelava-se, engolindo em seco. – “Se quiser, posso... Posso comprar algo... Um onigiri [1], talvez, já que almoçar a essa hora é meio...”

“Ah, não, não se preocupe com isso!” – ele emendou depressa. – “Eu já almocei, sim! Nosso tio trouxe comida de fora, eu comi com ele...”

Engoliu em seco de novo. – “E-ele já saiu?”

“Sim, ele saiu pouco depois de almoçar. Queria alguma coisa com ele...?”

“N-não, nem pensar...!” – definitivamente, não! – “Errr... Vo-você ainda aceita o chá? Se quiser, eu posso levar de volta...”

“Um chá feito pela Maiko-chan.”

Ao ouvir isso, ela ergueu os olhos para encarar sua face. E o viu sorridente, aquele mesmo sorriso de menino que ele sempre dava logo nos primórdios de sua convivência. Aquele mesmo sorriso nostálgico.

“...Eu adoraria, se me permitir bebê-lo.”

Quando o loiro se afastou da porta, na clara intenção de deixá-la entrar, ela quase perdeu o chão. Há poucos segundos, estava nervosa tentando arranjar um jeito de entrar, e como que por providência, ele aparece e deixa-a fazer exatamente isso, sem esforços... Definitivamente, o destino estava mimando-a demais!

O quarto de Himitsu sequer parecia com o de um adolescente. Era extremamente organizado e limpo. Os livros estavam amontoados em ordem perfeita (parecia até coisa de neuróticos), e não havia nenhuma roupa espalhada (ao contrário, constatou com vergonha, do seu quarto). Nem sequer havia traço da sua mala, como se ele tivesse sempre morado por ali.

Maiko sentou-se no chão, por mais que ele estivesse indicando a cadeira da mesa de estudos.

“Se a Maiko-chan vai sentar no chão, então eu também vou.”

“Não, por favor. Sente-se na sua cama, tomar chá no chão deve ser... Ruim.” – ela inventou, apesar de que, em um nodate [2], por exemplo, era exatamente no chão que os japoneses sentavam-se.

Obedecendo-a, o loiro se sentou em sua cama, e pegou o chá que ela lhe oferecia, soprando a fumaça quente que se desprendia do copo tradicional.

E esperou, com um sorriso congelado, quando ele bebeu o seu primeiro gole.

“...E então? Está aceitável ou precisa de mais alguma coisa?” – continuou, sentindo as pernas ainda tremerem.

“Não, está... Simplesmente maravilhoso.” – ele sorriu. – “Maiko-chan faz uns chás muito bons, eu fico impressionado com essa destreza.”

Ela sorriu, envergonhada. – “Meu pai, o irmão do meu tio... Ele conheceu a minha mãe numa cerimônia do chá. Ele disse que ela havia sido o chá mais delicioso que já havia bebido. Era delicado e selvagem, assim como ela.”

“Sua mãe lhe ensinou a fazer chá tradicional?” – ele perguntou, repentinamente curioso com aquilo.

“Sim. Enquanto ela esteve viva...” – sussurrou, tocando no próprio braço. – “Ela me ensinou muitas coisas... O chá só foi uma delas...”

Himitsu, então, inclinou-se.

E Maiko sentiu sobre seus cabelos, afagando-os, uma mão calorosa e gentil.

“Você sente falta deles, não é?”

“Muita. Meu pai era um homem muito gentil... Era o caçula, o preferido da família... Eu destruí a família do meu pai quando ele morreu...” – continuou num sussurro, os ombros tensos. – “E minha mãe era uma mulher igualmente gentil... Era muito tradicional. Sabia que eu usei kimonos a minha vida inteira, até me mudar? Tirando, claro, o uniforme da escola.” – forçou um sorriso ao erguer a face para encará-lo quando contou isso.

“Não imagino você, uma criança, usando um kimono todo formal ao lado de uma mulher de kurotomesode! [3]” – ele riu.

“Não zoa! Minha mãe ficava muito bem de kurotomesode!” – ela respondeu, também rindo.

Repentinamente, Himitsu se levantou, animado.

“Que horas são? Hum... Dá tempo.” – olhou a tela de seu celular. Os olhos brilhavam de expectativa, por algum plano macabro que havia maquinado. – “Você vai sair assim, Maiko-chan?”

“Oi...? Sair?!” – gota.

“Vamos sair! Só nós dois, mãos dadas, ficar olhando lojas e comer porcarias! Vai ser divertido! E depois, vamos jantar em algum lugar bem bonito, até chegar a hora do seu trabalho.” – ele explicou, neste meio tempo já procurando uma roupa no seu armário. – “Que tal? Eu vou me trocar, você não vai?”

“Himi... Sehriel!” – ela bradou, tonta com aquela animação repentina. – “Peraí, peraí um minuto! Tem idéia do que eu vim fazer aqui...?!”

“Veio pedir desculpas, eu sei.” – ele sorriu, leve. – “Mas a gente só pede desculpas por algo que fez de errado. A sua reação foi totalmente normal.”

Incrível. Realmente incrível.

O Himitsu é um idiota. Só vai lá e bate na porta dele, e em menos de cinco minutos, vocês já vão estar saltitantes de novo’, foram as palavras de Najato, naquela tarde. E, mais incrível que isso, era ver que ele tinha razão, afinal!

Himitsu era um idiota, de acordo com suas palavras!

“Você tem idéia do que está dizendo?” – atônita, ainda sentada no chão.

“Absolutamente. Não fiquei bravo, não precisa se preocupar. Eu é que peço desculpas eternas por ter feito aquela cena.” – que cena? Maiko repentinamente viu a mão ele oferecendo-se para erguê-la, e ficou ‘como eu vim parar aqui?’. – “Por favor, aceite as minhas desculpas, Maiko-chan.” – sorriu.

“TÁ BEM LOUCO?! Eu é que tenho que pedir desculpas!” – e, já que a cena já estava absurdamente inacreditável, ela apenas contribuiu: inclinou-se e escondeu o rosto no chão, no mais formal pedido japonês de perdão. – “Realmente, me perdoe, Himitsu, Sehriel, sei lá! Eu não queria ter feito tudo aquilo... Fui rude e grosseira, e... Não sei como poderei ser perdoada, e...”

“Não seja boba, Maiko-chan!”

E um par de mãos ergueu-a do chão, daquela sua patética pose, e quando ela viu, o anjo de asas róseas e pálidas estava sorrindo-lhe, radiante.

“Não fique aí perdendo tempo, vamos nos atrasar!” – ele anunciou, já com suas roupas na mão. – “Sem desculpas, não vou aceitar desculpas de alguém que não fez nada de errado! Vamos nos divertir, né?”

...Como eu amo o fato de você ser ‘idiota’, Himitsu.

Mas disso, ela concluiu com um risinho, ele nunca iria saber.

 

Excêntrico. Se fosse resumi-lo numa palavra, era exatamente aquela. Excêntrico até a última gota. Quer dizer, todos os anjos que ela conheceu até hoje eram um bando de excêntricos, a começar com Irieko e aqueles tapa-olhos, sendo que ela não tinha uma deficiência no maldito olho, até topar com o tal Shiho e sua mania de divertir-se com o sofrimento alheio.

Ela pensou que ele, mesmo sendo um anjo, iria se magoar. Que iria evitá-la, bater o pé e não perdoá-la em situação alguma. Que iria guardar muito rancor dela...

Mas, não! Himitsu lhe pagou milhares de guloseimas deliciosas no meio do caminho, comprou uma camisa que, de acordo com ele, ‘ela sempre olhava com óbvio desejo’ (como percebeu isso?!), com uma estampa de Garfield e, durante o metrô, eles dividiram os fones de ouvido do rapaz, ouvindo várias músicas e até cantarolando baixinho algumas, para o desgosto dos que estavam ali.

Até alguns minutos atrás, ela estava em casa. E, antes disso, estava na rua de novo. Será que Najato também era um anjo excêntrico e ela não sabia disso?

...Não, definitivamente, ele era só um estranho.

Mas aquilo ultrapassava as barreiras do bom senso! Desde que Himitsu entrou em sua vida, a mesma virou de cabeça para baixo. Ela não soube mais o que é a auto-preservação, não soube mais o que era a dificuldade de interação.

O loiro parecia ser tudo o que alguém busca em outro ser humano: podia comparar, sem muitas diferenças, aquilo à lealdade canina. Ele não fazia perguntas, não objetivava, não questionava nem nada. Apenas perdoava. Ou melhor, para ele, ela jamais havia feito nada de errado, então sequer havia o que se perdoar.

Agora ela entendia o porquê da história dos Anjos Shinigami ser tão gloriosa: eles simplesmente eram perfeitos. Sem tirar nem pôr.

Desse jeito, ela iria até ficar mimada...

Mas, bem, não custava imitá-lo e fingir que nada daquilo aconteceu. Se ele a perdoou por aquilo e até estava lhe dando a chance de ter alguma diversão antes de morrer, que aproveitasse enquanto podia. E, afinal, morrer nem parecia assim tão ruim: sua última visão seria o rosto dele. E isso bastava.

Foi a tarde mais movimentada de sua vida. De Harajuuku (onde ela quase morreu de vergonha, porque eles andaram de mãos dadas como namorados, e aquele, afinal, era o bairro dos apelos amorosos...) para Shinjuuku (onde, pelo menos, ela foi mais bem sucedida: as meninas não paravam de olhar, boquiabertas, para o loiro, que ela agarrava ainda mais só para se mostrar), de um lado para o outro, comprando coisas e mais coisas e comendo outras tantas...

Definitivamente, uma tarde excêntrica, típica de um anjo (ainda bem que ninguém sabia disso, senão, todos iriam querer ter um). E ela não tirou um tostão do bolso: ele proibia-a de pagar qualquer espécie de despesa.

Quando percebeu que, enfim, estava anoitecendo, eles pararam num restaurante. Maiko sentiu-se uma criança mal-vestida quando entrou naquele estabelecimento tão bonito para os seus padrões. Mas Himitsu parecia nem se importar, e quando conseguiram uma mesa, jantaram as extravagâncias dos mais abastados (será que anjos conjuram dinheiro ou o quê?).

A morena quis perguntar de onde ele estava tirando dinheiro para bancar tudo aquilo, mas ele só respondeu com um sorriso que era para ela aproveitar, somente. E, bem... Ela aproveitou. Aquela sobremesa foi a melhor da sua vida: sorvete com calda quente de chocolate! Ela repetiu três vezes, até passar mal.

E, então, o trabalho. Naquela noite, as funcionárias e a chefa perceberam a óbvia mudança dela: estava leve e de bom humor. Quando perguntaram para Himitsu o que era aquilo, ele fez uma cara de ‘estou tão surpreso quanto vocês’.

Enquanto ela trabalhava, ele ligou para Najato para dizer que, naquela noite, teria de faltar a ronda de novo. Motivos inadiáveis, realmente emergenciais, mas parecia que Maiko estava reagindo, enfim. Najato e Irieko, do outro lado da linha, ficaram satisfeitos com aquilo, e exigiram novidades, assim que possível.

Quando o horário de serviço acabou, eles despediram-se e pegaram o trem de volta para casa. Isono tinha a impressão de que aquele foi o dia mais cansativo de sua vida, e ela só queria dormir.

Ao chegarem em casa, Takuchi estava sentado no sofá, assistindo TV.

Ele ergueu-se e os saudou. – “Boa noite. Chegaram mais tarde que o normal, hoje. Estiveram fora o dia inteiro, é?”

“Sim, titio. Peço desculpas. Eu deixei a casa limpa, mas saímos um pouco...” – ele adiantou-se.

“Não, não tem problema, Hi-chan.” – ele sorriu. – “Você poderia me fazer um favor? Podia ver se o controle não está lá na cozinha? Tenho a ligeira impressão de que o vi, não faz muito tempo.”

“Mesmo? Eu vou ver, já volto. Vou aproveitar e guardar essas sacolas todas. Com licença.” – o loiro saiu tão rápido quanto disse aquilo.

E, quando viu-se sozinha com ele, Maiko repentinamente teve um arroubo de compreensão.

“...Uma semana.” – sussurrou.

“Maiko-chan? E então?” – ele sorriu ainda mais. – “Esperei pacientemente, te dei até uma semana dessa vez. Onde está o dinheiro?”

Ela não respondeu nada, boquiaberta.

“Vamos logo, Himitsu voltará a qualquer momento.”

...Sehriel (ou Himitsu?) era excêntrico nas horas de inspiração (como foi naquele dia inteiro) e parecia ter muito dinheiro, ao menos, para comprar tudo aquilo e ainda jantarem naquele restaurante tão bonito. Se ela pedisse um pouco emprestado, será que ele daria?

“Já se passou... Uma semana...?” – era só o que conseguia perguntar-se.

“Você está perdida no tempo, minha cara? Pelo meu relógio, sete dias e algumas horas.” – respondeu.

É claro... Perdera tempo demais em sua apatia depressiva. É claro que já passara os malditos sete dias da ameaça.

Agora sim eu morro’, ela pensou, irônica.

“Você está com o dinheiro aí, não está, Maiko-chan?” – ele aproximou-se mais dela, e pela sua voz, estava contendo-se para não bradar aquilo.

“...Como quer que eu traga o dinheiro nessas condições?”

Definitivamente, assinara seu atestado de óbito.

Takuchi Isono precipitou-se sobre ela. Ele tinha o dobro de sua altura e força: um combate físico estava fora de cogitação.

Tudo que ela pôde fazer foi esperar. E esperar.

E rezar para que Himitsu chegasse antes de qualquer ato dele.

“...Não trouxe?” – rosnou.

“Não tenho, titio. Não posso te dar nada, me desculpe...” – sussurrou de novo, encolhendo os ombros, da forma mais cautelosa que podia.

Tudo na sua vida estava se tornando absurdamente rápido. Tão rápido que ela não podia acompanhar, nem se defender.

Como foi aquele tapa no rosto.

Quando percebeu, simplesmente estava jogada no chão, o rosto ardendo como nunca. O susto foi tão grande que ela sequer pôs a mão na face ferida, sequer moveu-se, apenas ficou-o encarando como se fosse a primeira vez que o via.

“Cadela...!” – rosnou, segurando as madeixas negras dela com força. – “Eu avisei que queria o dinheiro...!” – puxou-os com toda sua força, arrastando-a junto no meio do processo.

Maiko gemeu de dor, incapaz de levantar a voz, ou Himitsu ouvi-los-ia.

“Por favor, tio... E-eu juro que vou conseguir o dinheiro...” – ela sussurrou, contendo-se para não chorar pateticamente.

“Sem desculpas!” – bradou. E, novamente, ela sentiu aquela mão pesada em seu rosto. – “Eu te dei uma semana, sua maldita! Uma maldita semana! E você me aparece sem nada... Como ousa...?!”

A japonesa quis ir contra. Quis mesmo. Mas, no fim, ele tinha razão.

No fim mesmo, ela sentia que merecia tudo aquilo. Todo aquele ódio dele. Era castigo por ter tirado de sua família o caçula preferido...

Por isso, não reagiu quando ele bateu em seu rosto de novo. Uma, duas, três vezes. Todo o ódio dele estava indo para aqueles bofetões.

“Por favor, já chega...! Amanhã, os professores vão perceber...!” – ela gemeu, depois do segundo chute. – “Eles vão ligar pra cá, chega...!”

“Não me diga o que fazer, maldita garota!” – chutou-a com prazer outra vez. – “Desde que apareceu aqui, só me deu trabalho! O mínimo que podia fazer era me compensar com o maldito dinheiro... Mas é tão inútil que nem isso...!”

Aparentemente, Takuchi Isono estava até esquecido de Himitsu. Apenas espancava-a como podia.

“Chega, por favor!” – ela só pedia. Como as coisas podiam mudar tão rápido?

“Pare com isso, agora!”

Os dois ouviram uma terceira voz, e quando perceberam, antes que pudessem fazer qualquer coisa, Himitsu já estava segurando o braço do homem, que estava pronto para bater na japonesa de novo.

“Seh... Himitsu...?” – nessas horas, para ela, ele era sempre um anjo.

“Chega de machucar a Maiko-chan, tio!” – ele bradou, apertando o pulso dele com força. – “Se você não parar, eu vou fazer isso para você.”

 

 

Esperanto:Solfege
Petit Ange

 

Tom XX: Takuchi Isono II.

 

Aquilo era como... Dois leões brigando por território. Ou qualquer coisa assim. Ela não sabia com o quê comparar aquela cena.

O tio tinha seu pulso firmemente segurado por Himitsu, que o encarava como fazia com inimigos. Como encarava Shiho Himeno, o anjo das asas negras, quando o mesmo tentou matá-la duas vezes, por exemplo.

Eram olhos ameaçadores. Diziam exatamente para o que estavam ali.

“Você...” – Takuchi Isono rosnou, tentando se soltar. – “Me solte, Himitsu! Saia daqui, agora!”

A outra mão dele continuava firme nos cabelos da japonesa. E ele a puxou mais, arrancando dela um gemido surpreso.

“Chega, Himitsu... Pare com isso...” – a mesma pediu, em pânico.

“Eu fingi que não percebi por muito tempo, Maiko-chan.” – ele sacudiu a cabeça, numa clara negativa. – “Dessa vez, eu não vou deixar este homem machucá-la. Não mesmo.”

O coração dela estraçalhou-se dentro do peito.

Maiko Isono sabia que aquilo não iria acabar bem...

“Ela é minha sobrinha, moleque. Faço com ela o que eu quero! Tire suas patas de mim agora!” – devolveu, imprimindo mais força naquele seu ato de soltar a mão de seu pulso.

“Maiko-chan é minha ‘deusa’.” – o ‘faço com ela o que eu quero’ estava quase que embutido naquela simples afirmação.

Ele ergueu uma sobrancelha, esquecendo-se, temporariamente, da garota.

“Isso é jeito de falar com aquele que está te hospedando?”

“...Muito nobre, tio.” – Himitsu devolveu, sério e sem emoção. – “É assim que compra o temor dos outros? Com esses favores?”

Sacudiu a cabeça na mesma hora. – “Sinto muito, você já comprou o silêncio da Maiko-chan por demais. Não vou mais permitir agressões contra ela.”

“Essa moleca roubou nosso irmão... Roubou a felicidade da nossa família, roubou nossa paz! Tudo!” – ele rosnou outra vez. – “A culpa é toda dela!”

“...Essa criança está sofrendo por isso tanto quanto você, Takuchi Isono.”

E o fato do próprio Himitsu estar ali era uma prova incontestável disso.

Aquilo foi a gota d’água. Maiko viu seu tio mudar de pálido para rubro de raiva em tempo recorde. E aquela visão a assustou demais: ele nunca havia chegado àquele ponto de fúria antes. Não sabia o que ele faria.

“SUMA DESSA CASA! JÁ!” – gritou, pouco se importando com os vizinhos.

“Tio...” – Maiko tentou demovê-lo, mas era tarde. Ele soltou seus cabelos e, com violência, soltou-se do aperto do loiro.

“NÃO ME OUVIU?! PEGUE SUAS TROUXAS E SUMA, HIMITSU!”

Tudo o que o loiro de cabelos sedosos fez foi fixar os profundos orbes azuis no homem. E então, sacudiu a cabeça.

“Não vou.” – disse, simplesmente.

“Está me desafiando, seu... MOLEQUE?!” – dito isso, Takuchi Isono esbofeteou a face do rapaz. O rosto dele virou-se, escondido pelos cabelos, um som horrível da mão em contato com sua bochecha. – “EU MANDEI VOCÊ SUMIR!”

Maiko empalideceu. – “CHEGA...!”

Os dois olharam-na. E viram-na erguer-se, trêmula, e passar a mão pela roupa amassada de tanto ficar no chão.

“Chega... Chega, por favor...” – os olhos da menina estavam cheios d’água. – “Himitsu... Por favor... Por favor... Vá embora... Não complique ainda mais as coisas...”

“Mas... Maiko-chan...”

“Estou te pedindo pra ir embora... Por favor...”

Naquele momento, o mundo pareceu sumir para os dois, como se só eles existissem. E, com seus olhos, ela lhe disse tudo: que ligaria amanhã, que agüentaria sozinha por enquanto, que sempre agüentou antes dele chegar... Que ficou feliz pela atitude dele, por ele não querer deixá-la sozinha ali, mas que já bastava. Que ele devia ir, e rápido.

“SUMA DE UMA VEZ!” – ela ouviu o tio berrar de novo.

“Por favor...” – gemeu.

E Himitsu Isono baixou o rosto, na impotência mais melancólica que ela já pudera ver em seu rosto.

“...Tudo bem. Eu vou embora.”

 

Já na rua, com as mesmas malas com as quais chegou naquela residência, há algum tempo, o anjo das asas rosas e pálidas viu-se sozinho e sem rumo.

Suspirou pesadamente. As coisas, realmente, fugiram ao controle.

“Por isso esses humanos perturbados me irritam... Ficam mais egocêntricos que o normal, é irritante!” – praguejou, tirando do bolso do casaco o seu celular.

Selecionou um número da sua lista, apressado, e esperou-o atender.

Oi? Por que ligou a essa hora da madrugada, Himitsu?” – a voz de Najato, do outro lado da linha, era de pura descrença.

“Err... Aconteceram algumas coisas, Hajaya-san...” – gota enorme, enquanto olhava suas malas logo ao lado. – “Não dá pra explicar por telefone, acredite...”

A Maiko tá bem? Vocês precisam de ajuda, é?” – agora, o caçador parecia obviamente preocupado.

“A Maiko-chan... Acho que está...” – sua voz era hesitante. – “Mas, bem... Eu realmente preciso de uma ajudinha...”

Onde cê tá? Eu e a Iri-chan vamos aí te pegar!

“Acho que... Podemos nos ver na frente da loja da Maiko-chan.”

Himitsu ouviu Irieko logo ao lado de Najato, já discutindo sobre trens e sobre qual era o mais rápido para ir até a área da loja de conveniência onde a menina trabalhava de noite. Os dois eram, como ele esperava, eficientes.

Certo. Agüenta aí que nós já estamos chegando.

Quando o rapaz com câncer desligou, o anjo respirou profundamente, olhando a lua que enfeitava o céu sem estrelas.

Ele ia ficar bem, ele ia agüentar, sem dúvidas.

Mas tinha problemas em acreditar que a japonesa faria o mesmo...

 

“MAIKO-CHAN!” – o grito era ouvido à distância. Só um surdo não notaria a preocupação, a ânsia de alcançá-la com aquele nome. – “Espere, por favor!...”

Quando Himitsu alcançou-a, nem percebeu um par de estudantes que passavam por ali e deram gritinhos discretos quando ele parou, forçando um sorriso.

“Bom dia, Maiko-chan!” – cumprimentou-a devidamente, apesar do cansaço por sair correndo atrás dela assim que o sinal do recreio tocou.

A morena virou-se, sorrindo de orelha a orelha.

E, sempre quando o loiro via sua face, tinha vontade de dar um soco na parede ou em qualquer lugar do tipo, qualquer coisa que fizesse-o livrar-se daquela frustração que pairava, chamando-o de irresponsável, de incompetente, de tudo...

O rosto da garota estava... Acabado. As faixas e band-aids não eram suficientes para cobrir aqueles machucados.

E, pelo jeito que ela andava, pelos seus movimentos calculados, estava claro que ele não parou apenas no rosto e no estômago. Ela deve ter apanhado mais, depois que ele saiu, expulso da casa.

“...Tudo bem com você, Maiko-chan?” – forçou um sorriso.

Ela o entendeu. Entendeu aquele sorriso, aquela pergunta. E baixou os olhos, envergonhada por estar tão descomposta na frente dele. Mesmo assim, não conseguiu evitar um sorriso.

“Estou bem, obrigada.” – sussurrou. – “É estranho você me perguntar isso, até parece que não moramos na mesma casa desde sempre!” – emendou, com um largo sorriso, como uma garota normal.

“Vamos comprar um melonpan pra você? Hajaya-san e Irieko-san querem vê-la também.” – estendeu a mão para ela pegá-la.

“Eles... Sabem...?” – perguntou, estendendo sua mão, hesitante.

Himitsu ficou um pouco em silêncio, ponderando se devia responder ou não. Por fim, como que se decidindo, resolveu simplesmente dizer a verdade.

“Sabem sim. Mas eu os fiz prometer que não se envolveriam.” – apertou a frágil e pálida mão da japonesa na sua.

“Muito... Obrigada...” – ela sorriu ainda mais.

Nem Maiko nem Himitsu fizeram qualquer comentário sobre a noite anterior. Era como se ela nem tivesse existido. O caçador e a anjo gótica das asas verdes também não falaram nada. Trataram os dois como se fosse mais um dia normal, como se eles ainda morassem na mesma casa e ficassem naquela relação inconstante de “separa, reata, separa” de sempre.

Aquela atmosfera acalmava, um pouco, o coração da garota. Não teria que responder perguntas, nem teria que afastar pessoas que quisessem se envolver e piorar ainda mais a situação.

Ela podia cuidar de Takuchi Isono sozinha. Podia mesmo.

A mentira durou o recreio inteiro. Foi, talvez, o mais tranqüilo de sua existência. Ela esqueceu o fato de que, quando voltasse, teria de aturar o tio, teria de voltar à sua velha vida de antes de Himitsu aparecer.

E o mesmo segurava sua mão com tanta força que ela não conseguia pensar, mesmo que quisesse, em mais nada que não fosse ele.

 

Ela estava sonhando. Nos sonhos, era visitada mais uma vez por aqueles seres grotescos. Eles tocavam em sua pele e amedrontavam-na, enchiam-na de nojo e pavor. Não havia pior lugar que aquelas masmorras. O próprio inferno na Terra.

Quando conseguiu despertar, coberta de suor, tinha o corpo trêmulo, a cabeça dando voltas. Estava, definitivamente, enjoada.

...Aquele lugar sempre lhe dava medo até ela ficar desse jeito.

Quis vomitar, mas as pernas não obedeciam ao comando de seu cérebro, de erguer-se e correr até o banheiro. Simplesmente não se mexiam, tal qual o resto de seu corpo. Trêmula, ela só pôde ficar olhando para os lados, temendo que algum youkai saísse das sombras e levasse-a de volta para aquela tortura...

Ninguém apareceu. Só a luz tênue do abajur confortou-a daquele seu medo tão infundado, mas tão presente.

Só então percebeu que... Estava sozinha mesmo.

Hotaru Himeno olhou para os lados, procurando algum sinal dos gêmeos, seus filhos. Nada. O quarto estava vazio, como quase sempre estava. Seu Mashiro estava enturmando-se naquele mundo... Adaptando-se tão bem...

Mas onde uma criança, um meio-youkai, poderia estar, tarde da noite como era?

Aliás, uma não... Duas crianças. Seus dois filhos sumiram, maldição!

“Mashiro-chan? Shiho-chan?” – ela chamou, não obtendo resposta. Nem no banheiro, nem debaixo da cama... Nem em lugar nenhum. – “Onde estão?...”

E ela continuaria chamando-os, debilmente, até que o pânico e o sono a impedissem. Até lá...

 

“...Cheguei.”

Em situações normais, Himitsu estaria ao lado dela, comentando qualquer coisa, todo sorridente. E ela estaria cansada, porém feliz.

Não hoje. Tudo voltou a ser como era: a solidão e a infelicidade. Suas velhas companheiras.

A casa estava escura. Escura e cheirava a álcool. Isso era ainda mais nostálgico: o tio nem dava mais falta do loiro. Era como se ele nunca tivesse existido (mas a japonesa sabia que Himitsu não usara os poderes misteriosos dele para sugerir isso na mente de ninguém. Ele ainda existia).

O cheiro de álcool penetrava em suas narinas, e fazia-a ter ânsia de vômito. Nada muito diferente do habitual. Mas ela ainda não podia limpar nada: enquanto o tio não saísse da sala, ela não podia chegar perto.

“Venha cá, Maiko.” – ela o ouviu.

A garota estremeceu. Para alguém que gritou até a exaustão ontem, agora ele parecia excepcionalmente calmo. Distante, até.

Ela largou a pasta escolar em cima da cadeira da cozinha, tirando o casaco que tinha por cima do uniforme. E, então, pé ante pé, foi dirigindo-se para a sala. Ela estava escura, só a fraca luz da TV iluminando toda a casa, abafada, e cheirava a álcool. Nada muito diferente do habitual.

“Pois não?” – perguntou, hesitante. – “O... O dinheiro... E-eu vou receber meu salário dentro de alguns dias. Só mais umas semanas, tio.”

“Não quero dinheiro.” – ele resmungou.

Depois de um breve silêncio, ela o ouviu falar de novo. – “Graças à você, meu irmão e a esposa dele, seus pais, estão mortos, sabia?”

Ela estremeceu mais. Takuchi Isono não perdia nunca a chance de jogar aquilo na sua cara.

“Mil perdões, tio...” – mesmo que ela já tenha pedido isso milhares de vezes para todos os Isono, sem nem ter culpa, realmente, de nada.

“A cerveja acabou.” – ele declarou, num tom de enfado.

“Q-quer que eu vá comprar mais?” – perguntou, hesitante, já dando um aliviado passo para fora daquele ambiente fétido.

“Você pode me consolar de outro jeito.” – ele continuou falando, naquele tom monótono de quem fala do tempo. – “Está com dezesseis anos. Já é uma moça...”

Entendeu, Maiko-kun? A culpa foi sua.

Por um instante, a voz de sua avó paterna soou clara, clara como um sino de velório, em seus ouvidos. Até parece que ela estava ali ao lado daquele homem que erguia-se do sofá, falando por detrás dele, sussurrando aquilo só para ela.

Você também tem de sofrer. Também tem de ser punida.

Ela arregalou os olhos quando o homem dos olhos acastanhados desabotoou o primeiro botão de sua camisa. Não quis acreditar naquilo.

Não é justo que só a sua mãe e seu pai sofram, não é?

“...Por favor, não.” – gemeu, dando um passo para trás, na intenção de fugir.

É claro que ele jamais lhe ouviria. Nem parecia, pelos olhos embrutecidos, que ele estava, de fato, olhando para sua sobrinha, para uma menina, para... Um ser humano. Efeito do álcool ou não, ele a encarava como se ela fosse um objeto qualquer da casa. Um transtorno necessário.

Não é justo que só nós, seus tios e eu, soframos, não acha?

A voz de sua avó, fria e venenosa, continuava zunindo em seus ouvidos. Quando aquela velha iria parar de falar porcarias sem sentido...?

“NÃO!...” – e a garota disparou.

Ela ouviu atrás de si o som do pesado corpo de Takuchi Isono também correr, mas imersa em seu pânico, não notou nada até que, quando tentou abrir a porta, sua mão foi brutalmente agarrada. Os olhos, involuntariamente, encheram-se de água.

“Seja útil ao menos agora que a cerveja acabou!” – rosnou, tapando-lhe a boca.

NÃO!’, ela gritou em pensamento.

Considere essa a sua punição, Maiko-kun.

Não, ela não merecia aquilo! Não aquela punição! Podia suportar qualquer outra, podia suportar o próprio Inferno... Mas não aquilo!

Um pânico subia-lhe amargo, com o gosto de bile, pela garganta.

Maiko gritou quando sentiu uma das mãos dele subirem por debaixo da blusa de seu uniforme escolar.

E, em sua mente, só chamava por Himitsu. Nem mais por seus pais.

Só precisava que Himitsu viesse salvá-la mais uma vez.

Afinal, você também merece uma punição, não acha, Maiko-kun?

E, de repente, as lembranças. Aquelas visitantes impertinentes, que apareciam nos piores momentos.

“Por favor... Temos aula amanhã, Himitsu...”

“Saia daqui!...”

“NUNCA MAIS CHEGUE PERTO DE MIM!”

...Quantas vezes ela fez coisas erradas e nunca foi punida? Mentalmente, pedia socorro. Pedia perdão. Principalmente perdão.

Mas a gente só pede desculpas por algo que fez de errado.”

E, repentinamente, aquela frase do loiro fez todo o sentido que estava faltando.

Como podia ter se iludido? Eles estavam todos certos! Ela merecia uma punição. Ficara sem a mesma tempo demais.

...Ela merecia uma punição.

Takuchi Isono merecia ser vingado. Himitsu merecia ser vingado. Seus pais... Mereciam ser vingados.

Não é justo, não é, Maiko-kun?

A vida é mesmo muito avara. E, depois que aquele anjo entrou em sua vida, ela ficou ainda pior. Ainda mais extrema.

Como se tudo estivesse jogando-se sobre ela de uma vez, antes que ela morresse sem experimentar todos estes fantasmas.

Maiko parou de se debater.

Soltou as mãos da porta, deixou aquela mão grotesca debaixo de sua blusa.

...Ela permitiu. Ela deixou-se punir.

 

De um lado, um menino de pele pálida e olhos negros como o ébano. Os cabelos tinham franjas compridas e eram da mesma cor dos olhos. Sua roupa era negra, num estilo um tanto gótico, definitivamente uma roupa que um garoto de aparentes quatorze anos, como ele, não usaria. Uma corrente com uma cruz de prata descansava em seu pescoço.

Do outro lado, uma menina de olhos numa cor de castanho avermelhado pálido, os cabelos num loiro igualmente morto. A pele, se possível, era ainda mais pálida que a do menino, e ela parecia ter entre treze e quatorze anos também. Vestia um conjunto preto e gótico, com coturnos aparentemente pesados.

Até aí, a cena era apenas a de duas crianças se encarando na madrugada de um bairro qualquer de Tokyo.

Mas haviam coisas que os humanos normais não podiam ver, o motivo deles estarem se escondendo naquela parte mais afastava e isolada do lugar.

Asas. O menino tinha majestosas asas negras, que soltavam penas delicadas. A menina, asas igualmente majestosas, vistosas e perfeitas, mas escarlates. Da cor do sangue. E, em suas mãos frias, uma foice de detalhes azulados.

Uma terceira criança, de aparência igual ao anjo de asas negras, se não fosse pela cruz de ouro que usava, de braços cruzados, assistia à cena.

“Por que está aqui, Remliel?” – ele perguntou. – “Você estar pessoalmente aqui, é porque...”

“Eu não sou o Zansatsu no Tenshi [4] à toa, não é, Suriel?” – a menina passou a língua nos lábios, deliciada com alguma coisa, ignorando a pergunta do hanyou e concentrando-se no anjo de asas negras.

“Por que está aqui, Remliel?” – desta vez, foi Shiho quem fez a pergunta.

“Para levar almas, oras.” – respondeu, tão rápida e sem dúvidas que parecia estar falando de tudo, menos de mortes. – “Estou de tocaia, na mesma situação de vocês.”

Mashiro soergueu uma sobrancelha, pensativo.

“...Queria me divertir levando a alma deste hanyou enquanto espero, mas você é muito forte. Não posso gastar minha energia nisso.” – suspirou.

“Me desculpe, Remliel.” – Shiho sorriu. – “Parece que você não levará o Mashiro-kun tão cedo.”

“Por que tanto empenho em defender essa criança, Suriel?” – a loira ficou interessada. – “Tudo bem que ele é um hanyou, isso é muito valioso... Mas não pode ser só por isso, você não é tão tolo.”

O anjo sorriu.

“Mashiro-kun e eu temos um trato.” – deu de ombros, ainda sorridente. – “A vida e alma dele em troca...”

“...Da morte do rei Kuro.” – Mashiro completou, os olhos fixos na anjo Remliel, aquela criança irritante. – “E do total esquecimento da minha mãe sobre qualquer ocorrido desde o Mundo Youkai.”

Remliel riu, tirando uma mecha loira de seus ombros pequenos.

“Vocês, youkais, são definitivamente engraçados!” – concordou, sorrindo divertida. – “Então, eu posso coletar outras almas dos anjos?”

“...Fique à vontade.” – o hanyou respondeu.

“Que youkai bonzinho.” – mais uma vez sorriu deliciada, acariciando o cabo da sua foice azulada. – “Muito obrigada.”

 

[1] Um bolinho de arroz japonês, em forma de triângulo ou de forma ovalada. É tradicionalmente recheado com umeboshi ou salmão frito.

[2] Jardim japonês tradicional (ou um tatame), próprio para cerimônias de chá.

[3] Um kimono (majoritariamente preto), o mais formal possível para as mulheres casadas.

[4] “Anjo da Aniquilação” ou “Anjo do Massacre”, em japonês.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Esperanto:solfege" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.