Para Dizer Saumensch escrita por whoishe


Capítulo 1
Saumensch




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Entrelaçaram as mãos com força, como se nada pudesse separá-los e caminharam pela margem do Amper de águas geladas naquele dezembro frio. Ela ajeitou o cachecol surrado com a mão livre. Em tempos de guerra, passar fome, frio e todo o tipo de necessidade era normal. Mas havia pessoas em pior situação. Há um judeu no meu porão.

A brisa gelada balançava os cabelos de ambos e os olhos castanhos – tão odiados na Alemanha nazista – fitavam o chão. Aquilo tudo parecia um fiapo de esperança no meio de tanta dor. E depois os tão odiados olhos de chocolate escuro – o sabor da Morte – fitaram os brilhantes olhos dele. E um céu para chupar devagarinho? Não precisavam palavras para explicar o sublime momento em que se encontravam. Um sorriso bastava.

Um sorriso bastava?

Aquela era a Alemanha nazista. Sem sorrisos, sem olhares, sem felicidades.

Mas eles não precisavam estar num lugar feliz para estarem felizes. Às margens do Amper, citando trechos de livros ou até caminhando de mãos dadas.

Aquilo era felicidade.

– Sabe do que eu me lembro? – perguntou o garoto dos antigos cabelos da cor de limões.

– O quê?

– A aposta que nós fizemos. Se eu ganhasse, você me beijava. Se você ganhasse, deixava de ser goleira no futebol.

Uma riso suave escapou dos lábios arroxeados dela. Não houve beijo, tampouco.

– Acho que aquela cena estará para sempre gravada em nossos corações, Rudy Steiner. – disse por fim, abraçando-se mais ainda ao namorado de joelhos ossudos e com desejos de ser o tão formidável Jesse Owens.

– É o que eu também acho, Lisel Meminger.

Um sorriso sapeca brotou nos lábios do faminto Steiner. Como conseqüência, sorriu junto. A felicidade a atingia como uma bala de festim. Sabia o que viria.

– Uma corrida até a ponte? – sugeriu ele, sorrindo. – Se eu ganhar, você me beija. Se você ganhar, deixa de ser goleira no futebol.

– Como nos velhos tempos?

– Como nos velhos tempos. – sorriu abertamente. – Pronta, saumensch? Não é por que estamos juntos que vou lhe deixar ganhar.

– Como se eu quisesse.

– Então prepare-se para comer poeira. No três. 1, 2 e...

Não terminou, pois ela havia saído correndo na frente. Ele correu o mais rápido que pode, mas ela era igualmente rápida também. A ponte já se aproximava quando Rudy conseguiu alcançar a namorada e logo depois, os dois caíam embolados no chão, ofegantes e sorridentes.

– Parece que empatamos. – sorriu com certa malícia.

– É.

– Vamos fazer o seguinte: você me beija e continuará no gol. De acordo?

– É claro.

O pequeno Jesse Owens colou os lábios nos pequenos lábios da sua saumensch preferida. Tinha gosto de livros roubados. Tinha gosto de uma vida sofrida. E, principalmente, tinha gosto de companheirismo e da felicidade eterna.

– Eu te amo, saumensch.

– Eu também te amo, seu saukerl idiota.

Abriu os olhos no susto. Estava sozinha, no quarto de sempre, segurando os lençóis com força. Fora o mesmo sonho de sempre. Apalpou o lado direito – e vazio – da cama e sentiu a maciez da roupa de cama. Muitos anos haviam se passado desde o dia em que houve a completa destruição da rua com nome de céu.

Não parara sua vida por isso. Ainda era a mesma mulher – a menina com parte do coração despedaçado. Havia se casado, tido filhos, netos. O marido, falecido há tempos, não lhe deixava a mesma saudade que o saukerl de cabelos da cor de limões e com infinito desejo de ser Jesse Owens pelo uma vez na vida. Rudy Steiner era único em sua vida. Acho que aquela cena estará para sempre gravada em nossos corações, Rudy Steiner. Um sorriso choroso lhe escapou dos lábios e uma lágrima escorreu pelo rosto enrugado.

– Você sabe que é a hora certa, não sabe?

– Sei.

A Morte estava ali, não lhe parecendo assim tão assustadora. E assim como seu tão amado pai de orbes de prata derretida, sua alma logo se sentou, com os braços esticados em convite. Leve-me para um lugar onde serei feliz e completa mais uma vez. E então a Morte lhe pôs nos braços com delicadeza.

ÚLTIMA COISA ANTES DE IR EMBORA

Os dias de cão acabaram, os dias de cão chegaram ao fim.


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