Céus de Agosto escrita por Blue Dammerung


Capítulo 2
Capítulo 2: Posso ficar com você? Por favor?


Notas iniciais do capítulo

"No fim destes dias encontrar você que me sorri, que me abre os braços, que me abençoa e passa a mão na minha cara marcada, na minha cabeça confusa, que me olha no olho e me permite mergulhar no fundo quente da curva do teu ombro. Mergulho no cheiro que não defino, você me embala dentro dos seus braços e você me beija e você me aperta e você me aquieta repetindo que está tudo bem, tudo, tudo bem."



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Ficou em silêncio, perguntando-se se teria sido intrometido demais ou aberto demais com um estranho (mesmo que não considerasse mais o guarda um estranho). Esperou por uma resposta que não veio e voltou a suspirar, se pondo de pé e arrumando as coisas, jogando a mochila nas costas como um escravo que joga um saco de trigo sobre si.

Mais uma tentativa, então? Uma tentativa, um pedido de ajuda mudo, uma quebra na timidez que sempre tivera. A voz, geralmente baixa e submissa, voltou a se erguer um pouco mais, um carro passando pela rua.

-Está escuro. Você poderia me deixar em casa? Não quero ir só...

O guarda poderia ter negado ou ainda ter permanecido imóvel, impassível. Poderia ter recusado, poderia ter até dado uma lição de moral em Matthew, mas longe disso, assentiu, os olhos pela primeira vez não tão frios, embora ainda azuis.

E o canadense sorriu, feliz, enquanto via o guarda tirar as mãos de detrás das costas e começar a andar ao seu lado, ambos atravessando a rua e pegando o caminho já conhecido pelo menor. Quem sabe fosse apenas uma responsabilidade do guarda, ceder ajuda quando as pessoas precisavam, ou porque, mesmo que essa fosse menos provável, porque queria ir. Queria realmente ir.

E Matthew ainda sorria, segurando as alças da bolsa nas costas com mais força, um calor tomando seu corpo como em agosto.

Aquela não era uma cena difícil de se ver, um guarda acompanhando um jovem até um lugar. Mesmo que aquela específica cidade qualquer da Europa não fosse muito perigosa, fazia parte da educação dos guardas auxiliar em qualquer coisa os habitantes, manter a paz, aquelas coisas que sempre saíam nos manuais e coisa e tal.

Mas não durou muito tempo e, quando Matthew se viu em frente a porta de sua casa, parou e se virou para o outro, que pela primeira vez, o fitava nos olhos.

-Eu moro aqui. Obrigado por me acompanhar.-Disse, sorrindo.

-Tenha uma boa noite, sr. Williams.-Disse o guarda, puxando de leve o chapéu para baixo numa espécie de mesura, e então saindo para voltar ao seu posto.

A voz era grossa, autoritária, como pensou Matthew, mas além disso ela tinha uma característica mais marcante. Era uma voz que mesmo grossa, conseguia ser gentil. E ele ainda tinha lhe chamado pelo nome. Entrou em casa feliz e dormiu feliz naquela noite. Era como se pela primeira vez naquele novo país, naquela nova vida, alguém tivesse percebido sua presença, notado que ele não era invisível.

Na manhã seguinte acordou cedo e foi para o colégio, passando pelo guarda e lhe dando um breve aceno mesmo que soubesse que ele não responderia, assim como na volta, acenando mais brevemente para não chamar atenção de seu irmão. Nos dias que vieram também, e sempre que Alfred tinha que ficar até mais tarde na faculdade, Matthew acabava parando ao lado do guarda e se sentando no chão para fazer as tarefas em sua presença, e conforme ia ficando tarde, pedia ao outro para que lhe acompanhasse até em casa, coisa que já estava virando rotina quando aquilo acontecia.

E sempre a mesma despedida “tenha uma boa noite, sr. Williams” era o bastante para fazer Matthew dormir feliz nessas noites, tendo sonhos estranhos e pensamentos curiosos no dia seguinte. Mas claro que nada dura para sempre.

Era então final de setembro, o clima ficando cada vez mais frio, as folhas das árvores ficando castanhas e caindo. Lembrou-se então do seu país, de como os parques ficavam bonitos com o chão coberto com aquelas folhas em diferentes tons de alaranjado. Nostalgia ao ver uma caindo sobre seu colo na sala de aula, o professor falando alguma coisa que não lhe interessava.

-Essa reação química, portanto, é causada pela pressão e temp... Matthew Williams, já que está mais concentrado em outras coisas e não na aula, deveria eu supor que o senhor já sabe esta matéria?-Perguntou o professor, aproximando-se da carteira do canadense e chamando sua atenção.

-Não, não, senhor, não sei, me desculpe.-Murmurou, vendo os outros alunos soltarem risinhos indiscretos.

-Ficará comigo depois do final da aula como consequência, entendeu?

-Mas...!-E o guarda? Não iria sentar-se ao seu lado se ficasse no colégio até mais tarde.

-Mas nada. Voltemos então ao assunto. Esta reação química, porém, é causada...

Bufou discretamente, abrindo o caderno para copiar o conteúdo no quadro negro, embora não quisesse. Pela primeira vez desejou ter uma voz mais altiva, mais grossa, mais imponente, como a do guarda.

No final da aula, todos os alunos se levantaram e deixaram a sala. O professor trancou a porta da mesma, a chave balançando na fechadura. Ficar no mesmo lugar que aquele homem não era muito agradável, seu olhar era negro, como se tivesse segundas intenções, e era ameaçador. Matthew mexeu-se na cadeira, incomodado.

-Matthew Williams, irmão de Alfred F. Jones. Vocês são irmãos mesmo? Nem tem o mesmo sobrenome.-Perguntou o professor, as mãos cruzadas sobre a escrivaninha.

-Somos meios-irmãos. Temos a mesma mãe, mas pais diferentes.-Explicou Matthew, discretamente olhando em seu relógio de pulso.

-E você é canadense? Mas aqui diz que sua mãe não é.

-Minha mãe nasceu na Bulgária.

-E como você virou canadense?

-Ela conheceu meu pai, que é francês, pouco depois de se separar do seu ex-marido, um inglês, com o qual teve meu irmão, que por acaso nasceu nos Estados Unidos. Meu pai e minha mãe se casaram no Canadá, aonde nasci. Isso faz de mim canadense.

-Família bem estranha a sua...-Murmurou, levantando-se da cadeira e puxando a mesma para se sentar ao frente ao canadense.-Sabe, seu irmão esteve bem aqui aonde você está várias vezes. Odeio aquele menino.

-Me desculpe, eu...

-Mas eu até gosto de você. Não me dá trabalho algum, na verdade, fiquei bem surpreso quando descobri que vocês são irmãos. Só se parecem na aparência, e olhe que nem tanto assim. Ele parece um homem agora, e você, uma menina. Por que não corta esses cabelos?

-Eu...-Engoliu em seco.

-Você é pequenininho, assim. Não é baixinho, e acho que é isso que te salva, mas seus braços são molengas. Você veste essas roupas grandes, são do seu irmão? Elas te fazem menor ainda. Pequenininho, frágil, vulnerável, Matt.

-Eu quero ir embora.-Murmurou.

-Não pode ir, está em detenção comigo aqui, sozinho. Posso fazer o que quiser com você, na verdade, não quer tentar?-O professor estendeu uma mão, tocando a perna do canadense e subindo até sua coxa.-Ninguém vai saber. Vamos, eu tenho certeza de que você gosta desse tipo de coisa. Acho até que seu pai te comia quando você era criança... Ou você ainda é uma criança?

-Eu preciso ir...!-Tentou se levantar, o sangue congelando dentro das veias, mas o homem puxou-lhe de volta para a cadeira, fazendo com que se sentasse. O coração batia rápido em seu peito e palavras lhe faltavam.

-Você não vai à lugar algum, moleque.-O homem então puxou sua blusa com violência, rasgando-a, passando a mão com volúpia pelo corpo do canadense que tentava gritar, mas além de sua voz estar falhando diante daquele pânico súbita, a mão livre do professor foi até sua boca, cobrindo-a.

Matthew fechou os olhos com força quando o homem acariciou seus mamilos, apertando-os com força, doendo. Chorava, as lágrimas caindo no chão enquanto usava todas as suas forças para se soltar, apavorado, em pânico.

Sentiu suas pernas serem abertas de repente e sabia que aconteceria o pior. Seu pai lhe ensinara sobre sexo, claro. Lhe ensinara sobre o homossexualismo e sobre as coisas estranhas do sexo, inclusive os estupros e a pedofilia, só aquilo já lhe assustava, imagine a prática. Engasgava com a própria saliva, o suor em todo seu corpo, animal prestes a morrer no abate.

E então, como um milagre, bateram de repente a porta da sala e tentaram entrar, mas esta fora trancada pelo professor. Vozes começaram a ser ouvidas, chamando e batendo a porta. O professor xingou baixinho e se afastou de Matthew, que respirava rapidamente, e uma vez que o homem se afastou, se pôs de pé e no momento exato em que ele abriu a porta para ver o que era, o empurrou para o lado e saiu correndo da sala, correndo pelo corredor e então correndo pelo pátio, a camisa rasgada, o casaco esquecido dentro do armário do colégio, as lágrimas caindo desesperadamente.

E correu pela calçada, fugindo, com medo, sentindo nojo de si e de tudo ao seu redor, querendo voltar para casa, não para a casa da sua mãe aonde era invisível, e sim para a casa aonde nasceu e cresceu, com seu pai, com seus antigos amigos, qualquer lugar aonde ao menos lhe olhassem nos olhos e o tratassem como uma pessoa e não como um objeto.

Qualquer lugar aonde realmente existisse, qualquer um que realmente o notasse.

E com força se chocou contra alguém. Nem percebera até onde seus pés lhe levaram, ele só queria fugir. Estava com frio, com medo, debilitado, vulnerável, fraco, que alguém apareça por favor, que minha vida mude por favor, eu não aguento mais por favor, por favor, por favor.

Ergueu o olhar, então achando os costumeiros olhos frios que via todos os dias exceto nos finais de semana. E estes o fitavam então com preocupação, realmente o vendo. Matthew chorou mais forte ainda, abraçando o guarda, sentindo o tecido grosso roçar contra seu rosto, quente. Não importava que a cena parecesse estranha para quem olhasse de longe, ele só queria que alguém o protegesse naquele momento, alguém, qualquer um.

O vento frio lhe fazia tremer, sua camisa em trapos. Uma mão enluvada pousou em sua cabeça, compreensiva. Ele deveria ser treinado para aquilo, para ajudar pessoas em momentos de choque. Tirou o casaco do uniforme e cobriu os ombros do canadense, afastando-se um pouco para olhar nos olhos do outro, úmidos, doídos.

-Você está bem?-Ele perguntou, coisa que só fez Matthew chorar ainda mais, soluçando, o rosto vermelho.-Williams? Matthew?

-Eu não queria!-Exclamou, a voz trêmula.-Ele... Ele... Ele me deixou em detenção e trancou a porta da sala e rasgou minha camisa e eu não sabia o que fazer! Estou com medo! Não conte para ninguém senão ele pode vir atrás de mim de novo!

O guarda fez uma cara séria, passando então para a irritada e por fim, a de ódio mortal, pegando o rádio em seu bolso no peito e falando alguma coisa com alguém enquanto Matthew ainda soluçava, apertando o casaco do outro contra si, com frio ainda.

Quando o guarda tocou-lhe o ombro novamente, ergueu o olhar, a feição amendrontada.

-Vou te levar para casa.

-Não quero ir para casa! Meu irmão vai rir de mim e minha mãe vai brigar comigo!-Exclamou, negando com a cabeça enquanto falava.-Eu odeio morar lá!

-E para onde quer ir?

-Posso ficar com você? Por favor?

-Não pode.

Matthew engoliu em seco, desviando então o olhar. Claro que não podia, o guarda deveria ter uma família, uma vida. Se meter assim era o mesmo que pedir para levar um chute, não podia.

-Vou te levar para casa.-Repetiu o guarda, lhe estendendo uma mão enluvada, a voz grossa com requintes de gentileza.

-Não quero ir...

-Falarei com sua mãe.

-Não vai adiantar...

O guarda suspirou então, rapidamente olhando no relógio. Seu turno só terminaria em três horas, mas...

-Posso ficar com você, se quiser. Mas a noite, terá que ir para casa.

Matthew ergueu o olhar, assentindo então, sabendo que aquilo era o máximo que iria conseguir. E limpando os olhos com as costas da mão, deu a livre ao guarda, que saiu andando dali com o outro enquanto comunicava que teria que sair mais cedo.

Era então uma cena estranha de se ver, um guarda andando de mãos dadas com um rapaz que mais parecia uma criança, posturas contrastantes, passos desregulares, mas de mãos ainda dadas.


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Notas finais do capítulo

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