Mar de Lembranças escrita por Misuzu


Capítulo 2
Ajudada




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                Ele me olhava de uma forma estranha, seus lábios contorcidos em um sorriso demonstravam malícia, enquanto algo em seus olhos parecia revelar certa curiosidade. Lentamente ele foi aproximando seu rosto do meu, olhando-me nos olhos. Temendo o que estava por vir, fechei meus olhos com força e aguardei. Mas o esperado beijo não veio. Abri meus olhos a tempo de ver o Senhor Marshall tentando sem muito sucesso segurar uma risada.

            – Não se preocupe senhorita Millenia, – Dizia ele tentando conter o riso – não dormirei com a senhorita, sei que seu trabalho não é este. Queria apenas ver sua reação, que foi bastante engraçada.

            Eu devo ter corado quando ele disse isso, porque a minha vontade era sair correndo. Eu só não sabia ao certo se era pelo fato de ele ter zombado de mim, ou pelo fato de ele ter me rejeitado. Talvez eu tivesse ficado frustrada com isso, era raro algum homem não querer me trazer para algum quarto.

            – Mas então senhorita, qual a sua idade? - Ele deixou formar-se em seus lábios um sorriso gentil, não mais zombeteiro, mas não foi o suficiente pra aliviar minha frustração.

            – Você não sabe que não é nada gentil perguntar a idade de uma dama, senhor Marshall? – Eu disse com certa rispidez, mas quando lembrei de que ele devia ser importante por aqui, completei com uma voz mais amena – Mas eu não sou como as outras damas.  Devo ter entre vinte e um e vinte e quatro anos, não sei ao certo.

            – Como assim você não sabe?

Sua expressão de surpresa foi um tanto engraçada, mas deixou-me também surpresa, madame Agatha costuma contar a todos sobre mim.

– Pensei que madame Agatha contasse isso a todos, senhor Marshall. – Eu suspirei, prevendo o que estava por vir – Eu não tenho nenhuma memória do que vivi antes de chegar neste bordel.

– Isso deve ser... – ele fez uma pausa, tentando achar a palavra certa, creio eu – triste. Não se lembra de absolutamente nada?

– Não. É como se eu tivesse nascido há um ano. Você não imagina o quão assustador é acordar numa cama em um local desconhecido, com muitas pessoas à sua volta, fazendo perguntas cujas respostas são completamente desconhecidas para você.  – Suspirei. Lembrar-me daquela noite era sempre algo difícil. – Elas falavam ao mesmo tempo e faziam perguntas que eu não sabia responder. Perguntas simples como: “Qual o seu nome?”, “Qual a sua idade?”.

Sua expressão mudou, algo em seu olhar expressava um pouco de pena. Pena. Eu realmente odeio isso. Talvez eu seja orgulhosa, ou ao menos tenha sido antes de perder minha memória. Talvez antes eu tivesse algo para me orgulhar. Mas não restara nada para isso.

– E como você se livrou deles? – Ele deu um sorriso, deve ter percebido minha tensão.

– Eu mesma não estava em condições de fazer muita coisa. Mas Elora me salvou e praticamente expulsou todos do quarto. – Eu sorri – Foi engraçado. Ver aquela pequena mulher que mais parecia uma garotinha frágil pulando e gritando que mataria todas se não saíssem do quarto.

– Certamente, deve ter sido uma cena engraçada. – Ele soltou uma leve risada. Deve ter imaginado a cena. Mas logo ele ficou sério novamente, demonstrando interesse. – Mas e ela, não lhe fez perguntas depois?

– Fez, e muitas. Perguntou se eu fazia ideia do motivo de eu ter sido encontrada na praia com uma ferida no ventre.

– E você sabia?

– Se estou sem memórias, presume-se que eu não saiba. – Revirei os olhos, era algo bastante óbvio. – Ela presumiu que eu tenha sido atacada por piratas e jogada ao mar para morrer, tendo em vista que a ferida era bastante grave.

Ele levou a mão aos cabelos, bagunçando-os. Ele deu um sorriso, deve ter ficado constrangido com meu sarcasmo. Preciso aprender a controla-lo, acho que antes eu não me preocupava muito se as pessoas ficariam constrangidas com o que eu dissesse.

O sorriso constrangido sumiu de sua face e ele parecia pensativo. Ele ficou alguns minutos pensando sozinho e eu não me atrevi a interrompê-lo. Esperei pacientemente enquanto ele ponderava algo, esperando sinceramente que ele mudasse de assunto. Mas minha sorte não era tão grande assim. Ele aprofundou o assunto mais ainda.

– Eles não costumam atacar qualquer navio. Considerando que a senhorita estava ferida tão gravemente, eu presumiria que ou você estava em um navio nobre e acabou sendo ferida durante o ataque e caiu no mar; ou então que a senhorita era realmente nobre, ou tinha conhecimentos sobre a nobreza e seus hábitos, e foi mantida como refém em algum navio, depois sendo descartada no mar.

A ideia da possibilidade de eu ter sido nobre e de ter sido mantida refém por piratas sem escrúpulos causou-me náuseas. Só não sei dizer qual me causou mais repulsa. A possibilidade de eu ter sido uma nobre não me agradou muito. A maior parte das mulheres daqui dariam tudo para ser nobre, o que eu realmente nunca entendi. O que tem de tão especial na nobreza? A maior parte da nobreza é corrupta, importam-se apenas com si mesmos, apenas com o próprio lucro. Não sei se esse sentimento em relação à nobreza é algo que mantive mesmo após perder minhas lembranças, mas aqui eu pude perceber o quão corrupto eles são. Mas o que mais me enoja neles é o fato de utilizarem a marinha como um simples meio de conseguir suas coisas mais facilmente. Cansei de escutar marinheiros queixando-se de terem de tomar o tempo que deveriam utilizar para proteger o povo, realizando os caprichos deles.

Quanto aos piratas, não sei exatamente o que me causa aversão a eles. Pelo menos não há algum motivo para eu odiá-los ou sentir medo deles mais do que todos odeiam e sentem. Apenas o comum para uma pessoa deste país. Na verdade eu até mesmo os invejava um pouco. Invejava sua liberdade. Invejava sua capacidade de viver em alto-mar cercados pelo eterno azul, do céu e do mar.

Escutei o senhor Marshall pigarrear. Balancei a cabeça, afastando os pensamentos que a pouco a infestavam. Sorri para ele constrangida.

– Desculpe senhor Marshall. Disse algo?

– Nada de importante, senhorita Millenia. – Ele sorriu e eu senti que havia perdido algo – A senhorita fica muito bela pensativa, senhorita Millenia.

Devo ter corado, pois senti minha face esquentar. Era raro eu receber algum elogio deste tipo. O tipo que é realmente sincero e não vulgar. Os que eu escutava diariamente eram apenas tentativas frustradas dos clientes de levar-me para a cama.

– Senhor Marshall, o que fez o senhor escolher-me por esta noite, mesmo sabendo que eu não era uma prostituta?

Ele esticou os braços para trás, apoiando-se neles para então reclinar-se um pouco e ficou observando o teto pensativo. Parecia estar escolhendo as palavras certas.

– De fato, hoje eu não estava muito disposto a passar a noite com ninguém, mas fui arrastado para cá por meus subalternos. Pensei em apenas beber algo e passar algum tempo descansando com alguma das damas fazendo-me companhia. – Ele sorriu e olhou para mim. – Mas então eu vi aquela linda dama atrás do balcão, tão bela e séria, concentrada em seu serviço. E tudo em que pude pensar foi: vou ter de passar esta noite com ela, mesmo que seja apenas para conhecê-la.

Fiquei completamente sem reação. Ele trocou a Bonnie por mim? Ele não deve ter uma mente muito sã. Bonnie é simplesmente linda. Pele clara, cabelos longos louros e ondulados, olhos de um lindo tom de azul, a face com traços finos e femininos, as mãos delicadas como as de uma verdadeira dama. Mas não, ele trocara uma noite com ela por uma noite sem graça comigo. Completamente incompreensível. Mas assim como tudo ali, tentei ignorar, afinal ele é apenas mais um cliente rico e, provavelmente, nobre. Olhei para ele e encontrei-o já em pé, vestindo seu casaco.

– Uma ultima pergunta senhorita Millenia. – Ele olhou em meus olhos como se tentasse enxergar cada tom de seu verde – Qual a origem de seu nome? Presumo que este não seja seu nome real.

– E não é. Elora deu-me este nome, disse que combinava comigo.

– Uma pista a menos para eu seguir. – Ele já seguia em direção à porta, deixando-me confusa sentada à cama.

– Como assim, uma pista a menos?

– Farei este favor a você, senhorita. Farei o possível para ajuda-la a descobrir quem você é. E sabendo que este não é seu nome real, as coisas ficam mais difíceis, mas, ao menos, não seguirei uma pista falsa.

Isso realmente me surpreendeu. Um estranho fazendo isso por mim. Algo que eu mesma nunca me empenhei em fazer. Mas em parte era porque eu não tenho muita influência para poder investigar. E também, se fui encontrada na praia, provavelmente jogada de um navio, as chances de eu ter morado nesta cidade ou em alguma das redondezas é realmente pequena. E também porque, apesar do vazio, me sinto feliz aqui. Madame Agatha é como uma tia para mim e as meninas como primas e, em especial, Elora era como uma irmã para mim. Tenho o necessário para viver feliz, mas uma ajuda sempre é bem vinda.

Quando separei meus lábios para agradecer-lhe, surpreendi-me tendo-os tomados pelos dele. Não era um beijo cálido como os que Elora dizia querer ter com o homem de seus sonhos, nem como os que ela dizia que alguns clientes lhe davam. Era apenas um suave e gentil toque de lábios, ele apenas selou os meus, e logo se afastou.

– Considerarei isto como agradecimento suficiente por ora. Até logo senhorita Millenia.

Ele virou-se, com um sorriso nos lábios, o sorriso de uma criança que acabou de fazer uma travessura e sabe que se não escapar rápido será repreendida, e saiu pela porta, deixando-me incrédula, sozinha no quarto.

Ele definitivamente era um homem misterioso e um tanto... Espontâneo. Fiquei ali pensando no que aquele beijo representava, mas logo decidi que não devia significar nada, ele deve fazer isto com todas. Levantei-me e fui assumir meu posto atrás do balcão.

Desci as escadas lentamente, observando o salão. Não estava muito cheio. Olhei para minha esquerda, na direção do balcão que ficava logo ao lado da escada, que tinha a parte de baixo da mesma como prateleira de bebidas. Lucinda, uma garota de cabelos escuros e pele clara que havia chegado aqui há poucas semanas substituía-me no balcão. Percorri meu olhar pelo salão novamente. Madame Agatha estava entre as mesas, conversando com os clientes, como de costume. Não vi Elora, devia estar no quarto. Cheguei ao balcão e sorri para Lucinda, ela parecia nervosa ao lidar com todas aquelas bebidas.

– Pode deixar Luce, eu cuido disso agora.

– Obrigada Millenia. Não sei como você consegue lidar com tudo isso. – A garota realmente parecia nervosa. Coitada, mal chegara ali e já tinha sido mandado ficar no balcão, tendo que lidar com todos aqueles marinheiros bêbados.

– Tudo bem, é o meu trabalho. E eu ausentei-me dele por tempo demais, desculpe Luce.

– Sem problemas, Millenia.

A garota deu um sorriso gentil e virou-se, logo subindo as escadas. Fiquei observando ela subir. Foi então que eu vi aquela loura estonteante descendo as escadas, olhando diretamente para mim. Sua expressão não era muito amável. Isso vai ficar feio. Virei-me calmamente, peguei um copo debaixo do balcão, logo depois peguei uma garrafa de uísque e servi no copo que havia deixado sobre o balcão. Tampei a garrafa e a deixei ali mesmo. Senti que havia alguém atrás de mim e me virei já sabendo de quem se tratava.

– Posso ter um minuto com você, Millenia? – Sua voz doce continha certa rispidez.

– Claro Bonnie.

Entornei o copo de uma só vez.


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Notas finais do capítulo

Como esqueci de colocar o significado do nome do Allan [que eu amo] no capítulo anterior, coloquei neste.
Allan: (Germânico)Alma elevada aos céus.
Obrigada por lerem ;]
E deixem um reviewzinho, vaii, não custa nada =]
Até o próximo capítulo~