Porta 54 escrita por That Crazy Lady
Notas iniciais do capítulo
Daí como só o Trivel conversa com a Catarina nesse capítulo, a língua dele ficou em letra normal.
- Eu não entendi. Por que temos que fugir da patrulha? – Catarina perguntou por fim, depois de ter tateado até encontrar um amontoado de palha e tecido, que provavelmente servia como cama, e sentado nele.
- Você tem um dragão? – Trivel perguntou de algum ponto no escuro.
-... Não.
- Nem eu.
Ela aguardou, mas aparentemente aquela era a explicação.
- Não faz sentido. Por que ter ou não ter um dragão é tão relevante assim? – perguntou.
Trivel ficou um momento em silêncio.
- Todos os nascidos em Kae têm um dragão. Conquista-se o seu aos três anos. Um dragão... Não é um cavalo – ele disse cuidadosamente. – Há uma ligação especial entre nós e o dragão, uma ligação mental, entende? Não se separa os dois. – Sua voz falhou nesse ponto. – Só... Só se essa pessoa nascer com a magia.
Catarina observou de forma cética o ponto que imaginava estar Trivel por um tempo, até se lembrar de que ele não conseguia vê-la.
- Magia?
- É, magia – ele continuou amargurado. – Os feiticeiros foram banidos das cidades há tempos, desde que a mãe do nosso rei Dricon (amaldiçoado seja) foi morta por um. Expulsos, queimados, afogados, presos... A maioria está morta. Apesar disso, crianças com a magia ainda nascem, e algumas têm a sorte de fugir antes de serem encontradas. Outras, nem tanta.
Ele calou-se. Catarina esperou, mas não veio mais nada.
- Qual o seu ponto, Trivel?
- Crianças sem um dragão não são legalmente crianças. Jamais passaram pelo teste de escolha, ou tiveram seu dragão sacrificado. E somente os nascidos de ladrões, exilados ou feiticeiros são assim. Entende? Não ter um dragão é critério para se saber se tal pessoa é um fugitivo ou não.
Catarina tirou um momento para pensar. Nascidos de ladrões, exilados ou feiticeiros? Se o garoto não tinha um dragão, essas eram as três opções para quem-ele-era. Mas voz falha falando sobre magia dava uma boa dica para qual das três era a verdade.
- Trivel, você é um feiticeiro? – ela perguntou enfim.
Um longo momento de silêncio se seguiu. Então, uma chama surgiu na escuridão. Catarina procurou sua fonte e a encontrou ardendo sobre a mão estendida do garoto magricela.
- Sim – ele respondeu em uma voz inexpressiva –, eu sou.
Ela não teve que se preocupar com que emoção demonstrar. A chama se apagou, e Catarina pôde fazer todas as caras que desejasse sem que ele a visse.
- Eu geralmente não saio daqui – Trivel continuou. – É a minha casa desde antes de tia Pek, Cat e Larin irem para o norte. Mas hoje senti uma aura forte de magia lá fora... E encontrei você. Então me responda, e responda sinceramente, Caphirina: O que você é?
Perguntinha complicada.
Ela podia dar várias respostas. Uma garota perdida. Uma louca. Catarina, e não Caphirina. Mas achou que a resposta mais adequada era:
- Eu sou a Alice. – Sem lhe dar tempo para uma reação, ela continuou: – Faz pouco tempo. Mal sabia que todo esse lance de Sala Redonda existia até dois meses atrás. Mas aí sonhei com Alice, digo, a antes de mim, e ela me disse tudo, e então ainda hoje o Coelho foi me chamar depois da aula, e eu peguei as chaves, e eu estou tão cansada, porque já não sei mais o que fazer, e tudo o que eu quero é voltar para casa! – Antes de se dar conta, já tinha despejado tudo.
Na verdade, ela não tinha medo de contar o que tinha passado para Trivel, porque estavam quites. Ela era Alice, ele era um feiticeiro. Ele lhe contara porque sentira magia nela, ela lhe contara porque precisava contar para alguém – e porque precisava de ajuda.
Vê? Quites.
E então Trivel teve a reação que ela menos esperava:
- Eu sabia! – e gargalhou.
- EI, não é motivo para rir! – Catarina exclamou. – Eu não ri quando você disse que era um feiticeiro!
Ele a ignorou e continuou rindo, quase histericamente. A garota pegou a cartola, puxou uma lanterna (com pilhas) de dentro e a acendeu. Podendo ver Trivel, ela caminhou até lá e lhe deu uns tapas.
- HAHAi ai ai ai ai! Por que está me batendo? – ele perguntou observando a lanterna de forma confusa.
- Pare de rir de mim!
- Não estou rindo de você, idiota. Estou rindo porque estou feito!
Catarina parou de estapeá-lo e observou o garoto com olhos irritados.
- Como assim feito?
Trivel ergueu o corpo magro e bateu a poeira das roupas. Agora que o local estava mais iluminado, Catarina podia perceber a pobreza da caverna: o único “móvel” era a cama improvisada. Alguns pertences pessoais estavam arrumados a um canto, ligeiramente empoeirados, metade parecendo datar de décadas atrás. O ar era claustrofóbico e abafado, típico de um lugar que nunca viu sol. E mais nada. Ela quase podia sentir pena dele, imaginando-o vivendo no escuro por meses seguidos até que a comida acabasse.
Quase. Mas estava muito irritada com suas risadas.
- Ah, Caphirina. Você é a Alice! Ninguém mais, ninguém menos. Pode fazer qualquer coisa!
- Bom, não é bem assim – ela argumentou confusa. – Eu só vim aqui porque aparentemente tem algum problema. Vou resolver esse problema, e depois vou embora. Não ficarei para fazer-qualquer-coisa, entende?
O sorriso de Trivel murchou de leve, mas então voltou com força máxima.
- É. Só que você precisa de ajuda, não precisa?
Catarina odiava admitir, mas resmungou um “sim”.
- Eu posso ajudar – ele continuou –, em troca de um pequeno favor.
- Que tipo de favor? – a garota perguntou desconfiada, erguendo uma sobrancelha. – Porque eu não tenho "alguns contos".
- Te ajudo no que precisar até o fim de sua jornada. Mas, depois que acabar, tem que me levar com você para a superfície.
Ela demorou alguns instantes para entender.
- A superfície... Você diz de onde eu venho?
- Sim.
- Mas por que você quer ir para lá?
- Motivos não estão no trato. Aceita ou não?
Catarina ponderou por um segundo. Mas não faria mal levar o garoto, afinal. Ela precisava de ajuda, e convenhamos, ele era um feiticeiro. Podia dar problemas com ilegalidades, mas ela não era a Miss Lei de qualquer forma.
- Certo. Temos um trato – Catarina disse estendendo a mão. Trivel sorriu e fez um aperto-de-cotovelos que deixou a garota com as sobrancelhas erguidas.
“Então, guia. Aonde vamos primeiro? – ela continuou enquanto ele corria até o canto com pertences pessoais e jogava tudo em um pedaço de tecido para usar de trouxa.
- Para o norte, encontrar tia Pek, Cat e Larin. Elas vão saber o que fazer.
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