Inspirados - o Andarilho do Tempo escrita por Pedro_Almada


Capítulo 24
Vazio




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Vazio

            Não havia céu. Era apenas uma mancha negra acima de todos. Vários paralelepípedos cor de tempestade decoravam o chão sem vida, alguns estavam removidos, outros rachados, além de buracos fundos que exibiam uma terra escura e infértil.

            As poucas árvores que cresciam eram convertidas em carvão, e sua única utilidade era abrigar os ninhos dos corvos, as únicas criaturas que pareciam não se importar em viver naquele mundo deplorável.

            Para onde quer que olhasse apenas construções velhas e destruídas eram vistas. Castelos em ruínas, blocos de concreto aos entulhos indiciavam que, em algum momento, houvera uma construção. Havia apenas uma montanha em todo o Vazio, plantada sobre uma ilha ladeada de um mar escuro. Tudo o que tocava suas águas eram imediatamente tragadas, como um velho senhor de pernas tortas que, aproximando-se do rio para beber de sua água insossa, acabou sendo levado. Era uma figura sem importância, tão logo foi esquecido, com a mesma velocidade em que foi levado.

            Havia oito rios em todo o Vazio, cada um brotava de um salgueiro branco sem folhas e, ao longo do percurso as águas alimentavam fossas, poços abandonados e pântanos, finalizando a viagem no mar. Não havia nada de belo em nenhum lugar, nem mesmo debaixo das pedras úmidas.

            Espalhados pelo chão, vários adereços diversos decoravam o ambiente, deixando-o ainda mais melancólico. Bonecas de porcelana, pelúcias, carros quebrados, chassis de veículos, motocicletas, algumas estatuetas quebradas, uma porção de outros objetos normalmente encontrados no mundo convencional. 

Sobre a montanha havia um forte imenso, as únicas muralhas inteiras e de aparência imponente. Era o lar dos Guardiões, Krak, Zoakros e Qaaze. O único lugar de onde era possível ver algum luminar. Um grande farol plantado sobre rochedos, com lâmpadas que pareciam olhos vigilantes. Seus feixes de luz atingiam toda a extensão daquele mundo, sempre atento à movimentação.

Entre as grandes paredes da muralha da ilha, os três Guardiões mantinham-se inexpressivos. Suas existências eram tenebrosas.

Havia um grande salão, ainda que parecesse mais uma cripta estendida. As paredes eram de pedra escura repleta de estrias que pareciam arranhões provocados por unhas desesperadas, e as janelas eram compridas e finas. Havia um lustre feito de ossos de babuíno e elefante acima da grande mesa de salgueiro branco. Um único candelabro cujas extremidades eram ocupadas por chamas arroxeadas estava disposto no centro da mesa. Parecia ter sido preparada para um banquete. No entanto, apenas três cadeiras estavam dispostas ao redor da mesa.

O primeiro a se sentar não era nada além de uma fumaça acinzentada, que sumia de vista por alguns segundos como uma névoa instável e tremeluzente. Não havia forma definida, mas era notadamente uma existência. Era Qaaze. O segundo a se dirigir à mesa era uma silhueta negra, como um homem coberto por um manto. Tinha uma leve aparência esfumacenta, porém mais sólido que o primeiro. As extremidades inferiores do que parecia ser sua capa se dissolvia em fumaças que espiralavam no ar a sumir de vista. Não havia um rosto definido, sem boca nariz ou olhos, ainda que sua forma fosse humanóide. Era Zoakros

O terceiro veio acompanhado por um animal quadrúpede asqueroso, do tamanho de um cavalo. A criatura possuía pelagem negra e olhos esbugalhados, como bolas de bilhar azuis. Suas orelhas eram equiparáveis às de uma lebre e, em torno do pescoço, uma engrenagem rachada começava a se formar, servindo-lhe de coleira. As patas eram enormes, contempladas com garras curvas e desgastadas. Seu dono veio logo atrás, Krak. O terceiro guardião conseguia ser o mais assombroso. Sua pele parecia ser uma montagem mal costurada de vários outros tipos de peles, de animais e pessoas de tonalidades diferentes. Seus olhos eram duas bolas alaranjadas com um filete vermelho no lugar da íris, que mais pareciam lábios se contraindo em um grito assustador. Diante dos outros dois, os olhos de Krak assumiram uma tonalidade bege-argila. Ele tinha uma lança amarrada nas costas, presa por correntes que envolviam desde o seu tórax macilento e cinza, até a cintura fina e ossuda.

            - Sente Harsos – Krak abriu a boca de lábios finos e pegajosos. Sua voz soou como se uma mesa de meia tonelada fosse arrastada sobre o assoalho de madeira – vamos comer.

            Krak se sentou sem dirigir uma palavra aos outros dois companheiros. Encarou-os por um momento. Nesse meio tempo, duas outra figuras, menores e desprezíveis, adentraram o ambiente mortiço. Eram jovens feias e magras, com os olhos fundos e os dentes escurecidos pela falta de cuidado. Elas começaram a servir as mesas. Diante das três figuras, elas pareciam menores do que um anão, e ambas as jovens precisaram puxar carrinhos de madeira com rodas de rangido estridente para levarem a refeição ao salão.        Krak agiu como se elas nem estivessem ali, como vermes inúteis. Aliás, era exatamente o que eram num lugar tão sórdido quanto o Vazio.

            - Zoakros... – a voz arrastada de Krak rugiu outra vez – sei que está com problemas, meu irmão. Já conseguiu resolvê-los?

            O espectro de sombra fez que não com a cabeça, levando sua mão cadavérica ao prato, repleto de uma massa cinza fedida.

            - Estamos tendo problemas aqui... Há um bom tempo.

            Zoakros afirmou com um segundo aceno. Sua mão envolveu o alimento no prato e, num segundo, ele foi engolido pela penumbra. Penumbra essa, que compunha todo o corpo do espectro.

            - A troca... – a voz de Zoakros era esganiçada e lembrava uma tosse moribunda – ela não pode ser feita... Não consigo encontrar... Aquele que fez a troca...

            - Estamos perdendo o controle – grasnou Krak – estamos perdendo os nossos “rejeitados”... Precisa reparar o erro, Zoakros...

            - Reparar?... – o espectro pareceu ofendido – não me culpe... Minha tarefa é realizar a troca... Alguém fez errado e eu precisava levar o Inspirado que a realizou... Mas eu não posso encontrá-lo... Seu nome não existe no mundo dos homens... Simplesmente não existe...

            Krak fitou o espectro, enraivecido. Tanto tempo cuidando do Vazio, ainda que contra sua vontade e, agora, estava perdendo até mesmo o seu reinado.

            - Encontre o Inspirado que fez a troca, e devore-o. Achei que fosse simples...

            - Não é simples, caro irmão... – replicou Zoakros em voz gutural – É como se ele não existisse, já disse...

            Qaaze, que até o momento parecia inexistente, falou:

            - Estamos perdendo a prole – a voz do terceiro guardião era menos apavorante. Na verdade, lembrava um sussurro sedutor, inclusive, atrativo, e ecoava de todos os cantos, como se fossem as paredes que falassem – nossa prole se tem perdido, nossos filhos... E não é tudo... As sombras que habitam os oceanos estão sendo levadas de nós... O Vazio está caindo...

            - Não! – Krak falou, furioso – O Vazio não está caindo! Ele está acordando!

            O braço feroz do guardião socou a superfície pálida da mesa, enchendo a sala com o retumbar da madeira.

            - O Despertar... – Qaaze sussurrou friamente – Zoakros foi enganado. Com isso uma barreira foi eliminada. Faltam dois... Nós dois, caro Krak.

            - Não podemos deixar... – falou Zoakros – é nosso trabalho impedirmos...

            O trio permitiu que o silêncio se estabelecesse, talvez para pensar, ou simplesmente por não suportarem um ao outro. Ainda assim eles não conseguiam desvencilhar do problema.

            Mais tarde, após a medonha refeição, Qaaze perceberia. Uma de suas vozes tinha sido roubada. Duas barreiras foram eliminadas.


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Notas finais do capítulo

faz muito tempo que eu não posto essa história, hein? Mas vamos ver aonde vai dar isso? xD
Boa leitura o



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