Inspirados - o Andarilho do Tempo escrita por Pedro_Almada


Capítulo 21
O Temor




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            - Foi a melhor sensação de todas! – exclamou Charlie, eufórico.

            Ele estava dentro de uma banheira de bambus, na cabana de Tharsos. Seu corpo estava submerso em um líquido viscoso e opaco, como lama, sua perna estava imobilizada por duas placas de metal aquecidas. Apenas sua cabeça era visível, mas era o suficiente para notar a satisfação inexplicável de Charlie. Ele estava satisfeito, especialmente, por não estar desacordado depois de uma experiência com seus poderes.

            - Esse garoto não sabe o que está fazendo! – bradou Ernesto para o tio – ele vai se matar antes que domine os outros elementos!

            - Esse imbecil quebrou mais ossos do que todos nós juntos! – indignou-se Tharsos, cuspindo enquanto falava – Ele vai acabar com meu estoque de ervas curativas! Se ele quebrar um dedinho que seja, vou matá-lo, e a você também, Munphus!  

            Todos estavam em volta da banheira. Alguns olhavam com expressões preocupadas, outros com certa severidade. As irmãs emissárias, Sorah e Fiorah, e o jovem Billy Blaine não conseguiam segurar o riso ante a agitação de Charlie, que parecia mais uma criança na Disney.

            - De repente, eu e o dragão... Nós éramos um! Eu senti uma ligação tão forte!

            - Isso foi perigoso e irresponsável, Charlie – queixou-se Munphus, exibindo sua velha expressão de irritação, há muito não vista impressa em seu rosto – Você tem se machucado mais do que progredindo. Não posso assumir essa responsabilidade se você não cooperar.

            - Tio, tecnicamente, ele foi, hã, muito bem – Helena ponderou – Ele manipulou o ar. Tudo bem que não foi a coisa mais bonita de se ver, mas ele usou um pouco da razão que havia sobrado nessa cabeça dura para usar o elemento ar.

            Franz Mormmon se aproximou da banheira, encarando Charlie com uma mescla de orgulho e repreensão.

            - Você fez como eu te ensinei?

            Charlie assentiu.

            - Era tudo borrão, para onde quer que eu olhasse... Não foi difícil – Charlie exibiu um meio sorriso.

            - Seu mané, você poderia ter morrido – Andrew aproximou-se, dando um tapa na nuca do irmão – você passa mais tempo nessa banheira do que treinando.

            Charlie fitou o caçula, de repente, com um olhar de preocupação. A Tuoreta no pulso disforme do irmão o fez se lembrar de sua responsabilidade como Inspirado. Não podia deixar que as sombras continuassem com aquelas abduções, os ataques se tornaram freqüentes e, enquanto os Emissários tentavam cumprir suas funções, Charlie estava agindo irresponsavelmente, brincando com a própria vida.

            - Sinto muito... – ele falou, enfim, sentindo o peso de suas atitudes na consciência – Mas é que... Esse mundo é incrível, tem tanto a se aprender. É bárbaro! De repente, havia algo dentro de mim dizendo que eu era capaz... Não sei o que dizer, a não ser que sinto muito... Mas não me arrependo do que fiz.

            Charlie vislumbrou o sorriso quase paterno de Ray Barr, o Emissário com porte no estilo Rambo. Então Charlie se deu conta. Nunca tivera contato com nenhum deles, não havia nenhuma ligação e, no entanto, estavam ali para ajudar. Nenhum dos Emissários tinham o compromisso ou obrigação em auxiliar Charlie nessa empreitada, nenhum deles precisava estar ali para apoiar e orientar no treinamento. Mas estavam mesmo assim. O garoto decidiu, mentalmente, que seria mais cuidadoso daquele momento em diante.

            - É melhor ficar bom logo, rapaz – falou Ray. Sua voz era firme, ponderada. Era tão confiante que enchia a sala de uma atmosfera segura e inquebrável – Eu serei seu próximo professor. Vamos nos divertir um bocado.

            Ray exibiu um sorriso repleto de dentes brancos.

            Charlie assentiu, tranqüilizado. Barr parecia um pouco mais amigável do que a maioria. Talvez pudesse ter um pouco de sorte em seu próximo treinamento.

            Por fim, decidiram deixar Charlie descansado. Todos os Emissários voaram rumo ao Central Park, onde outra aparição havia surgido, enquanto Tharsos, Andrew e Roxanne permaneceram na sala, aguardando a recuperação do Inspirado. Sozinho, Charlie pôde pensar sobre aquele dia. Ele se viu envolvido pela culpa, mas havia um traço indestrutível de prazer, uma satisfação imensa em ter descoberto aquela habilidade.

**********************************************************************

            - Munphus não conhecia essa habilidade acerca dos Inspirados – falou Tharsos, servindo os irmãos Logan de um pouco de chá e queijo defumado – A verdade é que não temos o hábito de treinar sua espécie.

            Roxanne ouvia silenciosamente, deu uma boa sorvida no chá e serviu-se de queijo. Charlie, no entanto, não conseguia colocar nada goela abaixo. Estava enjoado. “É o efeito do banho revigorante”, avisou Tharsos com um sorriso de satisfação no estampado no rosto redondo.

            - Então vocês não sabem sobre essa habilidade... Se conectar com as fábulas – perguntou Charlie.

            - Munphus possui apenas suspeitas. Ele disse que isso pode acontecer porque aquele dragão ainda não teve um desfecho. Mas, no instante em que for enviado ao Meio-termo (ou Vazio, caso seu inventor abandone a história), você perde a conexão com ele. Quando as fábulas ganham sua resolução em um dos mundos, elas se tornam existências independentes, como eu ou você. Daí, não há mais como controlar. Mas cuidado, rapaz. Isso tem uma contra-indicação. Munphus suspeita que, usando essa ligação ou sei lá como você chama isso, você pode desequilibrar os pontos de sua Inspiração distribuídos em seu corpo. Isso pode dificultar o seu treinamento. Evite usar o seu talento de domador de fábulas durante esse período, se é que, realmente, você é capaz de fazer isso. Indicações do próprio Munphus.

            - Acho que aprendi a lição – comentou Charlie. De repente, percebeu a presença de Roxanne – Hei, você começou o seu treinamento.

            A garota fez muxoxo, e Andrew segurou o riso.

            - Ela não tem ideia do que fazer – riu o irmão caçula – Pyrah cobriu a garota com fogo, e ela começou a gritar feito louca.

            - Eu estava nervosa! – queixou-se ela – todos estavam me olhando!

            - Mas ela conseguiu fazer um, hã... – Tharsos fez um gesto exagerado com as mãos pequenas e ásperas. Por fim, bufou – que diabos! Essa menina é tão ruim quanto você! Se não pior!

            Charlie não pôde deixar de rir, satisfeito.

            - Hey, não se empolgue demais, cabeçudo! Ela não tentou nos matar com aquelas sombras do Vazio! – Tharsos arrancou, da forma mais azeda, o sorriso de Charlie.

            Estavam prontos para uma discussão fulminante, quando Tharsos se deixou levar por um rápido pensamento. Foi o suficiente para que Charlie pudesse enxergar a ruga de preocupação na testa do leprechaun.

            - Sr. Tharsos, o que houve? – o rapaz se prontificou em perguntar.

            O baixinho sacudiu os braços, despertando do pensamento.

            - Não há nada, moleque. Agora coma, precisa estar forte quando decidir quebrar outra coisa. Não rompe nenhum tendão, ok? É muito difícil consertar.

            Charlie assentiu, mas sabia que havia algo. Deixou passar, por hora. Terminaram o lanche e, depois disso, Roxanne se levantou e foi para o jardim. Era compreensível, a nova Inspirada não se saíra tão bem nos treinamentos, estava profundamente corrompida pelos pensamentos que atavam os nós. Munphus estava suando um bocado.

            O rapaz aproveitou a deixa de Andrew e se ofereceu em ajudar o velho Tharsos a limpar os talheres.

            - Não se aborreça com isso, moleque – disse o leprechaun – eu faço isso a minha vida inteira.

            - Não precisa fazer sozinho – Charlie sorriu, amigável.

            Por um segundo foi possível vislumbrar as maçãs do rosto de Tharsos ficarem rosadas, mas o homenzinho deu as costas ao garoto, ocultando o que parecia ser uma amostra de gratidão.

            Charlie pegou os copos da mesa e colocou-os sobre a pia de pedra, onde desembocava um pequeno cano de bambu que cuspia água salgada todo o tempo.

            - Sr. Tharsos... – Charlie murmurou, enquanto ensaboava sua caneca com um sabonete gorduroso – por um momento... O senhor ficou preocupado... Qual é o problema?

            - Preocupe-se com o seu treino, rapaz. Deixe que os Emissários cuidem do resto.

            - Não posso. – falou Charlie, decidido – o senhor ficou preocupado quando mencionou o que eu... Havia feito, a respeito das sombras. O que é tão preocupante?

            Tharsos ficou mudo por um minuto, pensativo. Não que fosse proibido falar, mas, para o velho leprechaun, falar demais dava azar.

            - Bem... Você sabe que, quando alguém realiza a “Troca Equivalente”, algo sai do Vazio e, em troca, outra coisa entra.

            Charlie confirmou com um aceno de cabeça.

            - Pois bem... Acontece que, no último mês, as aparições se tornaram freqüentes. Aparições cada vez maiores. É estranho... É como se... Como se não houvesse mais a “troca”.

            Charlie fitou Tharsos, compreendendo sua preocupação. No momento, ele sentia o mesmo. A troca equivalente era o que mantinha o limite nessas idas e vindas de um mundo ao outro.

            - Não há nada sendo trocado – falou Tharsos, pesaroso – Simplesmente... As coisas estão entrando aqui... Por exemplo, semana passada Ray e Billy enfrentaram uma enguia gigante no Nilo. Ela devia ter, o quê, cem metros? É estranho, algo tão grande e forte necessitaria de uma troca considerável. Mas não há registro de nenhum sumiço notável...

            - Espera um minuto! Quer dizer, então, que aquelas aparições vieram sob nenhuma condição? Simplesmente... Vieram?

            - São suspeitas, mas, sim... É o que Munphus acredita.

            - O quão ruim é isso? – Charlie arriscou a pergunta.

            Tharsos encarou o garoto e, por fim, olhou pela janela sobre a pia, admirando o céu noturno.

            - O suficiente para se empenhar mais em seu treinamento, e tentar não se matar. Aproveite e dê mais apoio à outra Inspirada. Isso está ficando perigoso, rapaz...

            Charlie assentiu, mas não havia confiança dessa vez. Durante o tempo em que esteve treinando no Literadouro, Munphus ensinara muito sobre o Meio-Termo e o Vazio. Mas uma das coisas que o bibliotecário parecia prezar mais era a “Troca Equivalente”. Era algo difícil de ser feito, pois, normalmente, quem errava, era tragado pela troca. Não existiam muitos corajosos para tal feito e, no entanto, estava acontecendo frequentemente, de forma exagerada. O quão ruim poderia ser o Despertar do Vazio?, era o que ele se perguntou.

***

            Charlie deixou os outros na cabana, ganhando o jardim da cabana para si. Olhou para o céu, ao longe, acima da grande árvore, onde mergulhara, literalmente, em uma aventura empolgante, galopando os ares sobre um dragão. O rapaz viu, bem distante, um risco como um relâmpago silencioso cortar o céu, era o dragão, voando pacificamente, aguardando sua resolução.

            Por um momento as dúvidas sobrevieram, e ele se perguntava se seria justo encerrar tamanha beleza e ousadia como aquele dragão em um lugar triste como o Vazio. Mas logo perdeu o fio dos pensamentos quando ouviu um ruído logo atrás dele. Ao se virar, encarou uma enorme silhueta.

            - Acho que é a minha vez, não é?

            A voz pertencia a Ray Barr, o Emissário estilo Rambo. Charlie assentiu, respeitoso.

            - Afinal, eles não precisavam de mim no Central Park – informou Ray – ao que parece, Munphus é bem mais habilidoso com seu Corsario do que eu pensei... Sabe, nunca mais irei olhar um besouro da mesma forma depois de hoje.

            - Ah, claro – Charlie foi pego de surpresa, mas se mostrou prontamente disposto a lidar com o próximo treinamento – O Sr. Munphus é mesmo um Emissário... Um Emissário Incrível – surpreendentemente, Charlie se pegou elogiando o bibliotecário, mas não se importou. Pelo contrário, aquilo lhe pareceu certo – Bem... Quando o senhor quiser.

            Ray deu uma risada que fez Charlie imaginar um bêbado barrigudo com a voz rouca de tanto fumar. Cômica, mas curiosamente amigável.

            - Não precisamos de tanta formalidade, não gosto de tratamentos como “senhor”, majestade... Pode me chamar de Ray, nanico.

            Charlie sorriu, mais para si mesmo do que para o seu treinador. Qualquer um a um raio de um milhão de quilômetros poderia ser chamado de nanico por Ray sem parecer fora de contexto.

            - Não podemos demorar, logo irá escurecer. – refletiu Ray, encarnado o sol, de onde se podia ver alguns dos Imperadores deixando o lugar.

            Charlie fitou o sol, agora ligeiramente menor. Ficou surpreso em saber que, naquele mesmo dia estivera com o dragão alvo. Tudo estava acontecendo de forma rápida e, em alguns momentos ele temia não ser capaz de acompanhar o ritmo exigido pelas circunstâncias. Mas deixou esses pensamentos negativos de lado, concentrando-se em sua responsabilidade e nos treinamentos que estavam por vir.

            Ray caminhou pela ilha, em direção ao velho barco de velas remendadas do leprechaun. Charlie, ainda ao encalço do Emissário, ficou se perguntando se iriam velejar e, se fosse esse o caso, duvidou que Tharsos estivesse plenamente de acordou com a ideia de emprestar seu pequeno barco pesqueiro.

            - E tem mais – Ray saltou sobre a borda, pousando sobre a proa, provocando um balanço suave da embarcação – se for bem-sucedido, Munphus acredita que não precisará de treinamento depois de mim.

            Charlie parou por um segundo, encarando Barr com dúvida. Escutara direito? Sem mais treinamentos? Sem dragões, sombras e um velho maluco atirando laranjas? Isso seria bom demais se fosse tudo verdade. Torceu para que assim fosse.

            - Eu não sei se estou tão bom assim, Ray – comentou Charlie, e percebeu como era fácil tratar Ray Barr simplesmente como Ray. A coisa do “senhor” não combinava com ele.

            - Sabe, Charlie? Cada um funciona de um jeito. É assim em qualquer aspecto da vida. Você está se saindo bem nos treinamentos, e se Munphus diz que é possível, então eu sugiro que acredite no velho. Melhor. Sugiro que acredite em você mesmo.

            Charlie assentiu, divertido.

            - Vamos, existe uma ilha aqui perto. – informou Ray – será um bom lugar para o nosso treinamento.

            - Não vamos de Garza dessa vez? – perguntou Charlie, sentando-se ao lado do Emissário.

            Ray deu uma risada espontânea, sem nenhum pingo de sarcasmo. O homem era esplêndido em sua bondade, com um jeito maternal de falar e se preocupar com o estado do jovem Inspirado. Barr era assim com qualquer um, não media esforços para ser gentil.

            - Não podemos abusar dos favores das Garzas – informou Ray – elas são graciosas, exatamente é o que parecem. Mas não se engane, rapaz. Elas não gostam de carregar ninguém sobre suas costas. Elas podem ser bastante temperamentais.

            - Uma Garza, Temperamental? – Charlie achou improvável. Mas havia algo que deveria duvidar naquele mundo? Não, com certeza não.

            O Barco ganhou as águas escuras. Charlie não conseguia desprender os olhos do pequeno sol, agora nitidamente menor. Vários feixes de luz em forma de cometas se espalhavam pelo céu, como se o sol se desmanchasse em bolas de fogo. Os Imperadores estavam dando espaço à noite do Literadouro. O rapaz ficou se perguntando se tudo aquilo era um simples intermédio entre o real e o Meio-Termo, como deveria ser o verdadeiro mundo das fábulas, o Meio-Termo onde todas as personagens têm sua resolução? Devia ser um lugar incrível, pensou ele.

            Ray notou a distração do rapaz, mas não se importou, apenas riu para o jovem e, da mesma forma, contemplou o sol.

            - Sei que o leprechaun te disse – falou Ray, então – sei que ele te falou sobre a “troca”.

            Charlie virou-se para o homem, desprendendo-se de seus pensamentos.

            - Sim. Ele me disse o que houve.

            - Sabe... Só existe um jeito de burlar a troca e, ainda assim, não é nada fácil. – Ray deu de ombros – claro, são apenas especulações.

            - Então é possível? – Charlie perguntou, aflito – é possível burlar a troca equivalente?

            Ray assentiu, pesaroso, mas não desprendeu o olhar do pequeno sol.

            - Dizem que o responsável pela troca é Zoakros, o terceiro do Vazio... Dizem mais... Ouvi dizer que é possível enganar Zoakros. Mas não sabem, exatamente, como fazê-lo.

            - Enganar um guardião do Vazio... – Charlie lembrou-se do dia em que Munphus contara a história dos três guardiões, e suas descrições assustadoras – enganar algo como aquilo... Quem o faz deve ser ainda pior.

            - Ou mais astuto – falou Ray, com um leve sorriso – mas não se preocupe, rapaz. Não é algo que você deva se preocupar. Estou te falando isso para que suas dúvidas não interrompam seu treinamento. Agora que sabe um pouco mais, sugiro que se esforce mais... Ah, e não tente se matar, ok?

            Charlie riu, confirmando com um aceno de cabeça. Ray deu uma piscadela amigável, cruzou os braços e, encostando-se no pequeno mastro da vela, fechou os olhos. Charlie fitou o horizonte, ansioso para chegar à ilha. Ficou feliz em saber que, bem ali, ao seu lado, havia mais um novo amigo. Ray Barr, afinal, era boa gente.


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