Inspirados - o Andarilho do Tempo escrita por Pedro_Almada


Capítulo 22
Ray, Seu Patife!


Notas iniciais do capítulo

Galera! Leiam e comentem!
Aliás, se você encontrou algum erro de concordância, de ortografia, etc, por favor, fale. Suas críticas são de grande ajuda e muito apreciadas xD
fiquem na Paz, e boa leitura!!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/124471/chapter/22


            Quando, finalmente, o barco atracou, Ray Barr saltou para a terra firme e amarrou a pequena embarcação numa rocha pontuda que brotava da areia branca, agora iluminada pelo sol reduzido à cometas. A noite acomodou-se no céu.

            Charlie, assim que deixou o barco, encarou o céu com curiosidade. Não se lembrava de ver como anoitecia. Mas o que vislumbrou em seguida foi ainda mais espetacular do que o nascer do sol. Em um ponto próximo da pequena ilha as águas se mexeram, formando um halo. De dentro dele um pequeno pássaro branco de cauda comprida deixou o mar, carregando no bico a ponta de um fio prateado que se estendia para as profundezas do mar.

            - O que é isso? – perguntou Charlie, vendo a ave levantando voo e, nas alturas, começou a girar.

            - Aquele pássaro se chama Agulha do Oceano. Ele quem tece a lua.

            Charlie não respondeu e, embora ficasse admirado, não se sentiu perplexo. Era ainda mais belo do que impossível. Ray, percebendo que Charlie ainda se interessava pela história, continuou a explicar.

            - Ao fim da noite, quando os Imperados sobem ao céu, as sereias do oceano tecem os corais com seus cabelos prateados. Quando s Imperadores deixam o céu, sinalizando o entardecer, o Agulha do Oceano deixa as profundezas, carregando na ponta do bico o fio usado pelas sereias. Os corais se desmancham a medida em que a lua é formada. Isso acontece todos os dias.

            Charlie manteve seu olhar no Agulha, ave reluzente, voando em movimentos circulares. A ponta do fio prateado perpassou uma estrela fixa no céu, Agulha voou até outra estrela, e fez o mesmo, até que uma grande teia circular se formasse no céu.

            - Agora ele vai dar volume à lua – falou Ray se divertindo com a expressão ingênua de Charlie – como se enrolasse um novelo.

            Charlie não quis falar. Estava ocupado assistindo a uma das mais belas maravilhas que seus olhos, um dia, puderam ver.

            A ilha era plana e circular, como uma tira de um tecido muito branco e bem recortado. Agora, com a lua já quase em sua fase cheia, a areia brilhava ao tom do círculo tecido por Agulha.

            Ray estava no extremo da ilha e, a pedido do Emissário, Charlie ficara na outra extremidade. O homem, com um machado médio feito inteiramente de pedra, derrubou uma árvore de tronco torcido, dividiu-a em várias toras e alinhou-as no centro, como uma fogueira.

            - Antes de tudo quero que acenda essa fogueira – pediu Ray, que não conseguiu esconder sua empolgação – use sua habilidade.

            - Oh, certo – Charlie ficou surpreso. Não que não fosse capaz, mas ele sempre se sentia inseguro diante de seus poderes, especialmente o fogo. Da última vez, poderia ter sido muito pior.

            - Vamos, nanico, vai dar tudo certo – Barr piscou, paternalmente – Se algo insinuar der errado, eu dou um jeito. Não se preocupe.

            Charlie, enfim, se convenceu. Encarou as pequenas toras ajustadas umas sobra as outras de forma organizada e, com os punhos cerrados, mentalizou. Como da primeira vez, inventou o fogo primeiro em sua mente. Era assim, simplesmente pensar, concentrar, acreditar no calor, no brilho dourado das chamas e nas labaredas furtivas e cheias de energia.

            Sentiu-se idiota, como da primeira vez, mas ignorou a presença de Ray para realizar o processo. Estendeu sua mão esquerda em direção à chama adormecida. Concentrou-se, limpando sua mente de leões alados, novelos de fios de prata e aves que brotavam do oceano. Surtiu efeito.

            As pontas de seus dedos faiscaram e, num salto rápido, uma bola de fogo foi atirada para dentro da fogueira. A madeira queimou sem resistência, enquanto a chama enchia o ambiente com o seu calor, tentando, inutilmente, competir com a face prateada da lua.

            - Incrível – Ray aplaudiu e gargalhou. Charlie riu, não de seu intento, mas da maneira espontânea de Ray. De alguma forma, ele sentia como se fossem grandes amigos.

            - Ok, e agora? – Charlie estava ansioso. Qual seria o próximo passo.

            - Quero ver o vento – pediu Ray, agora apenas com um ar de riso nos lábios – Quero que use o ar e desloque as chamas, vejamos... Até o oceano. Isso, apague o fogo, deslocando as chamas com o ar até o oceano.

            - Como? – Charlie encarou das chamas para o seu treinador – seria mais fácil eu simplesmente mandar o fogo se extinguir.

            - Seria mais fácil eu te atirar nas sombras do Vazio e voltar pra casa, nanico, e eu não estou fazendo isso, estou? Ah, espere... Eu entendi, você não consegue. É claro, Fraz te meteu tanto medo que, agora, você nem consegue deslocar uma única brasa.

            - Ok, eu entendi, Ray – Charlie revirou os olhos – eu vou fazer o que está pedindo.

            Charlie se lembrou de como era deslocar o ar. Era o desejo abstrato, o objetivo imaterial, ou algo assim. Não era mais uma questão de teoria, Charlie conseguia dominar o elemento na prática. Mas seria difícil deslocar fogo com ar, isso ele sabia.

            Na primeira tentativa o vento simplesmente passou dentro das chamas, transformando-as, por um breve segundo, numa língua bifurcada, que logo se fechou e tomou a sua forma. A segunda vez fez com que um toco de madeira em brasa rolasse até a margem do banco de areia, mas ainda assim não foi o suficiente. Acreditando que na terceira vez sempre dá certo, Charlie arremessou um tufão, que serviu apenas para alimentar as chamas.

            - Você está fazendo do jeito errado, rapaz – Barr avisou – Os elementos não são armas. Você não atira o fogo e o ar, apenas. Você os controla, eles respondem ao comando do seu corpo. Desmanchando-se um nó, você domina todos, mas não pode seguir se não puder compreender a dimensão de um poder conquistado.

            Charlie compreendia. Atirar bolhas de ar contra a fogueira não iria ajudar, pelo contrário, apenas serviu para espalhar o fogo e torná-lo ainda maior. Precisava recriar sua habilidade com o ar.

            - Vamos, rapaz – Ray sentou-se na areia, as chamas iluminaram seu rosto duro e de expressão igualmente dócil – você consegue. Temos a noite inteira.

            Certo, pensou Charlie. Deslocar, apenas isso.

            Fitou as chamas como se fossem um alvo pronto para ser fincado por uma flecha. Era o seu objetivo, sua meta, não atacar, apenas mover, essa seria a tarefa simples do vento que sopraria ao seu favor. Estendeu as duas mãos em direção às chamas. As palmas abertas estavam voltadas para cima, como se Charlie tentasse segurar as águas de uma cachoeira invisível. Deixou a Inspiração fluir.

            As chamas tremularam, indiferentes. Mais uma vez, Charlie concentrou-se na viva cor do fogo, na fumaça morna e em seu objetivo. A fogueira, então, tremulou de forma incomum, como se uma corrente de ar acabasse de passar por baixo das toras de madeira, fazendo-as deslizarem. Mas isso serviu para que o fogo se espalhasse mais.

            - Você está conseguindo, Charlie – alegrou-se Ray – um pouco mais, apenas.

            Charlie deixou que seus dedos se projetassem para cima, como se dançassem à distância com as chamas. O fogo pareceu respeitar o movimento do rapaz.  Charlie, então, ergueu as mãos.

            Ray explodiu de comemoração. A chama, assim como as toras de madeira, se elevaram, movidas por uma corrente de ar que girava em torno da fogueira, envolvendo-a como uma cúpula. A areia, docemente, dançou com o vento, girando em volta das chamas e brilhando como minúsculas pedras preciosas. Charlie não teve tempo de comemorar com seu treinador, estava ocupado demais tentando mover a cúpula de ar sem desfazê-la.

            Por um momento as chamas tentaram escapar, mas Charlie conseguiu conter as chamas. A fogueira pairou lentamente até o oceano, que refletiu o amarelo vivo das chamas, agora atiçadas pelo ar. O rapaz sorriu, realizado, a cúpula de ar se desfez e a fogueira desapareceu, engolida pela face escura do mar.

            - Um belo trabalho, garoto – Ray caminhou até Charlie, batendo em seu ombro cordialmente – Acho que agora posso trabalhar com você os últimos dois nós.

            Charlie não via a hora de dominar sua Inspiração.

            - Os outros dois nós consistem em terra e água – avisou Barr, agora de forma bastante técnica – a água é ainda mais complexa, pois representam a flexibilidade, a nossa capacidade de nos adaptarmos às mais diferentes situações. A terra, embora aliada da água, consiste no oposto a esta. A terra representa a persistência, nossa estabilidade diante de uma adversidade. Ambos os elementos giram em torno da razão, o momento certo entre permanecer o mesmo, ou mudar. Ser o mesmo é ser rocha. Mudar é ser água que toma a forma de um novo frasco. Compreende, nanico?

            Charlie afirmou com um gesto.

            - Pois bem – o Emissário afastou-se de Charlie, caminhando, novamente, para o outro extremo da ilha – boa sorte...

            Ray ajoelhou no chão. Sua expressão não era mais amigável ou doce. Era rígida, como se fizesse um grande esforço para sustentar uma ideia que pesava dentro de sua cabeça. O homem, então, enterrou as duas mãos dentro da areia, forçando os pulsos para baixo. Os braços de Barr perfuraram o chão como uma faca atravessando uma barra de manteiga.

            - O que eu...

            - A água é sua flexibilidade – interrompeu Ray, sabendo qual seria a pergunta do rapaz – a terra é persistir com o mesmo pensamento. Mude, ou mantenha-se imutável. São duas escolhas que podem te manter vivo.

            Charlie não teve tempo de replicar. No instante em que o Emissário se calou, a terra estremeceu furiosamente. Montes de areia se ergueram, formando volumes graúdos de areia, que escorreu para os lados e revelou uma terra marrom escura dando forma a um pequeno monte, como um formigueiro gigante. A massa de terra estremeceu mais uma vez. A ponta do formigueiro inchou, arredondou, enquanto as laterais formavam troncos humanóides, porém mais graúdos.

            - Quero que conheça – não havia nenhuma expressão na voz de Ray – meu corsário. Corsario Bearre.

            As montanhas de terra incharam indefinidamente até que, finalmente, tomaram a forma. Doze enormes ursos de pelagem marrom e olhos negros ferozes encaravam Charlie. Mas não eram ursos comuns. Os braços peludos dos animais estavam envoltos por placas de metal douradas, assim como os pés e, acima da cabeça, elmos reluzentes exibiam um penacho vermelho.

            - Eu vou te atacar, nanico. Com tudo o que eu tenho, eu vou te atacar. – as palavras de Ray saiam de sua boca e Charlie as ouvia muito bem, mas não conseguia acreditar no que estava escutando. Barr, um sujeito simpático, gentil, o melhor de todos os Emissários e, agora, um homem frio que emanava fúria em sua feição banhada pelo luar – Sugiro que faça sua escolha.

            Os ursos ganharam vida. Berraram. Seus corpos, uma mistura confusa de pelos, terra e raiz, dispararam em direção ao rapaz em choque. O chão estremecia a medida em que os corsários se aproximavam e, na mente de Charlie, aquilo era um sonho, uma visão inebriante e, logo, seria acordado pelo amigável Ray. “Você caiu e bateu a cabeça, nanico”, diria ele, “está se machucando demais”, e o Emissário daria aquela risada de velho fumante. Mas isso não aconteceu.

            Charlie despertou a tempo de saltar para o lado antes de ser atingido. A pata grotesca de um urso passou zumbindo pelo seu rosto, Charlie caiu de bruços no chão e, antes que pudesse fazer qualquer queixa, precisou rolar para o lado antes que as patas dianteiras de um outro corsário afundasse o seu crânio.

            Charlie impulsionou o corpo apoiando as mãos no chão, distanciou-se dos corsários e correu na direção de uma pequena árvore que balançava, indiferente ao desespero do garoto.

             - Ray! – Charlie bradou, mas não foi o suficiente para fazer um dos ursos parar. O rapaz saltou por cima de um arbusto seco, que foi desintegrado pela pata do animal.

            Charlie correu pela borda na ilhota, sentindo a areia entrando no seu tênis, enquanto o suor começava a brotar na testa. Os doze ursos dispararam em sua direção. Eles urraram, furiosamente e, logo, não havia nada de belo naquela noite. Apenas uma vontade incontrolável em se manter vivo.

            - Ray! – Charlie deslizou sobre a areia e voltou-se contra os corsários, agora mais próximos – Você está ficando louco? É isso? Fale alguma coisa, Patife!

            Charlie não sabia mais o que pensar. Aquilo não poderia ser um treinamento, Munphus não concordaria em colocar a vida de Charlie em risco daquela forma, ele não estava pronto para uma luta. Mas ele também não tinha tempo para pensar qual era sua preparação. Simplesmente ergueu as mãos na direção dos ursos e, com um simples pensamento, fez o que tão bem aprendeu.

            Uma rajada de fogo iluminou toda a extensão da ilha, brotando dos dedos curvados de Charlie e engolindo os corsários. A chama queimou as outras duas únicas árvores na ilhota, a areia esquentou subitamente e os ursos se afastaram, em chamas.

            - Você está ficando louco, Ray! – bradou Charlie – isso não me parece um treinamento! Eu não...

            Charlie caiu, sentindo sua cabeça latejando. Não percebeu a massa de terra voando em sua direção e acertando-o bem na têmpora. Ele cambaleou quando tentou se levantar, sentiu as pernas falharem e caiu de joelhos.

            Os ursos estavam a sua frente, todos pareciam segurar fragmentos de rocha nas mãos. Charlie estremeceu, tentou falar, mas sua voz falhou no meio do caminho, e tudo o que saiu da garganta foi um uivo desafinado. Numa segunda tentativa ele tentou erguer o corpo, mas a pancada na cabeça tinha desorientado seu senso de direção. Ele firmou o corpo sobre o punho fechado, ergueu os ombros lentamente e, quando ouviu o vento assobiando, saltou para o lado, reunindo o resto de forças que haviam em seus joelhos. A pedra, por muito pouco, não o atingira. Os ursos estavam usando fragmentos de rocha extraídos da terra como munição.

            - Isso... Isso não é legal, Ray – Charlie levantou-se, ainda zonzo, tentando encontrar o Emissário. Barr não tinha saído do lugar, não havia movido um único centímetro de seu corpo – Isso não é legal.

            Charlie lançou um rápido olhar a sua volta. Quatro leões estavam tostados, sua pelagem carbonizada e seus corpos, antes imensos, eram um monte inerte de terra. O fogo havia surtido efeito, mas, antes que pudesse comemorar, o chão estremeceu mais uma vez. De debaixo da areia dois ursos brotaram e, logo em seguida, emergiram outros dois.   

            A saraivada de pedras veio logo em seguida. Charlie não teve tempo o suficiente para pensar. Simplesmente ergueu as mãos e, utilizando o conhecimento que obtivera em seus treinamentos, usou a manipulação do ar. Uma rajada de vento soprou de todos os cantos, girando ao redor do corpo de Charlie e chicoteando as pedras para longe, inviabilizando aquele ataque.

            Charlie viu as pedras caírem uma a uma, como moscas abatidas.

            - Rá! – ele exclamou em tom de vitória – não contava com essa, hein, grandão?

            Não houve resposta. Ray permaneceu imóvel, sem dizer uma única palavra ou expressar qualquer reação diante da zombaria. Nada. Estava tão imóvel quanto...

            Então Charlie percebeu. Foi incrivelmente óbvio! No instante em que Ray invocou seu corsário e os ursos tomaram vida, Ray assumiu aquela posição inquebrável. As mãos do Emissário permaneciam firmemente cravadas na terra. Claro, era assim que Ray manipulava o seu corsário. Suas mãos enraizadas conectavam Ray com a terra que, em resposta, trazia vida aos ursos. Pareceu bem óbvio, mas era apenas uma teoria.

            - Preciso tentar – murmurou o rapaz para si mesmo – uma única vez.

            Charlie visualizou uma pedra a ermo no chão nos pés de um dos ursos de terra. Num movimento ligeiro Charlie impulsionou a mão na direção da pedra. Ela se moveu com incrível velocidade, carregada por uma forte rajada de vento. O deslocamento brusco de ar mudou curso, rumo ao Emissário.

            A pedra atingiu-lhe no ombro com tamanha força, desconhecida até mesmo para Charlie, e um rasgo na pele de Ray se formou onde acabara de chicotear o projétil. O corpo de Ray reagiu, estremecendo e, mesmo á distância, Charlie pôde ouvir a respiração do Emissário ofegar.

            Em resposta, os ursos vacilaram. Um deles fraquejou e caiu sobre o monte de terra carbonizada, mas logo o animal pôs-se de pé. Então tudo o que Charlie tinha que fazer era atacar Ray e, logo, os outros ursos também cairiam.

            - Eu já entendi o seu ponto fraco, Ray – avisou Charlie, preparando outra onda de ataque – eu também vou atacar com tudo.

O ar se deslocou com subordinação à sua volta, enquanto torrões de rocha levitaram, sustentados por múltiplas cúpulas de ar, semelhantes a que Charlie usara para mover a fogueira.

Mas não foi o suficiente. Os ursos se dispuseram à frente de Charlie como uma barreira viva, impedindo o rapaz de visualizar o Emissário. A terra estremeceu novamente e, como se não fosse o suficiente para Charlie lidar com doze ursos crescidos, outros nove brotaram do chão, maiores e ainda mais furiosos. Charlie não esperou uma explicação por parte do seu suposto amigo, apenas atirou as pedras contra a grande barreira. O ar impulsionou inúmeros fragmentos de rocha, atingindo os ursos e, a cada impacto, uma onda de poeira brotava dos corpos dos animais, que vacilavam, alguns caiam, outros tinham seus braços arrancados. Um urso teve seu maxilar desintegrado pela chuva horizontal de pedras.

A fumaça de poeira subiu, formando uma névoa, embora não fosse o suficiente para impedir a visão de Charlie. Mas muitos ainda estavam de pé. As placas de metal e os elmos que vestiam os ursos estavam caídos no chão, distribuindo a luz do novelo prateado em todas as direções. E Charlie não tinha ideia de como fazer aquilo terminar.

            A terra, para a irritação e desespero de Charlie, estremeceu mais uma vez. Mas, diferente de antes, não foram apenas doze, ou nove. Charlie não conseguiu contar, mas viu muitas cabeças de ursos nascerem de debaixo da areia. Seus corpos animalescos ganharam proporções ainda maiores e, como se não bastasse, todos estavam munidos com pedras que, o rapaz bem sabia, seriam usadas como munição.

            - Droga, Ray! – bradou Charlie, caminhando para trás. Quando sentiu a água molhando seus pés, percebeu que já estava à margem, enquanto as espumas brancas ensopavam seu tênis – Eu não posso vencer tudo isso, Ray! Se isso é um treinamento, eu quero que pare! Chega, ouviu bem?

            Houve um período de silêncio. Período curto em que os ursos permaneceram imóveis, Ray permaneceu imóvel, até mesmo Charlie manteve-se na mesma posição, estático. Os músculos de seus braços retesaram, fechando o punho e pronto para lutar pela sobrevivência, se fosse necessário, mas não sabia se o seu aprendizado até ali poderia tirá-lo com segurança daquela ilha.

            Sem que o rapaz esperasse, um urso, entre o bando, adiantou-se dando passos decididos e, de certa forma, bastante racionais. Os olhos do animal focaram o rapaz com certa urgência.

            - Você não está aqui para me vencer – falou o urso e, para espanto de Charlie, a voz era de Ray – você está aqui para aprender a usar seus poderes. Escolha o que vai ser, nanico. Como eu disse, vou atacar com tudo.

            O urso se afastou e, novamente, o bando se alinhou. Suas patas ergueram as pedras prontas para disparar. Charlie não tinha certeza se conseguiria repelir um ataque tão violento como o que estava por vir. Ele deu mais dois passos para trás, permitindo que os seus pés fossem ainda mais engolidos pela água.

            Charlie, enfim, percebeu. Não era uma ideia, ou um plano a caminho. Era uma reflexão que, como um relâmpago, atingia sua mente. Lembrou-se das palavras de Barr a respeito dos elementos que ainda precisavam ser dominados. Água e terra. Não sabia como faria isso e, desde aquele momento, Charlie não tivera tempo de descobrir. Mas ali, com as ondas quebrando em seus calcanhares e ensopando a areia a sua volta. Ele percebeu.

            “A água é ainda mais complexa, pois representa a flexibilidade, a nossa capacidade de nos adaptarmos às mais diferentes situações”, Charlie se lembrou das palavras do Emissário momentos antes de toda a confusão. “A terra representa a persistência, nossa estabilidade diante de uma adversidade”. As palavras do treinador ecoaram dentro da sua cabeça, projetaram-se em todos os cantos do seu crânio, invadiram os mais sombrios corredores de sua Inspiração.

Ambos os elementos giram em torno da razão, o momento certo entre permanecer o mesmo, ou mudar. Ser o mesmo é ser rocha. Mudar é ser água que toma a forma de um novo frasco.

Então Charlie percebeu o que precisava ser feito.

Aquele era Ray, o homem que se mostrara amigo e generoso, o Emissário mais divertido que havia conhecido desde o dia em que colocara os pés no Literadouro. Mas naquele instante, diante da situação, as coisas eram diferentes, muito diferentes. Charlie não poderia ser pedra, não poderia ser o mesmo com Barr, ou seria mel nas mãos daqueles ursos. O frasco, agora, era a fúria de Ray que vinha com tudo contra Charlie. O rapaz precisaria se moldar a esse frasco se quisesse vencer. Agora ele era água. Era água.

Faça sua escolha.

            Mais tarde Charlie não poderia saber explicar a sensação. Apenas que, subitamente, como se tudo em sua mente fosse uma luz que iluminava a própria razão, seus pensamentos focalizaram a textura macia e instável das ondas de água salgada que batiam suavemente em seus pés. Ainda que houvesse fúria a sua frente, um exército de ursos graúdos, o rapaz ainda sentia a calmaria do mar noturno, e aquela sensação resumiu toda a sua existência.

            Seu coração acalmou, as batidas desaceleraram, o suor se extinguiu. Em resposta à guerra imposta por Barr, seu corpo respondera, moldando-se em calma, pura e simples.

            Uma grande onda projetou-se logo atrás de Charlie. Imensa, súbita, sem aviso. Ela se lançou contra a ilha. E tudo foi arrastado pelas águas convocadas pelo Inspirado, Charlie Logan.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!