Mar de Lembranças escrita por Misuzu


Capítulo 8
Fama


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura. =3



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                Quando cheguei ao salão ainda faltava algum tempo para a casa abrir. Vendo que havia algumas garotas arrumando as mesas, retirando as cadeiras de cima delas, resolvi ajudá-las. Mas assim que comecei a mexer em uma mesa, fui expulsa do salão por Luce e Laureen. Não que Luce, com seu jeito gentil e feições doces pudesse enfrentar minha teimosia, mas Laureen olhou para mim com sua típica expressão séria e fria, e logo despejou sobre mim toda sua gentileza usual.

                – Por mim você pode fazer o que quiser, mas caso a ferida em seu braço abra, só nos dará mais trabalho, tendo de limpar seu sangue no salão.

                Luce parecia horrorizada com o que Laureen havia falado. Ela me impedira por estar preocupada comigo, já Laureen, me impedira por ser o mais sensato. Evitar que algo aconteça com meu braço, fazendo com que, mais uma vez, eu sinta dor. E também, evitar que eu cause transtornos e mais trabalho. Puramente lógico. Até de mais.

– Laureen está apenas demonstrando o quanto me ama. – dei uma piscadela em direção a Laureen – Ela não quer ver-me sentindo dor, certo, Laureen?

                – Caso seu braço sangre, não será você a limpar. E de vermelho nesse salão, basta seu cabelo.

                – Assim você me magoa. – Esbocei de forma caricata uma expressão de ultraje. – Mas você está certa. Vou para meu balcão fazer meu trabalho e deixar que façam o seu.

                É claro que me magoou um pouco. Apesar de ter brincado com o que Laureen falou, suas palavras fizeram com que eu entendesse o quanto estou sendo um fardo a todos. Causando problemas e brigas na frente dos clientes, prejudicando Madame Agatha. Embora a culpa em grande parte seja da obsessão que Bonnie sente pelo Sr. Marshall, também tenho minha parcela de culpa. Seria mais simples se eu apenas me afastasse dele. De qualquer forma, nos conhecemos há apenas alguns dias. Mas eu não quero isso.

                Não quero ver Bonnie demonstrando sua superioridade, daquela que, diferentemente de mim, não fugiu. Sim, orgulho. Diferente de Bonnie, não sou uma prostituta, não deveria intrometer-me em suas brigas e disputas por quem acreditam ser um bom partido. Uma possível fonte de informações, dinheiro e luxo. Mas por que, então, não consigo deixar o caminho livre para ela? Mesmo sabendo que isso só me causará aflição, tormenta, dor e sangramentos.

                A promessa que ele fez na noite em que nos conhecemos prendeu-me a ele. Um nobre, até então completamente estranho para mim, dizendo que faria o possível para descobrir quem eu fui antes de ser Millenia. Seria bom ter a ajuda de alguém da marinha. Ainda mais alguém com um alto posto. Quem sabe ele tem acesso às informações de desaparecidos e navios atacados na época em que fui encontrada.

                Pena que há uma falha nisso. Mesmo que ele chegue a possibilidades de quem posso ser, nada me garante que isso fará com que eu lembre quem eu era. Mesmo que ele chegue a mais provável das possibilidades, há a chance de eu nunca lembrar-me de absolutamente nada. Pode ser que eu passe o resto de minha vida como Millenia, a mulher que nasceu aos vinte e tantos anos de idade.

                E então todo o esforço teria sido em vão.

                – Quer uma ajuda, Millie?

                Ellora estava debruçada sobre o balcão, com o queixo apoiado nas mãos. Seus cabelos estavam soltos, caindo em suaves ondas em torno de seu corpo. Havia trocado de vestido, substituindo o discreto e simples vestido que usara para colher ervas por um deslumbrante vestido verde esmeralda, acompanhado por um espartilho branco. Ela observava enquanto eu guardava as bebidas no balcão sem estar realmente prestando atenção no que fazia.

                Ela estava com um sorriso gentil nos lábios, uma expressão terna tomava sua face. Tal expressão me faz refletir sobre qual seria a verdadeira natureza de Elora.

                – E então?

                – Não precisa. Já estou terminando. E também, não há muito espaço aqui.

                  Sorri de volta para ela. Todos nós possuímos partes de nossa personalidade que acabam se ocultando conforme as situações. Os atuais acontecimentos estão fazendo com que Elora revele como realmente é. Apenas isso.

                – Como foi a tarde com o Sr. Marshall?

                Meu sorriso se desfez no mesmo instante. A atitude dele me magoara naquela tarde. O problema para ele era a cicatriz que ficaria ali depois. A aparência. O corpo de uma mulher manchado pela violência e pela dor.

                Não odeio minhas cicatrizes. Graças a elas não preciso vender meu corpo a velhos imundos para sobreviver. O que eu realmente odeio é não saber nada sobre elas. Não lembrar-me da dor de quando ainda estavam abertas, ainda sangrando, de como as adquiri ou como as tratei.

                – Pela sua expressão, não fora muito boa. Ele magoou você?

                – Não – soltei um longo suspiro – eu faço isso muito bem sozinha.

                – Explique.

                – Pensei que ele fosse diferente, quando na verdade é só mais um nobre mimado.

                – Conhecendo você, aposto uma dose de uísque que o que causou sua momentânea repulsa a ele está relacionado à sua falta de memória.

Contei para ela o que aconteceu no caminho de volta. Ela então passa para trás do balcão, apesar de minhas advertências sobre a falta de espaço e a possibilidade de sujar seu lindo vestido. Poucos instantes depois, seus braços envolvem meu corpo em um abraço agradável e reconfortante.

– Millenia, receio em dizer que talvez você tenha sido dura de mais. Ele não parece ter feito de propósito. – ela então se afasta um pouco, a fim de poder olhar em meus olhos – você é que deu importância de mais para isso. Tenho certeza de que ele só ficou preocupado com como você se sentiria a respeito da cicatriz, por ser uma mulher. Ele é um homem do mar, certamente tem as dele e não quer o mesmo a você. Pense nisso e seja mais gentil com ele essa noite. – Ela então se afastou e começou a subir as escadas, pude ouvir sua voz ecoar já dos últimos degraus – Mais tarde quero meu uísque!

Talvez ela tenha razão. Minhas cicatrizes são um mistério para mim e, portanto, um trauma. Mas ele não sabe disso, estava apenas preocupado. Elora está certa, culpei o Sr. Marshall por algo que ele não fez por mal.

Continuei a organizar o balcão, tentando não pensar mais no mal-entendido que havia ocorrido mais cedo. Aos poucos os clientes começaram a chegar. Havia algumas mesas próximas ao balcão que estavam repletas de marinheiros. Não consegui recordar-me deles, certamente não vieram aqui antes disso. Pelo que consegui captar de suas conversas animadas, haviam recém chegado a Voltrina, vindos de outra região do país.

Saí de trás de meu balcão com uma bandeja repleta de bebidas para levar a uma das mesas. A bandeja estava realmente pesada, tornando-se bastante difícil carregá-la apenas com a mão esquerda.

Eu estava perto do meu destino quando um senti um braço ao redor de meus ombros. Assustei-me e por pouco não derrubei a bandeja na mesa que estava à minha frente. Voltei meus olhos para sua direção, esperando ver um dos habituais clientes de quem costumo me esquivar. Mas ele não me era familiar. Provavelmente um dos forasteiros.

– Solte-me.

Falei com a voz firme, tentando afastá-lo de mim a mão que estava livre. Mas ele parecia nem sentir que eu tentava empurrá-lo com toda força que eu conseguia fazer com o braço fraco. Ao contrário, aproximou seu rosto do meu.

– Vamos docinho, vamos nos divertir lá em cima.

Torci o nariz. Ele fedia a rum e podridão.

– Meu senhor, receio não poder servi-lo. Procure a madame e ela lhe apresentará uma dama mais apropriada.

Tentei ser educada, apesar da vontade de atirar a bandeja nele. Mas ele realmente não estava disposto a cooperar, apertou mais ainda seu braço em torno de meus ombros, tanto que chegou a doer.

– Deixe disso, vamos meu docinho.

Poucos instantes depois de ele terminar de falar, o aperto em meus ombros sumiu, deixando-me certamente aliviada. Ele então afastou-se de mim. Não, o correto é que ele fora afastado de mim.

– Não ouviu o que ela disse?

 Era o Sr. Marshall, ele parecia bastante irritado, apertava o braço do homem com força, enquanto o marinheiro tentava a todo custo afastar-se. Percebendo que não ele não ia soltar o homem então tentou outra tática. Tentou então acertar o punho fechado no rosto do Sr. Marshall, o que deixou-me apreensiva. Mas fora em vão. Antes que ele atingisse o Sr. Marshall, dois homens o impediram, afastando-o dele enquanto o forasteiro se debatia fortemente.

– Você está louco? – um dos homens começou a gritar com o forasteiro – pretendia bater no Comodoro Marshall?

 – Comodoro Allan Marshall... – seus olhos quase saltaram das órbitas, tamanho o espanto que ele demonstrou – Aquele que matou Skallen III?

– Este mesmo. – o forasteiro pareceu ainda mais espantado quando as palavras saíram da boca do próprio Comodoro, que após confirmar a informação voltou sua atenção aos dois homens que continham o soldado forasteiro – Mantenham-no longe desta senhorita.

Ele então deu as costas aos homens, sem esperar uma resposta e veio em minha direção. Seu rosto então se iluminou e eu vi aparecer em seus lábios o sorriso a que eu me acostumara.

– Está tudo bem agora. Deixe-me carregar esta bandeja, parece pesada.

– Não precisa, estou acostumada. É o meu trabalho. Pode sentar-se, levo esta bandeja aos clientes e então o sirvo uma bebida como cortesia.

Sorri e virei-me, seguindo para a mesa que eu pretendia servir. Percebi que Madame Agatha me observava do outro lado do salão, provavelmente apreensiva com a possível briga. Então acenou com a cabeça na direção em que o Sr. Marshall estava. Sorri e assenti, ela então sorriu também e voltou a tratar de seus negócios com os clientes.

 Enquanto caminhava de volta ao balcão, reparei que Elora estava no alto na escadaria, olhando em minha direção. Sorri para ela, mostrando que estava tudo bem. Nenhuma nova ferida, nenhuma dor. Mas não pareceu suficiente, ela começou a descer as escadas e chegou ao balcão junto a mim.

Aproveitei o momento para pagar sua aposta anterior, pegando uma garrafa de um uísque que estava na prateleira do balcão. Não era o mais caro, mas o mais saboroso. Peguei dois copos e os servi, entregando um à Elora e o outro ao Sr Marshall.

Ela pegou seu copo e estava prestes a beber, mas então viu um cliente entrar pela porta. Era de Keefe Hensley, o filho mais novo de um Conde, um dos poucos clientes da casa que não é da marinha. De pele clara e cabelos negros, algo em seus olhos azuis parece encantar um pouco Elora. Apesar de ela afirmar veementemente que não sente nada por ele, eu sei que é pura mentira. Prova disso for o esplêndido sorriso que tomou conta de seus lábios ao ver de quem se tratava. No mesmo instante, deixou de lado o copo de uísque intocado sobre o balcão, partindo em direção à entrada para saudar o Sr Hensley. Quando já não estava mais no campo de visão do Sr Marshall, que estava sentado de costas para ela, ela aproveita para virar-se para mim e destinar um olhar significativo ao nobre homem sentado à minha frente. Revirei os olhos e a ignorei, voltando, enfim, minha atenção a ele.

– Desculpe-me por tê-lo feito esperar.

– Não foi problema algum. É divertido observá-las. – Tentei não pensar no significado disso, pelo menos não agora.

Cansada de ficar de pé, tratei de puxar meu banco e sentar-me debruçada sobre o balcão, bebericando o uísque abandonado por Elora.

– Então, Comodoro Marshall, poderia entreter essa pobre moça contando-lhe uma de suas histórias?

– São muitas.

– Que tal sobre como você tornou-se tão famoso a ponto de até mesmo soldados das localidades mais distantes conhecerem seu nome?

Ele sorriu e levou o copo aos lábios, bebendo o líquido de uma só vez.

– Então eu espero que você tenha tempo, pois essa é uma longa história.





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Notas finais do capítulo

Keefe - Nobre. Esse foi escolhido pela Kyo sem saber o significado, então não foi proposital, juro. xD



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