Porta 54 escrita por That Crazy Lady
Era uma sala enorme redonda, cheia de portas na única parede que a circulava. No meio, uma senhora cujos cabelos algum dia haviam sido negros brincava distraidamente com uma xícara vazia, sentada em frente a uma mesa servida para o chá. Ela parecia sinceramente entediada até o momento em que uma adolescente atravessou o teto e caiu de cara no chão.
- É difícil se acostumar com a gravidade daqui, não é? – ela disse alegremente, espichando o pescoço para enxergar a adolescente. A garota estava na faixa dos 13 anos e tinha cabelos ligeiramente anelados e compridos, em uma cor bonita de negro total, que no momento caíam desarmonizados por causa da queda. Ela ergueu o corpo um pouco e espiou a senhora enquanto colocava algumas mechas rebeldes para trás da orelha.
- Q-Quê? – Parecia confusa. Olhou para cima, observando além do teto atravessado, e pensou ter visto algumas formas se mexendo em meio à escuridão.
- Sente-se, Alice. Eu estava justamente te esperando para tomarmos chá – a senhora convidou, apontando para uma das cadeiras vazias.
- Meu nome não é Alice. E eu não gosto de chá.
Ela levantou-se cambaleando. Tinha os olhos negros como os cabelos, a pele queimada de sol e vestia um pijama de frio. Olhou em volta.
- Onde estou?
- Use a cabeça, Alice – a senhora respondeu simplesmente, servindo chá em duas xícaras.
- Me chamo Catarina – a garota retrucou irritada.
- Como a Megera Domada?
A jovem deu um meio sorriso superior.
- Não fui domada.
- Ainda – a senhora cantarolou. Catarina abriu a boca para responder, mas não foi rápida o bastante. – Eu sou Alice. Sente-se, querida.
A garota permaneceu em pé.
- Se você é Alice, por que insiste em me chamar de Alice?
- Porque você também é Alice. Sente-se.
- Achei que tivesse deixado bem claro que meu nome é...
- Achei que tivesse deixado bem claro – Alice interrompeu com um quê de irritação na voz – que você deve sentar-se.
Catarina comprimiu os lábios e lançou um olhar fuzilante para Alice, mas sentou-se. A senhora lhe entregou uma xícara com chá.
- Açúcar, creme?
- Não gosto de chá – repetiu.
- Mas como você é reclamona – Alice repreendeu. – Não lhe ensinaram que é falta de educação recusar comida de um anfitrião?
- Ah, então você é uma anfitriã – provocou Catarina. – Isso significa que estamos na sua casa?
A senhora desviou o olhar.
- A sala redonda tem sido minha casa há muito tempo. – Ela pareceu pensativa por um segundo, até voltar a focalizar o olhar na garota. – Mas agora você chegou, e isso vai mudar. Pão?
Alice estendeu uma cesta vazia de vime. Catarina franziu a testa e recusou.
- Por que o fato de eu cair aqui muda alguma coisa?
- Você é a nova Alice. Quando estiver pronta para assumir, não precisarão mais de mim. – Alice tomou um gole de seu chá e estendeu a mão para a cesta vazia. Voltou segurando uma broa vinda de sabe-se lá onde. – E eu poderei me aposentar.
- Não sou Alice nenhuma – disse Catarina secamente. – Mas imagino que o fato de aposentar-se seja bom.
- Ah, não – Alice disse tristemente. – É um merecido descanso, mas gosto muito mais daqui.
- Então não se aposente, oras.
A senhora mordiscou a broa, parecendo ligeiramente chateada.
- Infelizmente eu não tenho essa escolha, querida Alice.
- Meu nome é Catarina, caramba!
- Olhe a boca! – Alice exclamou horrorizada.
- Ah, nem vem. Caramba não é palavrão!
- É sim, e você falou de novo! Se falar uma terceira vez, vou lavar sua boca com sabão!
Como era provável que Alice realmente o fizesse, Catarina calou-se e esperou a senhora, que repetia coisas como “Você é a Alice mais mal educada, teimosa e resmungona que já conheci!”, se acalmar.
Por fim, Alice perguntou:
- Você conhece a história, não conhece?
- Qual? – Catarina perguntou de volta.
- A de Alice.
- Alice no País das Maravilhas? É, eu vi a animação da Disney – a garota comentou, arqueando as sobrancelhas. – Por quê?
Alice mexeu seu chá com uma colherinha.
- Antes de Alice encontrar a porta que a levou ao País das Maravilhas, ela testou várias outras portas, todas trancadas. – Ela tomou um gole. – Já se perguntou o que havia nelas?
Catarina permaneceu calada por alguns segundos.
-... Bom, agora que você comentou...
- Olhe em volta.
A garota obedeceu. Havia várias portas; algumas menores, outras maiores, com maçaneta, sem maçaneta, quadradas, retangulares, circulares, de madeira, de metal, novas, velhas, conservadas, enferrujadas... E, é claro, a menor de todas, bem no canto. Se é que há cantos em uma sala circular.
-... Ah meu Deus. É aqui, não é? Bem aqui? – Catarina soltou por fim.
Alice concordou com a cabeça.
- A menor é a que leva ao País das Maravilhas, também conhecido como 01. Vê o número pendurado na porta? Cada uma tem o seu número. Facilita a localização. Todas estão trancadas, mas se precisar pode achar sua chave no molho.
- Que molho? – Catarina perguntou ao parar de olhar para todos os lados.
- Esse. – Alice ergueu uma argola enorme em que estavam penduradas pelo menos 200 chaves, cada uma de um tamanho. – É claro que nem todas as portas têm uma chave e nem todas as chaves têm uma porta – comentou.
Catarina cruzou os braços.
- Uma chave sem porta? Para quê serve? – perguntou com desdém.
- Use a cabeça, Alice. Acha que é tão fácil assim? Não é simples encontrar um parceiro que se encaixe perfeitamente, sabe.
- Meu. Nome. Não. É. Alice. E além do mais, portas e chaves não são feitas individualmente, são criadas para ser um par.
Alice suspirou como se a garota tivesse falado alguma coisa extremamente errada que não valesse a pena ser corrigida. Então estendeu o molho para Catarina.
- Pegue. Como nova Alice, é sua responsabilidade guardar e proteger as chaves de todos os mal-intencionados que queiram entrar em qualquer um dos mundos da sala. Deve manter o molho sempre próximo de você, e cuidar dele como se sua vida dependesse disso.
- E depende – uma voz sonhadora disse do nada. Catarina olhou para os lados, mas não viu mais ninguém.
- Ah, Chess, já ia me esquecendo de você. Venha se apresentar para a garota nova! Onde está a sua educação?
Então, como respondendo ao comando de Alice, um pequeno vapor acinzentado surgiu na beira da mesa. Começou a ficar maior e tomar forma enquanto Catarina observava, até mostrar ser um grande e gordo gato sorridente.
- Esse é o Chess, Alice – a senhora apresentou.
- Chess? Tipo Cheshire, o gato sorridente? – Catarina estava tão surpresa que nem lembrou de corrigir seu nome.
- Eu mesmo. – O gato sorriu. Seu pelo listrado mudava de cor à medida que a garota o observava; azul com verde, roxo com marrom, rosa com vermelho, e outras milhares de combinações possíveis e impossíveis. – Gostei de você.
- Sério?
- Não. – Ele gargalhou alto. Catarina fechou a cara, mas Chess evaporou antes que ela pudesse concretizar suas ameaças não verbais. Alice fazia cara de riso.
- Ele é sempre assim? – a garota perguntou irritada.
- Não, só quando gosta de você.
- Puxa, ele gosta de mim. Estou realizada.
Catarina balançou a argola em seu colo, entediada. As chaves retiniram ao entrar em contato umas com as outras.
- Então eu tenho que ficar com essa coisa para impedir psicopatas dementes de invadirem o País das Maravilhas?
- Não só o País das Maravilhas. Existem vários outros mundos atrás das portas.
- Que seja. Responda a pergunta.
Alice suspirou.
- Já que, infelizmente, a sala redonda não é impossível de ser encontrada, às vezes alguém cai aqui por acidente. E os mundos a nossa volta são ricos o bastante para gerarem problemas a eles mesmos. Então, para impedir as pessoas que caem aqui de passar por qualquer uma das portas, as chaves ficam com você.
- Entendi – Catarina disse fazendo pouco caso. – Mas de novo: Eu tenho que ficar com essa coisa para impedir psicopatas dementes de invadirem?
- Sim, Alice, você tem – a senhora respondeu, tomando mais um gole do seu chá.
- Catarina. E como exatamente espera que eu faça isso?
- Você saberá quando for a hora. E Chess vai te ajudar.
- Chess? – Catarina reclamou com descrença. – Não tem ninguém melhor?
- Ele provará ser um ótimo amigo e servo. Vem guiando Alices desde a primeira delas, a da história. Quando precisar, quando ninguém mais puder ajudar, quando o caminho for tão difícil que você só pensará em desistir, ele é o que estará perto de você para ajuda-la a seguir em frente.
Catarina achava muito pouco provável que isso acontecesse, mas resolveu não comentar.
- OK. Então Chess vai ajudar. Mas como é que eu vou arrastar um molho desse tamanho? Mal cabe no meu bolso! E por que eu tenho que fazer isso? É de família? Porque minha mãe é mega quadrada, tenho certeza de que ela nunca esteve aqui. Como pode saber que não pegou a pessoa errada? Qual é o critério? E, honestamente, isso parece bem chato. Mesmo que eu seja a pessoa certa, o que acontece se eu disser que não vou fazer nada do que você diz que eu tenho que fazer, hein? Não é minha obrigaç-
- Blábláblá! – Alice interrompeu entediada e ligeiramente irritada. – Você fala demais. Você pensa demais. Pare de pensar!
Mas isso era particularmente impossível para Catarina. Ela não era uma daquelas pessoas que aceita uma resposta simplesmente porque é assim. Era uma daquelas pessoas que exigem um motivo para que aceitem a resposta. Uma daquelas que procuram a lógica primeiramente, porque tudo tem uma lógica, e “não faz sentido” é uma frase nunca dita. Sempre faz sentido.
A garota balançou a cabeça.
- Eu não estou pensando demais. Você é que é louca. E quer saber? – ela reforçou, pousando as chaves na mesa. – Eu cansei desse sonho. Cansei. Por isso, vou me beliscar e voltar agora mesmo para o que é real.
Ela ergueu a mão e preparou-se. Alice gargalhou.
- O que é tão engraçado? – Catarina interrompeu com raiva.
- Ah, querida, isso obviamente é um sonho. Mas desde quando esse fato o impede de ser real?
Antes que pudesse responder, Catarina abriu os olhos e não estava mais na sala redonda. Era só mais uma manhã chata, afinal.
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