Giuliet Volturi - Dark Side Of The Earth escrita por G_bookreader


Capítulo 14
"Ela fica. Eu prometi..."




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Quando cheguei em casa, não expliquei nada. Só mandei que ficassem quietos, que alguém me ajudasse e depois a gente conversava. Intrigados, ficaram parados enquanto Gabi e Hecate me acompanhavam, Gabi pegando a mochila da menina. Eu podia ouvir os murmúrios vindos de onde eles haviam ficado, mas estavam baixos demais para que eu ouvisse exatamente o que era. As duas estavam muito quietas, mas eu via a confusão nos olhos delas. Gabi provavelmente estava frustrada por eu estar bloqueando isso, mas certas coisas eram pessoais demais para que ela ficasse ouvindo da minha mente.

Chegamos ao primeiro quarto que apareceu na minha frente, que vinha a ser o de Hecate, e fomos para o banheiro. Lá, elas me ajudaram a dar um banho em Roberta, o medo de usar força demais e machucá-la presente. Eu quase podia ouvir o som da mente de Hecate funcionando. É, ela já tinha percebido que havia algo de muito estranho. Ok, óbvio que tinha algo de estranho, tudo estava estranho. Mas ela estava matando a charada. Pelo menos era o que eu achava.

-Giuliet, pelo amor de Deus, o que está acontecendo? – Implorou Gabi enquanto botávamos uma roupa na menina e a colocávamos na cama.

-Vocês vão entender. Podem descer, eu já vou.

-Mas...

-Gabi, vamos. – Disse Hecate, tirando-a do quarto.

Elas saíram e ouvi o burburinho aumentar no primeiro andar. Parou logo, elas não sabiam de nada. Era por isso não falei nada para elas, eu queria contar a história a todos, sem segundas interpretações.

-Eles estão chateados comigo? – Perguntou inocentemente Roberta com a voz um pouco cansada.

-Não, ninguém está chateado com você. Eles só estão um pouco confusos. Fica aqui deitada, dorme um pouco que eu tenho que ir falar com eles, tudo bem?

-Tá. – Respondeu simplesmente, se deitando e se cobrindo com dificuldade com um edredom.

Quando vi que ela estava acomodada o suficiente, desci sem a menor vontade. Quando eu cheguei no alto da escada, eles começaram a falar todos ao mesmo tempo, e eu não entendi o que nenhum falou, no final das contas.

-Vocês vão calar a boca e me ouvir ou vão ficar aí falando ao mesmo tempo por toda a eternidade? – Falei rudemente, e eles pararam, para minha felicidade. – Bom. Acho que agora dá para conversar como pessoas civilizadas. Eu sei que vocês não estão entendendo nada, eu também não estou entendendo muita coisa.

-O que faz uma criança no seu quarto? – perguntou Matt, abruptamente.

-Ela não é humana. Nem vampira, como é óbvio.

-Arrumou um filhote de lobisomem? – Continuou ele, debochado.

-Não, ela não é um filhote de lobisomem também.

-Ok, um duende? Sereiano? As opções estão acabando.

-Essas coisas não existem, como você bem sabe. Agora, dá para calar a boca um pouco? – Falei, usando um pequeno tom de ordem, o suficiente para faze-lo se encolher discretamente e ficar quieto.

-Ela é uma híbrida. Metade vampira, metade humana. E...

-Isso também não existe. – Matt falou de novo.

-Se você não calar a boca, eu vou cuidar disso pessoalmente. – Kronus ameaçou e Matt o olhou de cara mais amarrada do que antes.

-Continuando. Achávamos que vampiros não poderiam ter filhos porque nunca tínhamos convivido com um vampiro que se juntasse com uma humana, até porque, é proibido. – Matt resmungou um “para de enrolar” que eu ignorei dignamente. – A mãe dela era uma humana, morreu no parto, eu bem que consigo imaginar como. O pai era vampiro e ele morreu ontem, atacado por vampiros do antigo clã. Eu achei a garota antes de acha a luta, e ainda o vi morrer. Fugi e lá está ela. Para completar, nunca tivemos filhos porque vampiras não podem mudar o corpo, logo, não podem ter um filho. Foi a única explicação razoável que eu encontrei.

-Esse clã pode vir até nós? – Perguntou Anne, sentada no canto do sofá.

-Eles me perseguiram, estão mortos. E agora nós temos que escolher. Eu a trouxe para cá porque não pensei em nada melhor. Ou ficamos com ela ou damos um destino.

-Dar um destino seria... matá-la? – Anne tornou a perguntar, a voz temerosa.

-Não. Seria entregá-la a um clã de confiança. Ela não é uma criança vampira, e ela cresce. Eu não sei até que ponto, mas cresce.

-O que você acha que devemos fazer? – Gabi devolveu a pergunta.

-Eu não consigo pensar em ninguém que ficaria com ela.

-Nem eu. Acho que não há problema em ficarmos com ela. Pelo menos por enquanto. – Disse Hecate, Gabi e Anne concordaram com “ahams”.

-Ficar com ela? Vocês enlouqueceram? – Perguntou Matt, um pouco alterado. Porque ele sempre tinha que ser o radical?

-Qual o problema? – Disse Anne, o olhando com impaciência.

-E você ainda me pergunta? Não acham que não temos problemas demais não? Amoleceram? Ela só vai nos causar mais problemas. Não é problema nosso o que acontece com ela, não fomos nós que colocamos ela no mundo.

-Meninas, me desculpem, mas eu concordo com o Matt. – Disse Kronus. – Não tem como cuidarmos de uma criança. Temos uma ameaça iminente e não tem como.

-Finalmente alguém ouviu a razão! – Resmungou Matt, levando as mãos para o alto.

-Eu prometi ao pai dela que cuidaria dela. E além do mais, não podemos fazer nada com ela. A regra é clara: humanos não podem saber. Ela não é humana. E crianças não podem ser transformadas em vampiros. Ela não é vampira. E tem mais, ela não é a única. Os que existem se escondem de nós.

-Desisto, vocês se resolvam, eu não quero nem saber. – Matt disse, se levantando e subindo as escadas, indo para seu quarto.

O que sobrou na sala foi um silêncio desconfortável. Matt sempre foi difícil de lidar. Eu o havia encontrado quase morto trezentos anos antes, ele havia sido atacado por um bicho qualquer e dava os últimos suspiros. Os Volturi, na época, estavam resumidos à mim e à Hecate, não duraríamos muito tempo com esse número. Eu nunca havia transformado ninguém, nem sequer sabia se conseguiria resistir para fazer isso, mas foi uma espécie de medida desesperada. Logo ele era um vampiro recém-criado, irritadiço e mal humorado. Ele já tinha seus problemas quando humano e pareceu carregá-los por toda a eternidade. Os anos se passaram, o clã havia crescido, eu havia melhorado – péssima era pouco para me definir na época que o transformei – mas ele continuava com aquela aura que o separava de nós. Eu não gostava disso, eu o via praticamente como um filho, ou algo parecido. Era estranho definir como eu me sentia perto dele e de Gabi, os que eu havia transformado. Anne e Kronus haviam chegado e se unido simplesmente.

-Eu concordo que é ruim ficarmos com ela, mas também não quero matá-la. O que vocês quiserem para mim está de bom tamanho. – Disse Kronus, dando de ombros se sentando ao lado de Anne.

-Vamos ficar com ela, então. – Hecate afirmou, as outras duas concordando com a cabeça.

-Então estamos decididos. – Eu disse, a voz soando normal, mas eu não pude deixar de sentir um alívio estranho com isso.

-O que Ricardo te disse? Você não conseguiu explicar muito bem pelo telefone. – Hecate mudou de assunto tão repentinamente que demorei para fixar.

-Ele disse que tem um tal de Michael Carter tentando virar o mundo contra nós. Uma conversa de que estamos preparando uma espécie de Holocausto, queimando todos aqueles que um dia infringiram a lei da forma mais simples.

-E as pessoas estão acreditando realmente nisso? – Anne perguntou com um tom cético.

-Eu também achei ridículo quando ouvi, mas segundo eles, o cara é convincente.  Exageradamente convincente. Quando eles tentaram ataca-lo, ficaram cegos. Ele meio que apagou a visão deles, e aí ficou mais simples fugir. Não consegui achar o rastro dele, então não faço a menor idéia do próximo passo que ele vai dar.

-Se ele der. – Completou Kronus, esperançoso demais.

-Não sei. Só estejam prontos. Os lobos já sabem.

-Já?

-Já. – Comecei a falar baixo, para que Matt não ouvisse. – A alfa deles apareceu enquanto eu lutava com os caras. Se não fosse ela, eu provavelmente não estaria aqui, eu quase morri hoje. – Percebi eles arregalando levemente os olhos, mas continuei a narrativa. – Quando eles estavam mortos ela apareceu de novo humana, então eu expliquei a história toda. Eles não serão um problema. E espero que não tenham sido enquanto estive fora.

-Nem deram sinal de vida. Só os víamos quando íamos até a cidade ver a obra. – Bem lembrado, a obra. Com tudo aquilo eu havia me esquecido. – Acredite ou não, eles estão quase acabando a reforma.

-Eu fiquei cinco dias fora. – Respondi, surpresa.

-Com o número de pessoas que você colocou para fazer aquilo, não me admira. – Kronus falou, e o clima ficou mais tranqüilo na sala. Mas não na casa, eu tinha que falar com Matt.

-Eu vou subir, já volto.

Subi as escadas enquanto Anne ligava a TV em um canal de culinária – eu nunca sabia porque diabos ela assistia aquilo, mas ela gostava – Hecate pegava o livro que estava lendo e se sentava na varanda e Kronus sumia. Gabi se uniu a Anne, apesar de não gostar muito dos programas de culinária. Acho que ela também não entendia o porquê de assisti-los.

Passei pelo meu quarto, entreabrindo a porta. Beta dormia tranqüilamente na cama, o peito subindo e descendo lentamente com a respiração calma. Me peguei sorrindo para a cena e me repreendi, fechando a porta em seguida e seguindo para o quarto de Matt.

A porta estava trancada. Como se isso fosse me impedir. Lá dentro ele tocava violão, uma música calma e devagar, mas eu podia ouvir sua impaciência com as cordas, que soavam um pouco grosseiramente.

-Você sabe que nada me impede de arrombar a porta ou simplesmente entrar pela janela. – Falei simplesmente, ouvi um bufar e o trinco se movendo.

Abri a porta e ele estava de costas, virado para a janela. Ele tinha trezentos anos de idade e agia igual à um adolescente rebelde. Ele nem sequer era mais adolescente, tinha dezoito anos quando foi transformado, e na época isso era um adulto completamente formado. Mas ele parecia gostar muito da faceta de garoto de quinze anos.

Fechei a porta e me recostei na parede ao lado, olhando para ele, esperando para ver se ele se dignava a olhar para mim, pelo menos. Como isso não aconteceu, tive que falar para as costas dele.

-Se tem alguma coisa te incomodando, você pode simplesmente falar, e não gritar para provar seu argumento.

-Eu sempre nutro a esperança de que, se eu falar mais alto, você ouça um pouco. – Ele respondeu, amargamente.

-Tudo bem, estou aqui para te ouvir. Fale.

Ele ficou em silêncio, e quando eu já achava que era tudo que eu ganharia no momento, ele respirou e começou, ainda sem me encarar.

-Por muitos anos eu tomava tudo que você falava como verdade absoluta. Principalmente quando eu era um recém-criado. Tudo parecia tão correto, suas decisões se encaixavam perfeitamente em uma realidade palpável que eu compreendia. Eu me sentia seguro, sabia que aquilo ia nos deixar fortes e iríamos sobreviver. Por mais que você parecesse distante de nós a maioria do tempo, eu sabia que, no final, ia nos tirar das furadas. Eu podia discordar, mas no final das contas eu entendia como a coisa funcionava realmente. Eu entendia sua mente. Mas ultimamente eu tenho esperado as coisas mais absurdas, e o pior, elas surgem. – Ele se virou para mim, encostando o corpo no parapeito da janela. Sua expressão era de uma espécie de angústia estranha, eu não sabia explicar. – Primeiro foram os lobos. Eles tentaram nos matar, te atacaram e por pouco não foram bem sucedidos. Mas aí você explicou porque não os queria mortos e, apesar de eu não concordar, engoli. Mas até aí tudo bem, você criou um acordo com eles e ficou tudo certo. Agora, fica cinco dias viajando de carro em busca de um vampiro maluco, sozinha, sem nos explicar nada, e quando volta aparece com uma criança no colo que não é de espécie nenhuma. Isso depois de lutar contra dois vampiros que estavam atrás dela. Isso somando ao vampiro maluco de antes. Está percebendo as falhas disso? Podemos ser atacados por qualquer coisa, a qualquer momento! – Terminou, fechando os punhos.

Eu fiquei em silêncio, o encarando. Ele estava sendo um pouco radical, mas eu queria saber mais sobre o que ele achava.

-O que você faria se fosse eu, Matt? – Perguntei calmamente, como se falasse sobre o tempo. A pergunta pareceu pegá-lo de surpresa, porque ele demorou um pouco para começar a responder.

-Bem, a respeito dos lobos, eu não sei se firmaria um tratado. Eles não são melhores que a gente, não merecem nossa proteção e nem sequer gostam da gente.

-Você não ouviu esse detalhe, mas eu acabei de ter a vida salva por um deles. – Ele congelou, não esperava por essa também. Decidi continuar. – Se ela não tivesse aparecido lá, eu teria morrido nas mãos dos vampiros.

-Nada disso seria necessário se não trouxesse a garota. – Me pareceu ser o último trunfo dele a respeito dos lobos, pelo menos por enquanto. Eu tinha certeza de que quando ele tivesse tempo para pensar, teria mais meia dúzia de argumentos.

-E você deixaria uma criança inocente morrer nas mãos de dois psicopatas?

-Você não parecia se preocupar com isso quando liquidou com aquelas crianças vampiras há uns duzentos anos atrás, parecia?

Agora eu fui pega de surpresa. Duzentos anos antes houve uma infestação de crianças que foram transformadas em vampiros. Imagine todo o nosso poder de destruição dentro de um ser que não tinha consciência para se controlar. As crianças vampiras não podiam evoluir mentalmente como nós, adultos. Em uma crise de raiva, ela poderia destruir uma cidade inteira, e nosso segredo estaria liquidado. Eu dei a ordem para acabar com uma por uma, e, por mais que hoje me doa lembrar, na época eu não senti uma gota de pena. Na época eu ainda sofria com algumas perdas. Nós podemos nos desligar dos nossos sentimentos quando queremos, o que torna muito mais fácil existir. Porém, a volta foi dolorosa.

-Isso não é o ponto aqui. São dois casos diferentes. Ela não é uma vampira. Ela cresce, e aprende. Isso não aconteceria com aquelas crianças.

-Estou dizendo que você não entende... – Disse, se virando novamente.

Suspirei e me aproximei, parando ao seu lado. Ele não me encarou, mas eu o olhava diretamente.

-Matt, por favor, confie em mim. Alguma vez eu os levei para a morte? – Falei suavemente, tentando tirar o ar de discussão.

-Não, mas...

-Alguma vez eu abandonei o meu dever de protegê-los?

-Não.

-Então, meu filho, me deixa agir como eu acho que deve. Confia em mim.

Ele suspirou baixo, sua expressão se suavizando aos poucos. Até que ele se virou para mim, o ombro mais relaxado.

-Espero que saiba o que está fazendo, porque eu não faço a menor idéia. – Ele disse, ainda muito sério. Eu sorri para ele, mas sabia que no fundo ele não estava convencido, só conformado.

-Obrigada. – Disse, agradecida de verdade por ter acabado com a discussão. Ele simplesmente deu de ombros.

Deixei-o no quarto e, do corredor, ouvi o violão novamente. As cordas soaram mais suaves e calmas, o som realmente agradável agora. Desci as escadas e só Anne estava de frente para a TV, Gabi estava em algum lugar longe, deve ter saído, assim como Kronus. Talvez caçar, já era de tarde e algumas horas o sol iria se pôr. Eu precisava fazer isso também, depois da luta mais cedo minha garganta começava a arder.

-Anne, posso usar seu banheiro?

-Sim, claro. – Respondeu, distraída.

-Existe alguma razão plausível para você estar assistindo um programa culinário?

-Não sei, eu acho legal. – Disse, dando de ombros. – Eu devia querer ser cozinheira quando humana.

-Você seria de qualquer jeito, quando você era humana todas as mulheres tinham que cozinhar. – Eu disse, dando uma risada.

-É, eu me esqueço disso às vezes. – Ela disse, sorrindo, mas concentrada no programa ainda. Subi, passei pelo meu quarto silenciosamente para pegar uma muda de roupa e fui tomar um banho. As roupas estavam um pouco acabadas da luta, seria melhor descartá-las. Eu nunca voltava a usar uma roupa que usei em batalhas, era um costume estranho e antigo.

Andei até a suíte de Anne, usar a minha poderia acordar Roberta. Tirei a roupa, liguei o chuveiro de deixei a água cair em mim, ficando um tempo assim, enquanto os resquícios de luta saíam de mim. A água estava na temperatura ambiente, o que, para mim, já era quente. A sensação da água era agradável e, quando terminei, me senti revigorada e, dentro do possível, descansada. Me vesti, ajeitei o cabelo, eliminei a outra roupa jogando-a no lixo e me preparei para ir à cidade. Tinha que passar na discoteca – palavra velha, mas eu não gostava de casa de festas ou danceteria. Eu ia falar discoteca mesmo, pronto e acabou. – para ver como andava a obra. Mas antes, eu tinha que falar com Beta.

Abri a porta do meu quarto, fechando silenciosamente, e me sentei na beirada da cama. Não era muito agradável a idéia de acordá-la para dar uma notícia tão infeliz, mas eu já deveria ter dito isso. A balancei gentilmente, para que acordasse.

-Roberta, acorda... – sussurrei.

Ela abriu os olhos e se espreguiçou, enquanto fixava os olhos azuis em mim. Era impressão minha ou ela tinha crescido uns milímetros desde que eu a vira pela última vez?

-Já é amanhã? – Perguntou, a voz rouca e lenta pelo sono.

-Não, ainda estamos no mesmo dia. – Disse, tentando parecer mais simpática o possível. – Precisamos conversar. É sobre o seu pai.

-Papai está vindo? – Ela perguntou, o rosto se iluminando. Por dentro eu quase me parti.

-Não, não está. Seu pai não vai vir, Beta.

-Ele tá viajando?

-Bem... de certa forma sim, está viajando. Mas ele fez uma viagem sem volta. Ele está... em um lugar melhor, e não pode voltar.

-Por que não? – Ela me perguntou, os olhos começando a se encher de água.

-Porque... porque ele está em um lugar bonito e tranqüilo, e não vão deixar ele voltar lá. – Bonito e tranquilo? Eu não acreditava nisso, mas tudo bem. – Mas ele mandou dizer que te ama e que vai sentir sua falta.

Ela abraçou os joelhos e ficou quieta, fitando o nada. Eu via a tristeza nos seus olhos, mas ela não chegou a chorar. Achei sua reação madura demais. Quantos anos ela tinha, dois? Então eu lembrei da carta, ela tinha um apenas. Ela me assustava. Sério.

-Eu vou sair agora, ver umas coisas na cidade, quer ir comigo? – Perguntei, me dando conta de que não ia me sentir confortável deixando ela em casa.

Ela acenou um sim com a cabeça e se levantou, descendo da cama com uma facilidade impressionante.

-Vou só trocar de roupa. – Disse. Ela falava muito bem também, provavelmente o pai a obrigava a falar para treinar. Era a única explicação.

Ela foi até a mochila das Princesas e tirou a muda de roupa que estava lá. Ela estava vestida com uma blusa que eu achava que era da Hecate, que ficava enorme nela. Se trocou rápido e logo estava vestida.

-Vamos? – Perguntei, sorridente, tentando tirar o clima estranho.

Ela acenou novamente com a cabeça, o rosto um pouco melhor. Ninguém estava em lugar nenhum no caminho para a garagem, mas ouvi o som deles nos arredores e nos andares superiores, principalmente na biblioteca. Deviam estar tentando descobrir quem era o melhor em xadrez de novo. Hecate devia estar deixando eles ganharem de vez em quando, como sempre. Só eu conseguia ganhar com ela se esforçando realmente. Jogávamos há mais anos.

A viagem foi silenciosa na maioria do tempo, com ela olhando pela janela, menos quando ela fez uma pergunta na metade do caminho.

-Eu vou ficar com você agora? – Perguntou, distraída.

-Acho que sim, se você quiser, é claro. – Tentei agir como se fosse uma democracia.

Ela ficou mais um tempo quieta, até que respondeu.

-Acho que quero.

Eu só sorri e continuei em silêncio. Estacionei em frente à loja, e desci do carro. O lugar já parecia outro, mesmo do lado de fora. Abri a porta para Beta, que saiu o olhou para a rua, curiosa. Me perguntei quando teria sido a última vez que ela tinha estado tranqüilamente na rua assim. Percebi que ela olhava para o outro lado da rua, e acenou um “tchauzinho”, sorrindo. Olhei para o outro lado e vi Clearwater parada na janela, fazendo o mesmo para ela. Uma loba dando tchau para uma criança que é metade vampira, metade humana que está acompanhada de outra vampira. Muito habitual.

Logo após ela olhou pra mim, o sorriso sendo substituído por uma expressão comum, quase que de paisagem. Ela acenou com a cabeça, e eu respondi.

-Vamos entrar, ok? – Falei para Beta, que me seguiu para dentro com seus passos um pouco desajeitados.

O progresso da obra era algo impressionante. O mestre de obras veio falar comigo e me mostrava as alterações já prontas. Segundo ele, em três semanas no máximo eles entregariam a reforma pronta e perfeita. Fiquei feliz com a notícia. Eu gostava de trabalhar, mesmo, e mal podia esperar para começar de novo. Ainda mais com algo tão diferente do habitual – loja de carros importados, imobiliária, joalheria em shopping, entre outros – como uma discoteca. Em dez minutos eu estava saindo satisfeitíssima do lugar, e voltávamos para casa.

-Gostei daqui. – Falou Beta, do nada.

-Eu também gosto daqui.

-Tinha umas lojas legais.

-Do que você gostou? – Perguntei, imaginando que teria que comprar algo pra ela em breve. Ela não tinha nada.

-Roupas. – Bem lembrado, ela só tinha aquela muda de roupa mais ou menos.

-Amanhã a gente pode vir aqui e comprar o que você quiser. Hoje não porque daqui a pouco as lojas fecham.

-Gostei. – Ela disse, sorrindo. Devia ser bom ter inocência o suficiente para sofrer uma perda e uma hora depois ficar alegre de novo.

Já escurecia quando chegamos novamente em casa. Entramos, Anne assistia televisão enquanto Matt lia um livro, logo do lado. Ele levantou o olhar para nós, mas não disse nada, voltando sua concentração para o livro. Beta parou do lado do sofá, se sentando no carpete, olhando para a televisão. Vi Anne sorrindo para ela, sem que ela visse, e deixei para lá. Meu olhar já tinha encontrado o piano do outro lado.

-Eu não vou atrapalhar se tocar um pouco, vou?

-Não, não, cai dentro. – Disse Anne, sem desviar os olhos da televisão.

Fui para perto do piano, me sentando, abrindo a parte das teclas e tirando o pano de seda de cima. Encostei nas teclas e as analisei um tempo, para só depois começar a toca-las. Deixei que a música fluísse, tão suave e harmoniosa quanto eu podia. Deixei que, conforme ela fluísse, todas as emoções que ela causava fluíssem igualmente. Eu havia fechado os olhos automaticamente. Percebi alguém se aproximando, mas não sabia dizer quem. O mundo ao redor estava isolado. Eu só me prendia ao que aquelas músicas traziam, lembranças de um tempo distante, liberdade, humanidade e, o pior, Andreas.

As últimas notas soaram e eu abri os olhos. Hecate estava sentada do lado do piano, olhando na minha direção mas sem realmente me ver. Eternità causava essa reação em nós duas. Eu me esquecia que ela também havia tido suas perdas junto comigo.

-Faz tempo que você não toca essa. – Ela disse, distante.

-Eu nunca consegui tocar como ele. Não importa o que eu faça.

-É diferente. A música é a mesma, mas você toca diferente.

-Ele era melhor do que eu.

-Não, não é isso. O seu tem um tom de melancolia. Acho que cada pessoa dá um ar diferente ao instrumento.

Olhei ao redor, Matt e Anne tinham sumido. Eles tinham o costume de sumir quando eu e Hecate começávamos a falar de coisas passadas. Não os culpava, eu também fugiria.

-O que está te preocupando? – Ela perguntou, agora realmente focada em mim.

-Não é nada. Só a mesma preocupação de sempre. – Ficamos em um silêncio confortável por um tempo. – Ele saberia o que fazer. Ele sempre sabia. – Eu disse, encarando as teclas do piano.

-Duvido muito que soubesse. Nós sempre temos a impressão que o líder sabe o que está fazendo, eu tinha certeza que ele tinha tantas dúvidas quanto você.

-Ele não era meu líder. Não oficialmente.

-Mas você segua as ordens dele.

-Porque eu confiava nele. Não porque eu sentia uma absurda vontade de acreditar no que ele falou. Eu só senti isso com Hugh.

-Ele era bom em esconder os medos. E sabia o que ia acontecer. Literalmente.

-Eu só não sei como ele acabou... – Cortei a frase, decidida a não falar daquilo. – Chega de falar do Andreas, não estou precisando de mais uma coisa na cabeça.

Ela concordou com a cabeça e se levantou, pronta para sair.

-A propósito, eu gostei da sua atitude com a menina. Ignora o Matt. Ele precisa passar por mais algumas experiências.

Sorri para ela, agradecida por alguém apoiar alguma idéia minha de verdade. Ela saiu e eu fiquei sozinha na sala clara e fria. Sem ter muito mais o que fazer, voltei ao piano.


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