Giuliet Volturi - Dark Side Of The Earth escrita por G_bookreader


Capítulo 32
Christopher




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Três dias depois da morte de Kratos, a mortalha não havia abandonado a casa. Talvez fosse a tensão constante de não saber o quão perigoso seria sair de casa, ir caçar. Ninguém saía sozinho, saía no mínimo com mais uma pessoa. Os lobos faziam o mesmo e, para se alimentar, caçavam um animal qualquer. Eles deviam estar sentindo falta da comida humana, mas não reclamaram de nada.

Benjamin havia ficado aqueles dias se recuperando, mas agora já parecia estar quase inteiro. Eu esperava que ele ficasse bom logo e tivesse alguma utilidade, além de olhar atravessado para qualquer um de nós quando estávamos nos alimentando. Eu tinha que ir à cidade, ao banco de sangue, para roubar mais alguns sacos, visto que, com tanta gente em casa.

Isso porque, no dia anterior, havia chegado mais gente. O irlandês Neil Heartworth, ou eu deveria dizer melhor, Padre Neil Heartworth. Sim, ele era padre, se vestia daquela forma, rezava missas, tinha uma paróquia na Irlanda, e tudo que um padre tinha. Mas era um vampiro. Se alimentava de sangue de animais, algo raro, porém possível. A diferença entre ele e nós é que seus olhos ficavam dourados quando se alimentava. Ele também sentia sede com mais freqüência e o sangue animal não dava o mesmo vigor. Sem falar que não matava a sede, nunca. É impossível viver assim e ponto final. Eu só queria saber como ele conseguia ser religioso vivendo no nosso mundo, mas cada um acha o conforto que merece.

Chegou também um clã Árabe que, apesar de não gostar muito do fato de haver uma mulher no comando, não gostavam muito do fato de Jason ser a próxima opção. Acho que eles prefeririam se eles fossem a próxima opção, mas com o ínfimo número de quatro, eles não poderiam fazer muita coisa. Além de obedecer, é claro. Depois deles vieram mais e mais, sendo que no total já éramos quarenta vampiros naquela casa grande, porém agora ínfima. Mas o mais surpreendente aconteceu na noite anterior.

Eu conversava na varanda com Lizzie quando os lobos deram sinal. Dois vampiros se aproximavam, e eu esperava sinceramente que fossem aliados. E eram, mas um deles era um tanto quanto improvável. Eram Paco e Salazar.

Paco teve quase que a mesma reação de Lionel ao ver Andreas vivo, porém mais contido. Cumprimentou a todos que conhecia animado e deu rápido cumprimento no resto. Salazar chegou quieto, meio que se encolhendo enquanto se aproximava de mim. Desde que conversamos na noite da queda da Capital, nunca mais havia ouvido falar dele. Mas recebi-o com um sorriso simpático, agora que eu conseguia fazer isso com uma facilidade assustadora.

-Olá, Salazar. É ótimo vê-lo novamente.

-Digo o mesmo, senhora. – Ele respondeu com uma reverência que me fez sorrir.

-Não precisa disso, pode me chamar pelo nome. Odeio que me chamem de senhora.

-Perdão então se... Giuliet. – Ele disse, com um sorriso sem graça.

-Venha, entre, devem ter feito uma viagem cansativa.

Entramos e ele foi para perto do sobrinho. Procurei Fátima em meio ao pessoal e a achei conversando com Kronus. De novo. Já estava ficando constrangedor.

-Fátima, vou até a cidade, quer vir comigo? – Perguntei, interrompendo a conversa que eles estavam tendo.

-Ah, claro, vamos.

-Vou chamar mais alguém para...

-Não senhora! – Ela disse, começando a me puxar. – Só nós duas vai ser o suficiente.

-Aonde as duas vão sozinhas? – Andreas perguntou quando passamos por ele.

-Sua irmã está me raptando. – Falei, bufando, enquanto ela continuava a me puxar.

-Boa sorte com isso. – Ele riu, nada solidário.

-Vou precisar de muita! – Falei, por cima do ombro.

Quando saímos da casa ela resolveu me largar e seguimos para a garagem. Ela estava animada e ansiosa e eu sabia que coisa boa não ia sair disso. Sorri só de imaginar o que poderia ser, Fátima era ótima em me fazer rir com alguma coisa totalmente fora do contexto.

Partimos com o carro e, quando entramos na estrada principal, ela começou a tagarelice.

-Aonde vamos? – Ela perguntou, se mexendo na cadeira. Ela parecia muito com uma criança de vez em quando. Dei uma risada com isso.

-Discoteca, Banco de Sangue, e qualquer coisa de interessante que aparecer no caminho.

-Sei. Está bem, então. – Ela não parecia satisfeita e ri de novo.

-Fala o que você quer falar, Fátima.

-Ah, eu não consigo me segurar! – Ela tentou se explicar, cruzando os braços.

-Eu sei disso. Fala. – Eu falei, olhando sorrindo para a estrada.

-O que aconteceu aquela noite? – Ela descruzou os braços e me encarou, curiosa. Claro que era isso.

-Que noite? – Me fiz de desentendida.

-Aquela que você sumiu, depois Andreas sumiu, depois os dois voltaram com cara de paisagem.

-Ah, aquela noite... Não aconteceu nada.

-Vocês demoraram bastante para não acontecer nada. – Ela me deu um sorriso vitorioso e eu revirei os olhos.

-Nós só conversamos um pouco, nada demais. – Dei de ombros e ela cruzou os braços, impacientes.

-Uma conversa sem importância teve um efeito bem interessante em vocês dois.

-Efeito interessante? Do que você está falando?

-Estou falando de vocês dois agirem exatamente como agiam antes dele ser pego e, pelo visto, sem nem perceberem. Desde aquilo vocês estão sempre no mesmo cômodo, completam a frase um do outro, aquela mania irritante de conversar pelo olhar, e meu irmão é uma pessoa muito óbvia. Então não me diga que não aconteceu nada, porque aconteceu!

Silêncio. Fátima mil, Giuliet zero. Como que eu ia responder a isso?

-Você é fofoqueira demais para o meu gosto. – Falei, desistindo. Ela riu e descruzou os braços, vitoriosamente. Infeliz.

-Então...?

-Pelo visto não sou só eu que tenho tido conversas interessantes. Você e Kronus estão bem amigos, também, pelo visto. – Ela ficou um tempo em silêncio. Fátima mil, Giuliet mil e um.

-Giuliet, você é uma cobra, sabia? – Gargalhei e ela acabou rindo também. – E você está até rindo, veja só...

-Eu sempre ri, isso não é evidência.

-Não, você fazia algo parecido a rir. Isso que você fez agora foi rir de verdade. – Sério, ela estava consumindo algo ilegal.

-Não muda de assunto. – Pressionei, ainda rindo.

-Quem mudou de assunto aqui foi você! Vamos, conte-me tudo e não esconda os detalhes.

-Que diferença isso vai fazer na sua vida?

-Toda a diferença!

Eu sabia que não ia me livrar dela, mas era engraçado demais para conseguir parar de rir. Ela não havia mudado em nada naqueles anos todos, continuava a mesma criatura inconveniente e engraçada. Era simplesmente impossível não gostar dela. Ela e Beta poderiam muito bem ser parentes. Já estávamos quase chegando na cidade.

-Giuliet, você está me ignorando. – Ela falou, agora emburrada.

-Ai! Se eu falar você me deixa em paz? – Ela sorriu, confirmando, e revirei os olhos.

-Ele me achou um pouco longe daqui, começamos a conversar, eu comecei a chorar que nem uma menininha. Satisfeita?

-Sim. O resto da história eu imagino.

-Você consegue ser chata quando quer, sabia?

-Anos de treino. – Ela respondeu, dando de ombros, e tive que sorrir.

Resolvi as coisas rapidamente na boate e logo depois estávamos estacionando nos fundos do Banco de Sangue. Era raro uma cidade tão pequena ter algo assim, mas eu ficava feliz que tivesse. Peguei um par de lentes de contato no porta luvas e as coloquei, ficando incomodada no instante seguinte com elas. Com os olhos castanhos escuro, me virei para Fátima.

-Espere aqui. – Falei, abrindo a porta.

-Por que eu tenho que ficar aqui?

-Porque o que eu vou fazer agora é vergonhoso, e alguém tem que vigiar a entrada.

-Tudo bem, então. – Ela disse, se recostando no banco confortavelmente.

Comemorei ela não ter me acompanhado, porque eu não gostava nada do que eu ia fazer agora. Em alguns lugares existem vampiros trabalhando no Banco de Sangue, como em Seattle, aonde até os “sangues especiais”, trabalhados para servirem como bebida alcoólica, eram fornecidos. Mas Forks não era um desses lugares. Então tínhamos que nos virar de uma maneira um tanto quanto sórdida. Alguns humanos se vendiam por um pouco de dinheiro, outros precisavam de um certo convencimento. O problema era o convencimento. Hecate era melhor nisso do que eu.

Entrei pelos fundos e, sempre procurando evitar as poucas câmeras do lugar e os poucos funcionários, consegui encontrar quem eu queria. Era um homem, devia ter uns trinta e poucos anos, responsável pelo controle das embalagens. Normalmente era ele quem nós subornávamos, e seria bem mais fácil encontrando-o sozinho. Quando me aproximei e ele me viu, fechou a cara. Pronto, ia ser um dia difícil.

-Boa tarde, senhorita. Em que posso ajudá-la?

-Olá. – Estendi a mão para cumprimentá-lo e, quando ele respondeu, teve uma boa quantia de dinheiro na mão. – O mesmo de sempre. – Ele olhou para o dinheiro inseguro e depois me encarou, desconfortável e estendeu o dinheiro de volta.

-Eu não posso fazer isso. Já estão desconfiando que tem algo errado. Não posso perder esse emprego.

-Vou ter que insistir. – Insisti, com a voz mais agradável que eu podia e o sorriso mais carismático. – Até porque, tenho certeza que um homem como você conseguiria uma coisa dessas facilmente.

Ele engoliu em seco e passou uma mão pelos cabelos empastados de creme. Mas, persistente, continuou estendendo o dinheiro.

-Não posso. – É, teria que ser com o “método Giuliet de convencimento”, e não o “método Hecate”.

-Você não quer me negar isso. – Minha voz saiu em um leve tom mais ameaçador do que seria para os instintos humanos dele. Logo estava suando frio. – Agora, o de sempre.

-Você não entende, isso é ilegal, eu posso ser preso por isso. – Ele tremia levemente. Ser um vampiro rendia momentos de verdadeira diversão.

-Ser preso seria um alívio para você, acredite. – Continuei no mesmo tom e sua tremedeira, conforme eu havia previsto, aumentou.

-Tudo bem, me perdoe. Espere aqui que eu vou buscar. – Ele disse, secando o suor em um lenço que trazia no bolso e saiu para o depósito.

-Vou estar esperando do lado de fora, nos fundos. – Eu disse antes que ele se afastasse, e ele devolveu com um aceno nervoso de cabeça.

Saí do lugar quase que rindo e Fátima me olhou, curiosa. Sussurrei um “nem queira saber” e ela deu de ombros, voltando a se recostar. Me recostei no capo do carro esperando, uma espera que durou apenas dez minutos. Logo ele apareceu carregando, desajeitado, três isopores não muito grandes. Abri a mala do carro e ele colocou-os lá, com cuidado. Seu rosto era um misto de nervosismo e medo. Quando fechei a porta do carro, comecei a andar em direção à porta do motorista.

-Fez a escolha certa. – Disse, enquanto abria.

-Posso saber para que você quer isso? – Ele venceu uma barreira do medo e perguntou.

-Se eu fosse você, não procurava saber. – Havia aviso na minha voz e isso fez ele voltar todas as barreiras que havia avançado. – Agora pode voltar ao seu trabalho.

Enquanto eu dava ré com o carro, ele entrou novamente no estabelecimento com mais pressa do que o normal.

-Isso não foi delicado. – Fátima falou, indiferente.

-Indelicadeza não resolve todos os problemas do mundo. Na verdade, não resolve nem metade.

-Se você diz. Vamos aonde agora?

-Preciso fazer mais uma coisinha. E, para fazer isso, antes estar com você do que com seu irmão.

-Qual deles?

-O terror da minha vida.

-Giacomo? Bem, já que ele não pode estar aqui, vai ser algo legal.

Um pouco depois paramos em frente à uma loja de roupas. Ela me olhou confusa.

-Estamos precisando de roupas?

-Não. Quer dizer, parece que agora eu estou. Não estou mais de luto.

-Não? – Ela perguntou, empolgada.

-Até a última vez que eu conferi, Andreas não estava mais morto. – Eu disse, dando a ela um sorriso e saindo do carro. – Talvez você queira me ajudar.

No segundo seguinte ela já estava do meu lado. Olhei ao redor, procurando um indício de que alguém havia visto, mas, por sorte nada. Olhei para ela, reprovando, e ela murmurou um “desculpa, vamos logo”. Senti como se levasse uma criança para uma loja gigantesca de brinquedos. Eu sabia que ia me arrepender disso. Ainda mais quando chegasse em casa e Hecate começasse a falar no meu ouvido porque não estava junto.

Eu achava que ia me arrepender, mas não sabia que seria tanto. Ela me enfurnou em uma cabine e me fez experimentar mais roupas do que eu poderia contar. Cada coisa mais colorida do que a outra, me perguntei se ela queria me transformar em um arco-íris ambulante. Mas a palavra final ainda era minha, então, quando eu consegui convencê-la que já era o suficiente, escolhi apenas as que me interessavam. Cedi um pouco também, comprando algumas coisas que ela queria. Saímos carregando mais sacolas do que eu havia planejado. Teríamos que correr ou aquele sangue não chegaria bom em casa.

No caminho de volta, ela falava toda animada. Ela sempre falava animada. Sorri quando vi a oportunidade de alfinetar.

-Então, você não respondeu a minha pergunta. – Eu disse, quando ela conseguiu ficar quieta por trinta segundos.

-Que pergunta?

-Kronus. – Respondi, um sorriso debochado crescendo no meu rosto. Ela ficou um pouco envergonhada, eu tinha certeza de que, se ela pudesse corar, teria feito isso.

-Ele é um cara legal, a gente tem conversado bastante e... – Ela não terminou a frase.

-E...? – Eu não ia deixar isso passar. Não ia mesmo.

-Ah, Giuliet, me deixa! – Ela reclamou, olhando para fora da janela. Havia começado a chover.

-Te deixar por que se você não me deixa? – Brinquei e ele emburrou. – Outro dia Andreas e Giacomo estavam olhando torto para ele. Melhor cuidar dele, sabe como aqueles dois são.

-Ai deles que toquem um dedo nele! – Ela defendeu Kronus e, apenas quando eu sorri sarcasticamente, ela se deu conta do que tinha falado. – Eu quero dizer... Ele não faz nada, eles não podem ir lá e...

-Já entendi, Fátima, já entendi. – Continuei sorrindo e ela me ignorou. Talvez fosse melhor falar sério. – Ele é legal. Se não fosse, não teria aceitado ele no nosso clã. Eu dou todo o apoio do mundo.

-Obrigada. – Ela disse, dando um sorriso sem graça na minha direção.

Ela ficou em silêncio o pouco que faltava da viagem. Quando chegamos lá a chuva havia apertado e, quando estacionei, Giacomo e Andreas apareceram na garagem.

-Trouxeram o almoço, meninas? – Giacomo perguntou, se aproximando do carro.

-Trouxemos, está no porta mala. – Eu disse enquanto o destrancava e o entregava as três caixas. – Freezer urgentemente.

-Indo. – Com isso, ele sumiu na direção da casa.

-Por que vocês demoraram tanto? – Andreas perguntou, se aproximando. – Estava começando a ficar preocupado.

-Fátima se empolgou um pouco com uma coisa e você sabe como sua irmã fica quando está empolgada. – Eu respondi e Fátima me deu língua, pegando alguma das sacolas. Eu e Andreas rimos.

-E que monte de sacolas são essas? – Sua sobrancelha estava levantada.

-Não é da sua conta, irmãozinho. – Ela mandou um beijo debochado para ele enquanto saía cheia de sacolas. – Giuliet, está no seu quarto.

-Ok, obrigada! – Falei enquanto ela sumia e eu fechava a mala do carro, carregando o que sobrou de sacola.

-Quer ajuda aí?

-Não, não precisa. Está tudo bem.

-Não vai me dizer o que é isso tudo?

-São roupas, criatura curiosa. – Eu respondi com um sorriso enquanto me aproximava dele.

Estiquei meu corpo para alcançá-lo e dar um beijo rápido, mas quando ia me afastar ele me puxou pela cintura, me impedindo de sair e aprofundando o beijo. Quando eu menos esperava, puxou as sacolas da minha mão e se afastou, sorrindo vitoriosamente.

-Eu levo. – Ele disse, começando a sair, enquanto eu o olhava embasbacada.

-Isso é golpe baixo. – Reclamei, e ele deu de ombros rindo.

-Havia alguns golpes baixos seus que eu não havia me vingado ainda.

Revirei os olhos, sem deixar de sorrir, e o segui para a casa. Para o pandemônio, melhor dizendo. A noite já começava e alguns vampiros deveriam ter ido se preparar para a ronda da noite. Outros deveriam estar espalhados pela casa. Na sala havia quinze, entre eles, Ashley. Ela estava sentada no chão, como uma boa parte deles, olhando qualquer coisa na parede. Bem, provavelmente estava olhando qualquer coisa dentro dela mesma. Vê-la assim fez a mortalha cair sobre mim de novo e me senti um pouco culpada. Sempre que olhava para ela me sentia culpada, afinal de contas, eu havia o matado, bem ou mal. Eu ficava triste com a morte de Kratos, claro, ele era um vampiro incrível, mas havia sido a escolha dele e isso me deixava um pouco melhor. Mas eu sabia que isso jamais serviria para Ashley. Tudo que a mente dela estava registrando era a ausência dele, eu tinha certeza. O fato de Gabi nem chegar muito perto dela comprovava isso. A mente de quem passa por isso não é nada convidativa.

-Vocês fizeram compras? – Hecate perguntou, do nada, me tirando do meu devaneio. Andreas havia subido com as sacolas.

-Sim, comprei algumas roupas, estava ficando sem.

-Ah, por que não me chamaram? Você sabe que eu gosto dessas coisas!

Eu bem que queria, mas Fátima queria cuidar da minha vida.

-Da próxima vez você vai. Aconteceu alguma coisa essa tarde?

-Camily quer falar com você. – Ela disse, apontando para o lado de fora. Os quatro lobos estavam deitados, naquela chuva. E, mesmo molhada, Camily parecia dormir.

-Acho que ela está dormindo.

-Ela falou para, caso isso acontecesse, era para acordá-la.

Avaliei a situação. Eles passavam o dia inteiro cobrindo quilômetros e quilômetros e, no fundo, ainda eram humanos. E estavam nos ajudando, apesar de tudo. Suspirando, atravessei o quintal, na chuva, me molhando toda. Quando me aproximei ela levantou a cabeça, um pouco sonolenta. Como ela conseguia dormir na chuva?

-Camily, vocês devem estar cansados. Virem humanos e venham para dentro. Essa chuva vai fazer mal. – Eu disse, acenando na direção da casa. A loba me olhou com um certo desconforto e continuou deitada, sem fazer nada. Revirei os olhos. – Nenhum vampiro lá dentro vai fazer nada com vocês. É o mínimo que a gente pode fazer pela ajuda de vocês. E, além do mais, eu preciso falar com você. Venham, entrem. – Ela não mostrou interesse, abaixando a cabeça novamente. Tudo bem, não quer ir, não vai. Fiquem molhados até os ossos se preferem. – Tudo bem, quer ficar aí, fica, mas quando resolver ficar humana me procura porque eu preciso falar com você.

Ela obviamente não me respondeu nada e voltei para a casa, irritada por ter me molhado toda a toa. Fui direto ao meu quarto e comemorei o fato de encontrá-lo vazio. Tranquei a porta, para que continuasse nesse status e encarei as sacolas que estavam em cima da cama. Fátima era exagerada, mas de vez em quando ela superava minhas expectativas, se mostrando mais exagerada ainda. Lembrei o que tinha comprado e busquei nas sacolas uma combinação qualquer. Fui ao banheiro e coloquei a roupa sobre a pia, me encarando no espelho logo depois. Encarando de volta estava a mesma imagem de sempre, a vampira de cabelos castanhos abaixo do ombro, rosto fino, olhos vermelhos e olheiras de sede. E as roupas pretas e encharcadas, que semanas antes seriam as únicas aceitáveis em meu corpo. As tirei, quase que em um ritual, e as joguei no canto do banheiro. Depois de um banho quente e relaxante, saí novamente e, após me secar, comecei a me vestir, também como se fosse um ritual. Quando estava vestida novamente, voltei a me encarar no espelho. Agora vestia uma calça jeans azul escura e uma blusa branca de botão, a manga ia até os cotovelos. Eu parecia outra pessoa dentro daquelas roupas, que soavam ao mesmo tempo estranhas e certas. Eu estava fechando um ciclo da minha vida, um capítulo que dificilmente iria querer abrir para relembrar.

O que provavelmente aconteceu foi que, chorando com Andreas, eu acabei expulsando coisas demais que estavam presas em lugares obscuros da minha mente. Dezenas e dezenas de sentimentos ruins que eu vinha segurando porque tinha que ser forte na frente do mundo inteiro. Que eu vinha segurando simplesmente por não conhecer outra alternativa. Mas agora que eles não estavam pesando mais nos meus ombros eu me sentia incrivelmente leve e disposta, é como se o mundo houvesse ficado ainda mais brilhante. Eu me sentia quase pronta para sentir um pouco de felicidade de vez em quando. E além do mais, Andreas não estava mais morto. Melhor dizendo, nunca esteve. Estar de luto era uma coisa quase que estúpida.

Saí do quarto quando as roupas estavam todas no guarda roupa e a roupa usada na lata do lixo. Eu não ia usar mais aquilo. Bem, eu esperava que não.

Havia mais de quarenta vampiros na casa, a casa era grande, havia milhares de coisas a serem feitas em diferentes lugares. E, de todos esses vampiros, qual que aparece na minha frente? Sim, Giacomo. Ele parou no lugar e me olhou dos pés a cabeça, enquanto eu congelava. Giacomo era o último vampiro que eu queria encontrar naquele momento. Eu ficava cada vez mais certa disso enquanto o sorriso debochado crescia no seu rosto.

-Cunhadinha! Você de branco! – Ele cruzou os braços enquanto eu respirava fundo, sabendo que não ia me livrar daquilo cá tão cedo.

-Pelo visto você não é daltônico. – Comecei a andar, mas ele bloqueou o meu caminho.

-Quer dizer então que acabou aquela fase gótica? Algum motivo especial?

-Ninguém que eu achava estar morto está realmente, eu não preciso me vestir de preto.

-Claro que é isso, cunhadinha, claro... – Ele respondeu, sarcasticamente. Revirei os olhos.

-Você e Fátima vão me enlouquecer até o final do dia, juro. Agora, eu posso circular pela minha casa ou vai continuar no caminho?

Ele levantou as mãos meio que para demonstrar inocência e saiu da minha frente. O olhei com uma fabricada cara feia e ele deu uma risada. Ele era tão irritante! Como que ele havia saído da mesma família que Fátima e Andreas? Tudo bem, Fátima era bem irritante de vez em quando. Andreas também, para ser sincera. Mas nenhum deles no nível de Giacomo. Ele desceu junto comigo, ainda com aquele sorriso debochado no rosto. Eu ia acabar o agredindo.

Quando terminamos de descer as escadas, eu tive a impressão de que o universo inteiro estava olhando para a minha cara. Mas eram só os do nosso clã, o que já era o suficiente.

-Uma palavra sobre isso e a coisa vai ficar feia. – Falei antes que alguém fizesse isso, mas eu tinha uma pequena idéia de que eles iriam me ignorar.

Não tiveram tempo para isso. Os lobos se levantaram e ficaram em posição, apontando para um lugar específico. Fui na direção da porta, esperando para ver o que chegaria. Tinha noção de Andreas e Lionel logo atrás de mim. O vampiro loiro e de aparência arrogante surgiu por entre as árvores, com uma expressão totalmente despreocupada. Ele poderia muito bem estar passeando pelo shopping. A respiração de Andreas descompassou e eu sabia que ele não deveria perder o controle, não agora.

-O que faz aqui, Christopher? Não é bem vindo. – Falei, tentando demonstrar que ele estava no lugar errado. Ele continuou com a expressão calma, apesar de haver uma pitada de desprezo.

-Giuliet, Giuliet... – Ele deu um suspiro teatral. – Já disse que assim você vai ferir os meus sentimentos. – Ele olhou para os lobos, que estavam praticamente na sua frente, prontos para o ataque. – Você pode mandar os seus cães de guarda pararem com isso?

-Eles não são meus cães de guarda. E eu não estou nem um pouco disposta a pedir que eles saiam da sua frente.

-Quem é ele? – Perguntou Lionel.

-Christopher Allen, capanga do meu pai desde que era garoto. – Respondi, sem conseguir esconder o nojo na voz.

-Esqueceu ex-noivo! – Christopher disse, dando de ombros.

-Esqueci patético. – Retruquei, perdendo todo o humor mais ou menos bom que eu tinha. – O que você quer aqui?

-Ora, conversar, o que mais eu faria aqui sozinho?

-Não sei, de vocês eu espero qualquer tipo de coisa.

-Nós temos negócios a fazer. E essa não é a melhor forma de tratá-los. Deixe-me entrar. Você foi até seu pai, e dessa mesma forma ele quer vir até você. É só uma conversa.

Avaliei a situação. Ele, aparentemente, estava sozinho. Eram quarenta vampiros e cinco lobisomens, contando com Benjamin. Eu sabia me defender. Eu não tinha nada a perder, além de tempo.

-Entre e faça com que eu não me arrependa disso.

Os lobos deixaram ele passar, mas não sem sair do estado de alerta. Andei para trás e os outros fizeram o mesmo. Percebi que Andreas havia se afastado muito, ido para o canto da sala. Talvez buscasse um lugar mais seguro para ele mesmo. Ele sabia que não podia se controlar muito bem, ainda mais se chegasse ao ponto de ter raiva. Nossos olhares se cruzaram e me perguntei se ele estaria bem. Como se lesse meus pensamentos, ele fez um leve aceno que sim. Eu duvidava muito. Christopher chegou até a porta e tive minha atenção desviada. Todos os vampiros tinham os olhos colados nele. Cada breve respiração era vigiada atentamente.

-Então, fale.

-Qual é a noção que vocês têm de negócios? A mesma de show gratuito? – Ele reclamou, cruzando os braços, impaciente.

-Eu não tenho nada a esconder de nenhum desses vampiros. Os assuntos que nós temos a tratar são do interesse de todos aqui.

Ele olhou ao redor da sala, para os outros. Seus olhos se prenderam em Lizzie e seu rosto ficou sem emoção. Eu não sabia dizer o que estava se passando na sua cabeça naquele momento.

-Você nos traiu mesmo, pelo visto. – Ele disse, a voz igualmente sem emoção.

-Eu nunca estive exatamente do lado de vocês, Christopher. – Ela respondeu, paciente.

-Jason ficou irado. Você estragou metade dos planos dele quando ajudou ela a resgatar aquele ali. – Ele gesticulou na direção de Andreas. Curioso como ele tinha desviado do assunto principal.

-Eu não em arrependo de nada.

-Parece que não. – Ele disse e parecia... amargurado? Ele voltou sua atenção para mim. – Podemos resolver isso logo? Eu não gosto muito de estar aqui.

-Venha comigo. – Respondi, decidindo que daria a ele a audiência. Todos me olharam confusos, não entendendo minha mudança repentina de opinião. Mas eu achava que tinha visto alguma coisa a mais ali, algo que poderia fazer alguma diferença, e que eu não poderia tratar no meio de todos.

Saí da casa e fiz o mesmo trajeto que havia feito com Myrtis alguns dias antes, parando nos fundos da casa. Christopher vinha sério, sem aquela calma de antes. Isso dava mais um pouco de força à minha teoria. Virei-me para ele, cruzando os braços, visivelmente doida para acabar com aquilo.

-Fale o que você quer. – Minha voz era seca e urgente.

-O que eu quero é muito simples. Eu quero a mesma coisa que Jason lhe propôs quando você foi até Londres.

-Negado. Pode ir embora agora? Sabe que eu poderia te matar quando quisesse, não sabe?

-E por que não faz isso? – Ele me desafiou, aparentemente ficando irritado.

-Porque eu quero que o meu não chegue até Jason.

-Tem certeza de que quer um não? Porque, você sabe, um de vocês já foi eliminado. Outro poderia passar pelo mesmo facilmente. – Eu sabia que, quando as palavras entraram na minha cabeça, meu olhar havia se tornado mortal. Ele sorriu, sabendo que tinha um ponto.

-O que vocês fizeram a Kratos só me fez odiá-los com mais forças ainda. Eu nunca deixaria que Jason comandasse. Não é possível que você seja tão idiota a ponto de idolatrá-lo.

-Eu não o idolatro. Eu só concordo com ele.

-As pessoas mudam. – Sugeri, ficando mais calma, sabendo que aquilo não levaria a nada.

-Não, elas apenas agem conforme o conforto delas mesmas. Eu não vou mudar. – Ele começou ir embora, dando as costas para mim. Ele realmente acreditava que eu não ia fazer anda contra ele. E eu não ia, não agora.

-Nem mesmo por Lizzie? – Joguei a pergunta, fazendo-o girar nos calcanhares e me olhar transtornado.

-Do que você está falando? – Pelo seu tom ele parecia me achar maluca. Mas eu sabia que não era bem assim.

-Você sabe do que eu estou falando. Eu sei ler as pessoas, Christopher. Você gosta dela.

-Já percebeu que você analisa a vida como se estivesse em um livro de ficção? Primeiro foge que nem uma louca para morrer, depois enxerga coisas onde não tem. Guarde isso para você, Giuliet. – Ele voltou a andar, irado. Se fosse mentira, ele não ficaria tão irritado. Eu tinha um ponto agora também. Comecei a voltar também, não querendo sair de perto dele por questões de segurança. Christopher era imprevisível e eu não queria ele livre para cometer uma loucura.

-Pode ir embora agora. – Eu disse quando ele se aproximou novamente da entrada da casa, apenas para parar à uma distância segura de Benjamin, que estava sentado na varanda. Fui ignorada completamente. Ele se virou para o lobo e deu um sorriso de escárnio.

-Você é um fraco mesmo. Você, Elisabeth e aquele pirralho do irmão dela. Vocês se diziam tão fiéis a Jason e agora estão aí, do lado do inimigo. – Ele falar aquelas coisas ali não faziam o menor sentido. O que diabos ele estava fazendo? – Mas no fundo eu sabia que isso ia acontecer. Que seria só Giuliet aparecer para você sair correndo que nem um filhote ferido e ela – Ele gesticulou na direção de Lizzie, que olhava a cena com olhos de raiva.  – ir correndo atrás da irmãzinha perdida. Eu não tenho palavras para dimensionar o quão patético vocês parecem agora.

-Christopher, vá embora. – Lizzie falou, a voz controlada.

-Claro que você quer que eu vá embora. Deve te envergonhar ver que eu não traí quem me acolheu.

Aconteceu muito rápido. Em um segundo Benjamin estava sentado, os olhos negros fitando Christopher. No outro ele estava saltando e se transformando no ar. Quando caiu, havia um lobo gigantesco, com quase três metros de altura, a pelagem tão negra que quase brilhava, exceto ao redor dos olhos e do focinho, onde havia manchas cinzas. Era muito maior do que eu me lembrava, provavelmente porque haviam se passado séculos. Camily, que era a maior de todos os outros e, na minha opinião, era maior do que deveria ser, parecia estranhamente pequena enquanto o encarava, distante. O lobo negro avançava lentamente na direção de Christopher, os olhos negros pegando fogo. Christopher parecia ter congelado no lugar, sem saber muito bem o que fazer. Sua expressão era fria, eu novamente não sabia dimensionar as suas emoções. Por um momento desejei que Benjamin o dividisse em partes, mas não podia. Ele tinha que chegar a Jason com um “não”.

-Christopher, vá embora agora. Se ele avançar em você, eu não vou fazer nada para impedir. – Benjamin deu uma breve rosnada, como que para comprovar o que eu dizia.

Christopher recuou lentamente até estar a uma distância mais ou menos segura do lobo e começou a partir, mas não sem antes resmungar um “vocês vão se arrepender disso”, como se eu nunca houvesse ouvido essa antes. Quando ele foi embora, Benjamin se virou para mim, como se quisesse falar alguma coisa.

-Não, não é comigo que você tem que conversar. É com eles. – Eu disse, apontando para os lobos. – A de pêlo castanho é a Alfa, boa sorte. E, independente do que aconteça, seria muito bom que ela continuasse como Alfa.  

Ele ficou meio parado, sem saber o que fazer por um tempo. Eu não fazia a menor idéia de como esse negócio de lobo funcionava, mas eu acho que eles iriam acabar se entendendo. Até porque, com eles na mente de Benjamin, seria mais fácil controlá-lo. Entrei para a casa sem checar o que ele havia feito realmente e meus olhos buscaram Andreas. Ele estava estranhamente no mesmo canto de antes, o olhar sem foco e distante. Eu sabia o que isso significava.

-Fátima, uma visão! – Eu a chamei e ela veio correndo na direção, enquanto eu me aproximava dele. Nós duas paramos à sua frente, eu toquei o seu ombro, lembrando que as visões, de vez em quando, tendiam a causar reações ruins. Ainda demorou alguns segundos até ele voltar, o olhar com um misto de nervosismo, provavelmente pelo que viu na visão, e alívio, provavelmente por estar tendo elas novamente. – O que você viu? – Perguntei, calmamente.

-Jason. Ele está se preparando. – Ele falou, a voz morta.


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Notas finais do capítulo

Estamos agora entrando na fase final da história, só devem ter mais alguns capítulos. Só para avisar.
E eu não sei o que vou fazer da minha vida quando acabar, mas beleza. kkkk'



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