Inspirados - o Andarilho do Tempo escrita por Pedro_Almada


Capítulo 23
Os Expatriados




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            A raposa enfiou-se entre as câmaras subterrâneas, escapando das goteiras persistentes, ganhando, finalmente, um túnel apertado. O caminho começou a se estreitar, afunilando pouco a pouco e, quando parecia ser o fim, a raposa saltou por um buraco oculto entre as sombras. O animal ganhou um espaço completamente novo.

            Era uma gigantesca caverna, iluminada por lamparinas que emitiam luzes douradas e mornas, todas dependuradas em postes improvisados, escorados em rochas e amarradas em cordas muito gastas. Ainda assim, a iluminação parecia bastante estável. O teto estava incrustado de estalactites translúcidas, levando o aspecto de água turva congelada. Pequenos ramos de flores cresciam nas frestas das rochas e, logo abaixo, uma enorme escada de pedras se estendia. Adornando os degraus estavam pedras reluzentes e pequenos botões de rosas. A raposa não se deu ao trabalho em questionar como flores cresciam em um lugar como aquele. Afinal, ela já tinha a resposta.

            O animal correu escada abaixo, até chegar ao patamar inferior, onde suas patas tocaram um tapete de gramas que se estendia a perder de vista. Era, realmente, uma caverna imensa. No entanto aquilo não parecia ser novidade para a criatura, que continuou sua caminhada familiar, cada vez mais próxima de seu destino.

            No fim da caverna havia uma porta de madeira, cravada sem muita perícia no rochedo, onde dobradiças enferrujadas emitiam uma luz rala, reflexo das lamparinas. Num estrondo súbito, a porta se abriu, rangendo como uma gralha. O espaço foi aberto e, sem esperar por um convite, a raposa entrou.

            Na entrada, um vulto pequeno se afastou, dando espaço para o animal, que saltou magistralmente sobre uma mesa de madeira, pousando sobre a superfície e sentando-se em seguida, como um cão adestrado. O vulto que há pouco vigiava a porta fechou-a com outro rangido e acendeu a lamparina logo atrás dele.

            A luz dourada ganhou dimensões naquela sala subterrânea. O vigia era, na verdade, um garotinho de rosto encardido, cheio de vazios na boca, em um sorriso banguela e os olhos levemente vesgos. Apesar disso, o menino tinha em suas feições uma beleza incomum, como um bibelô frágil que deveria ser protegido a todo custo.

            - Iankhureah, você demorou – uma voz, mais parecida com um rosnado, tomou conta do silêncio. O dono da voz estava assentado no extremo da mesa, onde a luz da lamparina ainda não ousara chegar.

            A raposa nem sequer estremeceu com o tom de voz hostil. Ao invés disso, o animal exibiu um quase-sorriso, assustadoramente humano para um simples animal silvestre. Ao invés temer a figura que acabara de falar, ela reclinou-se com evidente desdém e, pela primeira vez, era possível perceber que, sem sombra de dúvida, havia muito mais razão e consciência naquele animal do que em muito ser humano.  

            - Não seja tão ranzinza, Walter – uma voz macia e feminina brotou, surpreendentemente, da boca da raposa – você sabe que esse buraco é difícil de ser encontrado. Eu sou uma raposa, não uma bússola.

            O homem inclinou-se em direção ao animal, permitindo que a luz da lamparina refletisse seu rosto.

            Não era uma visão de todo agradável. Ainda que não fosse decididamente feito, Walter era um homem cuja expressão raivosa era mais repugnante do que as próprias cicatrizes que brotavam de seu rosto, desde o pescoço vermelho e musculoso até as falhas que impediam sua barba espessa de continuar a crescer em alguns pontos da bochecha.

            - Ianku, você sabe que isso não é uma brincadeira – o homem urrou, entredentes, insatisfeito com a despreocupação do animal – não temos muito tempo. Precisamos de toda informação possível.

            A raposa revirou os olhos, chacoalhou o pelo e saltou para o chão, pousando suavemente.

            - Walter, não estou agindo feito criança. Sei das minhas obrigações. Portanto, não preciso ouvir seu sermão.

            - Você é uma insubordinada!

            - Você é que não suporta a ideia de ser deixado pra trás – replicou Iankhureah, a raposa – Aliás, isso já faz muito tempo. Devia se sentir orgulhoso por liderar um grupo autônomo depois de tudo o que passou... Seu ressentimento vai acabar nos destruindo.

            Walter queria retrucar, chutar o animal insolente e mostrar quem realmente mandava. Mas, de um jeito terrível, ele tinha que concordar com o Iankhureah. Depois de tanto sofrimento, nitidamente expressos em seu rosto surrado, superar seu passado era um motivo para sentir orgulho de si mesmo... Mas ele não conseguia se sentir assim. Havia culpa, boa parte dela desenhada na íris cor de bronze.  

            A porta, em seguida, abriu novamente, sem esperar a permissão da criança que servia de vigia. Ela saltou para o lado, permitindo a passagem de outra pessoa.

            Um homem de quase dois metros de altura entrou. Era magro e o rosto era quase tão quadrado quando a própria porta que acabara de chutar. Walter recebeu aquele homem com um olhar reprovador, mas cheio de expectativa.

            - O que descobriu, Fausto? – perguntou Walter.

            O homem não respondeu de imediato. Olhou para trás por um breve momento, como se esperasse por alguma coisa. Não demorou muito a acontecer. Uma pantera de pelagem densa e negra entrou sorrateiramente, sentando-se ao lado do grandalhão. Na boca do animal felino, um pequeno círculo de metal pendia entre suas presas. O objeto de brilho metálico tinha em sua superfície traços que lembravam uma pena e um livro aberto.

            - Encontrei mais um – avisou Fausto – Mas Dalara e eu escapamos por pouco – e apontou para a pantera negra, que rosnou em protesto.

            - Sinto muito – murmurou Walter, sincero – sei que não deveria expor a todos... Mas estamos passando por momentos difíceis.

            A pantera depositou o objeto sobre a mesa e, com seus olhos faiscantes amarelos, encarou Walter. O animal parecia transtornado.

            - Você sente muito? – a voz de Dalara era um sibilo, porém nítido e imponente. Era igualmente assustador ver uma pantera dialogando com tanta civilidade – Você se confina nesse buraco, seguro, dando ordens... Enquanto isso, Fausto, Jilli e Liberty tentam acompanhar os passos de Galahan... Como espera que acreditemos em seu pesar?

            A raposa encarou Dalara com repulsa, mas seus olhos não podiam negar que estava de acordo. Iankhureah também não gostava de ver Walter ali, todo o tempo, mas sabia muito bem os motivos que o confinavam naquele lugar.  

            - Não seja uma gata burra, Dalara – queixou-se Ianku – Não podemos nos voltar uns contra os outros. Fique feliz por ter fechado mais um Literadouro.

            - Não, Ianku – falou Walter – ela está certa. Sou um insolente... Mas não posso me dar ao luxo de deixar...

            Então Walter encarou a criança no canto da sala cujas paredes de pedra pareciam transpirar. O menino banguela parecia absorto em suas próprias ideias, ignorando a discussão e assistindo às gotas que escorriam pelas saliências do teto.

            - Não posso deixar Dante aqui, sozinho...

            A menção do nome chamou a atenção da criança. Ela se virou e encarou Walter. Quando os olhares se cruzaram o pequeno Dante exibiu um sorriso cheio de sinceridade e espaços vazios. Walter retribuiu a gentileza, como um pai orgulhoso.

            - Dante... Ele é minha responsabilidade – informou Walter em um tom que colocava fim à discussão – muito bem. Quero que me digam tudo o que conseguiram.

            Fausto, o grandalhão, suspirou satisfeito ao ver o findar do bate-boca. Apesar de sua grande estatura sua natureza era pacífica, calma como as águas mansas de um rio. O completo inverso de Dalara, a pantera e sua companheira cuja personalidade era a mescla de uma fera selvagem e um humano impetuoso cheio de razão.

            - Vamos – Walter vez um gesto ao grupo, indicando as cadeiras vazias – temos muito que discutir.

            E assim fizeram. Iankhureah saltou sobre a mesa, por ser a de menor estatura. Dalara e Fausto, por outro lado, assumiram seus lugares, cada um em uma cadeira, e ainda assim eram maiores do que o próprio Walter.

            - Fausto... – começou o homem de cicatrizes – como foi a triagem?

            - Não houve triagem alguma – murmurou o grandalhão em resposta – simplesmente fomos atacados por algumas das aparições. Mas conseguimos selar o Literadouro. Pegamos o garoto Inspirado, mas ele nada sabe sobre Galahan ou o Despertar do Vazio. Simplesmente, um dia, recebeu uma carta de um tal Dr. Sanguinetti. Desde então o menino descobriu o que podia fazer.

            - Ele estava possesso pelo próprio poder – Dalara falou em sua voz gutural, sem nunca demonstrar qualquer sinal de simpatia – Precisamos tomar medidas drásticas.

            - Tomar medidas... O quê? Vocês não...

            - Não o matamos, se é o que está pensando – defendeu-se Fausto, e Walter percebeu uma palidez nos olhos do homem na mínima menção à morte de um garoto – Céus, Walter! Não somos animais... Quer dizer... Ora, Dalara, você me entendeu! Não me olhe dessa maneira!

            - O importante é que mais um Literadouro foi fechado – dizendo isso, Walter pegou o círculo de metal – obrigado, Fausto e Dalara.

            O homem de cicatrizes permitiu que suas mãos deslizassem sobre o metal fino, sentindo a textura gelada. O círculo era, na verdade, um aro, com vários raios que convergiam exatamente no centro. O desenho inscrito era similar a um livro aberto, com letras que escapavam das páginas e ganhavam a extremidade do círculo, acompanhando a curva do metal. Entre as páginas do livro havia uma pena entalhada.

            - Literata Permisa – murmurou Walter, cujas palavras foram carregas de um sotaque diferente, como se a pronúncia fosse uma espécie de vertente do latim – esse foi bem feito. O que era dessa vez? Uma caixa de sapatos?

            - Um cofre – Dalara respondeu – foi difícil abri-lo, mas o garoto era descuidado.

            - Ainda assim, era muito criativo – queixou-se Fausto, esfregando o ombro, como se a lembrança evocasse a dor da batalha.

            Walter abandonou o metal no canto da mesa, lembrando-se que a raposa ainda estava ali. Quando, finalmente, ele virou-se pra ela, Iankhureah chacoalhou a cabeça, exibindo um olhar travesso.

            - Aposto que quer saber o que descobri – falou Ianku, cheia de emoção.

            - Foi pra isso que eu te mandei, não foi?

            Ela assentiu, sem perder o tom cômico em sua expressão pseudo-canina.

            - Bem... Sabem o tal Sanguinetti? O das cartas? – Inku começou a andar em círculos sobre a mesa, o que parecia irritar Dalara – Bem... Eu o encontrei.

            Fausto e Walter ficaram boquiabertos, exceto Dalara, que assumiu um olhar que dizia “Droga! Devia ter sido eu”.

            - Sanguinetti? – Walter bateu a mão sobre a mesa – Ora, vamos, diga! Quem é esse homem?

            - Não sei, exatamente – continuou Inaku – Não muito novo, mas também não chega a ser velho. Uma cabeleira grisalha, feio de dar dó. Em si, não me pareceu um homem interessante, se me permite dizer... Mas ele estava falando com... Northon Galahan.

            Walter e Fausto ergueram-se, estupefatos. Dessa vez nem mesmo Dalara conseguiu disfarçar o choque. Galahan? O homem que fora exilado para o Vazio há centenas de anos atrás? Ele estava vivo? Era motivo mais do que o suficiente para espantar as cores do rosto dos dois homens, deixando-os pálidos e sem voz.

            - Agora é certo que Galahan está por trás disso – Ianku continuou diante da afasia momentânea dos demais – Mas, o pior... Eles possuem um Inspirado trabalhando para eles. Além do mais Sanguinetti possui um amontoado de papeis guardados debaixo do assoalho, possui informações importantes, penso eu. Tudo o que consegui ver era que tinha algo intimamente relacionado ao Despertar do Vazio.

            - O que mais? Diga, raposa! – berrou Walter – não me deixe louco de curiosidade!

            - Eles querem um híbrido – Inaku continuou, esforçando-se para não responder ao mesmo tom – ao que parece, um mestiço de dois mundos é a chave para alguma coisa. Eles mencionaram um nome. Charlie Galahan. Disseram que é um Inspirado, ou algo assim... E que lamentavam a perda. Disseram que esse tal Charlie teve contato com... Bem, com Razar.

            A menção daquele nome provocou calafrios em fausto, mas Walter deixou uma luz cheia de significado brilhar em seus olhos cor de bronze.

            - Razar Munphósteles La Fay... – sua voz soou sibilada – então os Emissários também estão se movendo... Eu não poderia esperar menos de um La Fay.

            - Então significa que devemos manter a cautela redobrada – falou Fausto – Se Munphus está envolvido nisso, as coisas complicam mais do que o normal.

            - Ora, não se preocupe, caro amigo – falou Walter, caminhando até o amigo e pousando gentilmente a mão sobre seu ombro – quem sabe, um dia, não reencontraremos a nova classe de Emissários. Daremos uma boa lição neles.

            - Eles poderiam aprender um bocado com a gente – riu Ianku, com sua familiar manha de animal sorrateiro, deslizando até o chão e vislumbrando, com satisfação, o olhar reavivado de Walter. Alguma coisa naquela conversa tinha trazido, novamente, o desejo de ganhar o mundo, e não mais se confinar em um buraco debaixo da montanha.

            - Mas algo me incomoda. Como – Fausto perguntou, imediatamente – Como eles conseguem se comunicar? Isso não deveria ser impossível?

            - Na verdade, existe uma explicação – informou a raposa – eu os ouvi mencionando a Voz do Vazio.

            Walter tentou balbuciar alguma coisa, mas estava estupefato com a informação. A bagagem de notícias trazida pela raposa parecia embriagar a mente do grupo, e tudo parecia cada vez mais absurdo.

            - Não me pergunte como, mas... De alguma forma Galahan parece estar se dando muito bem no Vazio. Tanto que roubou a Voz de Qaaze.

            - Qaaze não é aquele capaz de sussurrar pensamentos sórdidos na mente das pessoas? – perguntou Fausto.

            - Sim. É assim que se alimentam no Vazio. Usam a voz do Guardião, Qaaze, para formar pensamentos sórdidos que giram as engrenagens do Vazio – continuou Walter – Mas eu não entendo. Qaaze não sentiria falta disso? Quer dizer, é a sua voz, não é?

            - Algumas coisas ainda estão obscuras, isso é verdade – Dalara murmurou – mas não podemos permitir que isso continue. Vamos até a cabana e destroçaremos Sanguinetti e esse tal Inspirado, ateamos fogo nesses papeis e resolvemos o problema.

            Fausto estava prestes a protestar quando a porta, mais uma vez, escancarou. Dante, o garotinho, nem se deu ao trabalho de abri-la, simplesmente saltou para o lado, permitindo a passagem, fosse quem fosse. Duas novas figuras entraram no recinto, mas Walter não parecia surpreso. Estava, na verdade, aliviado em ver a chegada delas. Sim, a luz imediatamente revelou o rosto de duas mulheres.

            - Um caos completo! – foi a primeira coisa que ouviram, palavras da mulher que acabara de chegar – essas crianças possuem cada coisa maluca na cabeça!

            - Liberty – anunciou Walter – minha querida, que bom que está bem.

            O homem se levantou, deixando a cadeira de madeira cair com um baque surdo, passou por Fausto sem pedir licença e abraçou a jovem.

            - O que esperava de mim, papai? – ela sorriu, desvencilhando do pai graciosamente, como um fio de seda levado pelo vento.

            Liberty era uma jovem de seus aproximados vinte e cinco anos. Seus olhos eram do mesmo tom dos do pai, um bronze frio e camuflado de sentimentos. Seu cabelo castanho estava amarrado em um rabo de cavalo e seu corpo cheio de curvas estava muito bem desenhado sob uma calça de moletom e uma camiseta curta que deixava à mostra o umbigo. Sua beleza, no entanto, era comprometida pelas orelhas levemente compridas, o que fazia lembrar um elfo, ou um duende.

            - Eu estou bem, obrigada por perguntarem – a voz da segunda mulher soou, fingindo estar ofendida.

            - Alô, Jilli – Fausto acenou, amigável – vejo que se deram bem hoje.

            Jilli era mais velha. Com cerca de quarenta anos, ainda preservava um corpo atlético e jovial, provavelmente esculpido durante aventuras que se passava diariamente em sua vida. Suas curvas estavam emolduradas num vestido floral discreto que se estendia abaixo dos joelhos. As mangas cheias e a gola em forma de um eram adornadas com frisados no tecido, dando a impressão de um vestido retrô.  

            - Ora, vocês se deram bem, também – Jilli falou, enquanto caminhava até a mesa e pegava o círculo – mas, infelizmente, nós ganhamos. Não é mesmo, Libby?

            Dizendo isso, Jilli ergueu a mão e, num gesto rápido e circular com os dedos, murmurou: “Brachium Lutum!”. A terra começou a se mover aos poucos, removendo os ramos que cresciam em volta, até ficar à mostra uma protuberância no solo, formando o que parecia ser um tentáculo, que começou a se esticar e subir como uma serpente hipnotizada. A partir de sua extremidade se esculpiu uma mão e, da palma, brotou três aros de metal.

            - Não é momento para exibições, Jilli – queixou-se Walter – temos muito o que fazer.

            - Oh, eu imagino – Liberty falou, recolhendo os aros de metal e colocando-os sobre a mesa – Ianku descobriu alguma coisa importante, penso eu.

            Ela piscou para o animal, que retribuiu o gesto cúmplice.

            - Sentem-se – pediu Walter – o que vamos discutir é bem mais importante do que caçar literadouros.

            A dupla recém-chegada se acomodou em um canto. Dante, o garotinho, vendo que não mais precisava servir de vigia, caminhou até Liberty e saltou sobre o seu colo. A jovem, condolente, recebeu o menino e abraçou-o como uma mãe faria a um filho. Walter pigarreou e, num segundo, todos voltaram sua atenção ao homem.

            Não levou muito tempo para que Iankureah narrasse mais uma vez tudo o que havia visto. Assim como antes, Liberty e Jilli adotaram as expressões mais exclamativas possíveis. As notícias trazidas pela raposa eram suficientemente importantes para levá-los ao lugar certo.

            - Isso é incrível! – falou Jilli – Precisamos ir a essa cabana! Precisamos colocar as mãos nesse Sanguinetti!

            - Não seja boba, Jill – Liberty falou – Ele tem um Inspirado ao seu lado. Ele pode fazer tudo o que fazemos, e mais um pouco. Pelo que Ianku disse, ele domina a Inspiração muito bem.

            Warter rosnou para si mesmo.

            - Depois que o limite entre os mundos ficou desequilibrado, esses Inspirados agora podem manifestar seus poderes... Isso é mesmo o cúmulo.

            - Bem, o Vazio ainda não está aberto, talvez a Inspiração do rapaz ainda seja muito limitada. Podemos vencer – arriscou Jilli.

            - Não quero arriscar – avisou Walter, decidido – Não podemos dar ao Galahan esse gosto. Se chegarmos lá e o tal Inspirado tiver plenos poderes, seremos massacrados.

            Todos se mantiveram em silêncio por um breve segundo que perdurou e, nesse meio tempo, apenas as gotas de água gotejando sobre a mesa foram ouvidas. Quando ninguém mais ousou falar, a reunião foi interrompida.

            - Eu tenho uma ideia – uma voz que ecoou do teto infiltrou-se na discussão. Todos olharam para cima, de onde vinha a voz e a goteira – talvez devêssemos partilhar dessa informação com Os Emissários... Os oficiais, pelo menos.

            Ninguém pareceu surpreso, afinal, era uma voz bastante familiar. Gotas de uma água muito clara começaram a pingar sobre a mesa, a princípio discretamente e, de súbito, a goteira se converteu em uma torneira aberta e descontrolada.

            - Acquary! – Liberty esbravejou – não seja impertinente! Tome o seu lugar!

            - Você precisa controlar o seu Corsário, Libby, minha filha – pediu Walter, impaciente, esfregando as têmporas – Acquary tem um temperamento pior do que o seu.

            A poça de água formada sobre a mesa tomou vida, escorrendo para o lado, arrastando-se pela superfície de madeira até, finalmente, escorrer para o chão. O volume de água mudou de forma. Como se inchasse, o líquido cristalino projetou-se para cima, tomando a forma de uma silhueta humana. Não havia rosto, nem um sinal de expressão, apenas a forma humanoide que não surpreendeu a ninguém naquela sala escondida debaixo da terra.

A figura formada inteiramente de água caminhou ao redor da mesa, dando de ombros.

            - A minha ideia ainda é válida – a voz ecoou, oriunda de Acquary, embora não houvesse uma boca que gesticulasse enquanto as palavras eram ditas – Razar Munstópheles La Fay seria a melhor alternativa.

            - Nunca irei me rebaixar a isso! – rugiu Walter – Pedir ajuda ao homem que me expatriou! É muita insolência sua abrir essa maldita boca para dar conselhos tão... Tão...

            - Pertinentes? – arriscou Iankureah – não vejo melhor alternativa. Ele está atualizado, possui um grupo maior de Emissários. Seria um reforço...

            Walter estremeceu, sentia-se acuado, obrigado a fazer algo que não queria. Furioso, levou a mão ao pescoço do próprio corsário. A raposa tentou desvencilhar, mas não foi rápida o suficiente. Capturada, foi arrastada de encontro ao rosto surrado do homem.

            - você não quer me ver com raiva, Ianku... Não quer mesmo...

            - Essa guerra não é entre Emissários e Expatriados, Walter! – a raposa guinchou – existe um inimigo muito maior entre nós! Engula o seu maldito orgulho, ou vai matar a todos nós!

            As cicatrizes profundas do homem pareciam pulsar e revelavam a ira que há muito Walter ocultava para si.

            - INSOLENTE!!

Walter, ainda apertando a raposa entre os dedos calosos, atirou-a contra a parede. A raposa foi salva do impacto por muito pouco. Antes de tocar a parede, uma segunda figura humanóide brotou da muralha sólida, como se a própria parede ganhasse vida. A criatura que acabara de surgir tinha o corpo mole e fofo como terra arada, o suficiente para amortecer o impacto. Iankurea caiu de pé, sacudiu os pelos com ferocidade e lançou em Walter um olhar âmbar regado de ódio.

            - Pai! – Liberty socou a mesa, contrariada – isso não é maneira de tratar o seu Corsário!

            - Não se preocupe, Libby – a raposa, antes espontânea e zombeteira, tinha agora um tom de voz tenebroso, algo que sensibilizou Walter – Isso mostra o quão errados estavam quando pensaram que Walter poderia ser um Emissário. A Inspiração não precisa de homens como ele. Munphus estava certo a seu respeito, Walter!

            Os lábios do homem tremularam, ansiosos por palavras cheias de fúria, mas não saiu uma única sílaba. Uma guerra interna parecia pronta para explodir, mas a discussão foi interrompida.

            - Se, mesmo unidos, estamos perto do fracasso –o corpo de terra que há pouco brotou da parede adiantou-se e, entrando no campo de iluminação da lamparina, falou como uma idosa de tom severo – separados seremos moscas para Galahan! Vocês estão sendo irracionais! Fechamos mais literadouros hoje do que em uma semana inteira e ainda temos os rastros de Galahan.

            A figura caminhou em direção ao canto da sala, onde Dante estivera minutos antes. A terra se moveu e um bloco de argila brotou do chão. Lutum, a Corsario da Terra, sentou-se e manteve o silêncio.

            Ninguem ousou falar. Walter em especial optou por engolir sua raiva e manter o controle. Curiosamente Lutum era extremamente respeitada por todos. Ninguem ousava discutir com a própria materialização da Mãe-Terra, uma piada interna que Iankurea não ousou fazer naquele momento.

            Não houve mais discussão depois de Lutum erguer sua sábia voz anciã. No fim das contas, estava decidido. Buscar ajuda de Munphus não era uma ideia a ser descartada.


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