Inspirados - o Andarilho do Tempo escrita por Pedro_Almada


Capítulo 20
Encantador de Fábulas


Notas iniciais do capítulo

Faz tempo...
Nem sei mais qual foi a última vez que postei um capítulo de Inspirados. Mas não foi por mal, o ritmo aqui estava caótico, difícil de lidar mesmo.
Em todo o caso, ainda amo essa história e decidi postar alguns capítulso. Aos poucos, sem muita pressa... Será que alguém ainda vai ler Inspirados? Alguém? Qualquer um?
espero que sim xD
bem, pessoal! Perdoem a demora, o suposto abandono á história. Para aqueles que ainda querem lê-la, boa leitura!
Ah, comentem xD



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Encantador de Fábulas

            - Uma abordagem ousada, mas ainda assim válida. Eu só gostaria que esses treinamentos não colocassem a vida do rapaz em risco.

            Charlie ouviu a voz de Munphus ao longe, como se tivessem em dois extremos de um túnel que, por sinal, era escuro e abafado. O rapaz não podia ver nada, apenas ouvir vagamente. Sua cabeça latejava.

            - Eu terei que passar por isso? – Charlie ouviu a voz de Roxanne, ao fundo. Apesar do som abafado, o tom de desespero em sua voz era nítido, mas isso não despertava compaixão alguma. Se Charlie pudesse expressar alguma reação, estaria rindo, triunfante.

            - Não seja fresca, garota – definitivamente, era Tharsos – uns arranhões aqui e outros ali não lhe farão mal.

            - Arranhões! – a voz de Roxanne expressava sua perplexidade, Charlie desejou abrir os olhos e encarar a expressão lívida da garota – o braço dele estava às avessas quanto o trouxeram para cá!

            - Meu irmão não precisa de mais desses treinamentos! – era a voz de Andrew, que parecia ser a mais próxima – ele chegou aqui completamente moído!

            - Concordo com o Andrew – foi a vez de Helena falar – é arriscado demais.

            - O garoto quem quis – falou Tharsos – não há o que discutir.

           - Ele está cego! – Helena vociferou – cego pela perspectiva de ser um Inspirado, com poderes e tudo mais! Ele não está em condições de decidir isso! Tio, o senhor não pode deixar isso acontecer outra vez! Ele poderia ter...

Charlie estremeceu. Queria gritar, saltar, ou mesmo enxergar. Quando sentiu a dor em seu braço, percebeu que a sua queda da grande árvore poderia ter sido algo bem preocupante. Com certeza não fora uma queda suave. Mas lembrava-se, com satisfação de seu sucesso no treinamento, quando conseguiu impelir o ar a investir contra as frutas flutuantes.

            Seus olhos tremiam ante ao esforço de deslocar as pálpebras, mas ainda assim era uma energia gasta em vão. Não demorou a adormecer mais uma vez.

            Quando acordou, passavam das dez horas. Andrew estava ao lado de Charlie quando percebeu que os olhos do convalescente estavam abertos. O caçula havia contado ao irmão que Tharsos usara algumas frutas exóticas defumadas e folhas de todos os tipos de chás, além de banhos em uma água pastosa e extremamente gelada. Charlie estava inteiro, apenas com uma leve dor no antebraço.

            - Precisava ter visto o seu braço, cara – falou Andrew – eu quase fiquei feliz pelo meu braço semi-vivo... A sua mão, cara.... Um regaço de dar dó.

            - Mamãe ligou? – foi a primeira pergunta de Charlie.

            - O velho, ops... O Sr. Munphus ligou pra ela, disse que estávamos fazendo alguma coisa interessante, e que nos levaria depois das onze.

            - Não se preocupe com isso agora – Charlie ouviu uma voz familiar vindo acima de sua cabeça. Ele se inclinou e viu Helena com um sorriso de alívio – estávamos preocupados.

            - Estou bem – Charlie retribuiu com um sorriso de agradecimento.  

            - É melhor se apressarem – foi Munphus quem falou – não quero fazer com que a Sra. Logan duvide outra vez de minha integridade com meus compromissos.

            Levou algum tempo para que Charlie se sentisse disposto a se levantar. Sentiu seu pulso latejando, mas Tharsos avisou que era um efeito colateral, devido ao veneno de Hydra que ainda circulava em sua corrente sanguínea. Segundo o leprechaun, a toxina de uma serpente do mar tem duas funções: matar uma pessoa saudável ou curar uma pessoa ferida.

            Antes de saírem da cabana, Charlie foi detido pelo homem atarracado de cajado vulgar. Charlie estreitou os olhos, incomodado. Não gostava de Franz Mormmon como havia pensado.

            - Eu gostaria de parabenizá-lo pelo esforço – falou Franz, embora seu tom de voz fosse ilegível.

            - Esforço? – Charlie falou, exasperado – eu consegui.

            - Na verdade, não – Franz deu de ombros, dissimulando pesar – eu precisei ajudar um bocado. Sua concentração está um caos, meu rapaz. Precisei usar laranjas, han, encantadas.

            Charlie arqueou uma sobrancelha, cético.

            - Pyrah me ajudou – falou o Emissário.

            Charlie buscou a pirocinética com os olhos, mas não a encontrou.

            - Ela tem um... Talento para seduzir – avisou Franz – uma de suas vantagens em ser híbrida é que Pyrah pode tornar o que quiser mais atrativo. Pedi a ela que tornasse aquelas laranjas tão envolventes e suculentas aos seus olhos, o suficiente para que sua mente se focasse apenas nelas.

            - Isso não faz sentido – queixou-se o rapaz – em quê isso teria me ajudado?

            - Isso te ajudou – Franz corrigiu – você ficou focado na imagem disforme das laranjas, uma vez que seus olhos não puderam acompanhar o movimento delas, visualizando apenas borrões. Além disso, concedeu a você um desejo incontrolável de tê-las em sua posse, um desejo que dominou os seus sentidos...

            - “O sentimento único associado à imagem abstrata” – Charlie concluiu, frustrado. Sentia-se usado, de alguma forma.

            - Sinto muito tê-lo deixado lá por tanto tempo. Mas foi preciso. Se não conseguisse liberar o nó, eu precisaria de você exausto o suficiente para que o talento de Pyrah fosse efetivo. Você já sabe, as habilidades dela são inofensivas... A menos, é claro, que sua mente esteja exausta demais para lutar contra a manipulação.

            Aquilo fez todo o sentido. Charlie não poderia explicar seu súbito desejo em ter as suculentas laranjas, ainda que fome não fosse o seu principal foco motivador no momento em que estava sobre a árvore. De fato, era um talento bastante perspicaz.

            - Precisa voltar amanhã – avisou Franz – dessa vez, precisa fazer por si só. Sabemos que você é capaz, mas precisa liberar o nó, como fez com o elemento fogo.

            O rapaz assentiu e, dando às costas ao Emissário, percebeu que simpatia por aquele homem tinha, afinal, se esvaído por completo.

            ************************************************************** 

            As semanas se passaram. Três exatas semanas. Charlie inventara a desculpa de estar trabalhando com Munphus depois das aulas. E esse foi o seu ritmo no decorrer dos dias. Para Lauren Logan era uma boa notícia ver os dois filhos tão comprometidos em um emprego, especialmente em uma biblioteca. Mal sabia ela que a profissão tinha um risco um pouco maior do que limpar estantes empoeiradas ou fazer inventário de livros.  

            Acordava cedo, se dedicava aos estudos, tentando esquecer completamente do Meio-Termo e tudo relacionado, evitava usar o seu armário, mantendo-o sempre trancado com o cadeado de prata, e, após o término das aulas, corria para a Biblioteca.

            Estavam preocupados com o rumo da situação. O braço de Andrew tomara a forma e dimensão de um braço normal, mas seu aspecto parecia menos humano a cada dia. Como se, a cada instante, estivesse mais corroído. Ficou mais fácil escondê-lo com a jaqueta e uma luva da cor da pele. Quando alguém percebia, não perguntava, afinal, Andrew também não tivera muito tempo para fazer amigos.

            Os dois irmãos passavam dias com Munphus, em treinamento. Andrew também começou a conhecer a natureza de sua mão horrenda e, através de alguns paliativos conhecidos, era possível encerrar o poder desfabulador dentro do braço, de forma que nenhuma outra fábula pudesse ser afetada.

            - Sempre use essa pulseira – avisou Munphus, amarrando no pulso do garoto uma corrente feita com fios de palha e uma pequena pedra, parecida com magma – é uma Tuoreta. É um nome formal. Na verdade isso é uma pedra retirada dos rins de um ogro.

            Charlie e Andrew fizeram uma careta.

            - A Tuoreta neutraliza o que podemos chamar de “drenagem de essência” – avisou Munphus – semi-vivos se alimentam a partir da drenagem de fábulas, a essência criada a partir da Inspiração. Como você “alimentou” seu desfabulador apenas uma vez, ele está em estado de decomposição. A pedra vai impedir que o seu toque provoque qualquer dano às outras fábulas. Por hora, use-a. Estamos trabalhando em um jeito de resolver o seu problema.

            Andrew assentiu, nervoso. Era o que andavam prometendo há um bom tempo, mas não havia nenhuma garantia. A ideia de ter que amputar o braço começava a se solidificar, secretamente, em sua cabeça, mas decidiu não segredar tal pensamento ao irmão mais velho. Sabia muito bem como Charlie iria lidar com isso. Sentir-se-ia culpado.

Charlie passou a primeira semana com o difícil treinamento de Franz Mormmon. Com o tempo Charlie conseguiu manipular os pontos específicos de seu cérebro relacionados ao fogo e ar. No fim daquela semana, ele tinha certeza que não morreria por combustão instantânea.

            - Boa, Charlie – Helena aproximou-se do amigo – um ótimo trabalho.

            O garoto estava sentado em uma pedra, próximo ao mar, atirando outras minúsculas pedras que quicavam sobre a superfície azul. Ao longe era possível ver a ilha habitada pelo leprechaun mal-humorado.

            - Franz tem me ajudado... – Charlie falou, dando espaço para que a amiga pudesse sentar-se ao seu lado – mas o cara é tão confuso. Ele... Ele é instável, entende?

            - Ah, nem me diga – Helena suspirou, pegando uma pedrinha da mão do rapaz, atirando-a contra o mar – meu tio nunca gostou muito dele. Não que seja um cara ruim... Mas, você sabe, meu tio gosta de livros, gosta de decifrar e encontrar respostas. Quando aparece alguém pouco, hã, legível... Ele fica meio inquieto. Um dos motivos por não gostar de Pyrah, também.

            - Ah, certo...

            Os dois ficaram em silêncio. O comentário de Helena, involuntariamente, arremetera os dois a um assunto que discutiram dias atrás. A ruiva havia se mostrado um tanto quanto enciumada diante da presença de Pyrah. Charlie não sabia se deveria tocar no assunto, ou se ignorava o impulso de ir adiante com aquela conversa.

            Antes que pudesse decidir, num sobressalto Helena agarrou o braço do rapaz e puxou-o, conduzindo-o pelo gramado.

            - Quero que veja uma coisa! Venha!

            Era óbvio que a atitude de Helena era uma tentativa de afastar um pensamento indiscreto invocado sem seu consentimento. Ela conduziu Charlie até as raízes da grande árvore.

            - Você já viu um nascimento? – perguntou ela, levemente excitada.

            Charlie fitou a amiga, a primeira vista, confuso. Mas logo compreendeu.

            - Seu tio mencionou uma vez, apenas.

            Helena sorriu. A garota tocou o próprio cabelo cor de rubi. Como se por mágica, cada fio se iluminou de um filete de luz avermelhado bem intenso. Sua longa cabeleira começou a se desfazer de forma inusitada.

            Das pontas dos cabelos, borboletas escarlates começaram a brotar, batendo suas asinhas frenéticas e lançando-se em vôos bem elaborados. Acima de suas cabeças um enxame de borboletas se preparava.

            - Segura minha mão. – ela pediu.

            Charlie obedeceu, sem saber ao certo o que viria a seguir.

            As borboletas se aglomeraram a volta dos dois, formando degraus de uma escada em espiral, subindo a perder de vista entre as grandes flores e os galhos repletos de folhas e livros.

            Helena conduziu o rapaz, passo a passo. Na medida em que subiam, as borboletas do degrau anterior se deslocavam e formavam outro acima, em uma dança bem sincronizada. As asas farfalhavam com um retinir metálico, como o ruído de talheres se chocando, porém mais suave e melódico. Charlie se deixou levar pelo momento, seguindo os passos da amiga, rumo aos galhos superiores.

            - Isso é incrível – falou Charlie, admirado.

            - Você ainda não viu nada sobre a Inspiração, Charlie... Quando estiver pronto, fará muito mais do que isso. Acredite, você será um herói.

            Charlie fez menção de dizer alguma coisa, mas foi rápido o suficiente para se calar. Sentiu um flerte tentando escapar pela garganta e, julgando seu talento nato em destruir qualquer clima, decidiu manter o silêncio. Não conseguia dizer nada que os aproximasse mais, mas assim também não iria estragar o momento.

            Em questão de minutos haviam alcançado um galho a cerca de cinqüenta metros de altura. Os dois se acomodaram sobre um galho retorcido, lado a lado, olhando para os outros ramos que se estendiam pelo céu, como se a grande árvore tentasse abraçar o mundo inteiro.

            - Eu nunca vou deixar de me admirar com esse mundo. – refletiu Charlie.

            - A vida sempre nos surpreende, hã? – Helena deu uma cotovelada amigável no braço de Charlie – Inspirado, quem diria?

            - Eu achei que estava fadado a escrever sozinho no meu quarto...

            - Ficou feliz em estar errado? – Helena perguntou, sorrindo.

            - Você nem faz ideia do quanto!

            - Veja, aquele galho, bem ali.

            Helena apontou em direção a um tronco vistoso, com pequenas frutas semelhantes a cereja, uma única flor branca e um casulo. Presa ao tronco pendia uma crisálida verde com pequenos espinhos que lembravam gotas de orvalho, translúcidos e cintilantes. O pequeno sol do Literadouro começava a se por, e, da minúscula bola dourada no céu era possível ver riscos de fogo, como meteoros, saindo de sua superfície.

            - Os Imperadores migram com o findar do dia – falou Helena – Quando está prestes a amanhecer, eles voltam, e cumprem o seu papel de sol. Mas o pôr-do-sol demora muito mais tempo do que o normal. Alguns Imperadores acabam preferindo ficar um pouco mais lá em cima.

            - Isso é incrível.

            - Deixa isso pra depois! Olha só a crisálida! Está saindo...

            Charlie focou completamente sua atenção no casulo. A distância não o deixava ter uma noção exata do tamanho da crisálida, mas, o que viria a seguir iria responder à essa dúvida.

            A casca verde rachou. Primeiro um pequeno filete. De dentro da crisálida escapou uma pequena luz prateada, iluminando o contorno do tronco, dando-lhe a impressão de estar vivo, serpenteando.

            As rachaduras aumentaram e, subitamente, ela se rompeu por completo. Foi uma das cenas mais belas que Charlie já vira. O casulo não ficou simplesmente preso, ou caiu. Ele se desmanchou em uma poeira reluzente, como areia do deserto, alva e refinada. De dentro da crisálida, um corpo delgado saiu.

            - Caramba! – ele exclamou – Um dragão!

            Helena assentiu, igualmente admirada.

            Um dragão de escamas tão brancas quanto à própria areia se libertou do casulo. Sua calda chicoteou o ar, as asas se abriram em desafio à brisa da tarde que começava a assoprar. Sobre o longo pescoço do animal havia uma pelagem prateada, como uma juba. As orelhas eram compridas e escamosas, seus olhos tinham uma enorme íris negra, e seu focinho comprido e fino dava aos dentes afiados uma aparência assustadora. Mas não havia nada naquela criatura que pudesse afastar o encanto provocado nos olhos dos dois amigos.

            - Isso é incrível! – falou Charlie – e ele é... Imenso!

            - Shhh... – Helena puxou o amigo pelo braço, conduzindo-o silenciosamente para trás de outro tronco, que subia até a imensidão do céu. Ela estava sorrindo – não fale muito alto, não sabemos o temperamento do dragão.

            - Como aquilo pode ser perigoso, Helena? – Charlie estava deslumbrado – eu tenho que ver mais de perto.

            - Não, ainda não. Precisamos ver o que...

            Tarde demais. Charlie estava extasiado de emoção. “Então é assim que todas as minhas idéias nascem! Incrível” foi o que ele pensou. O rapaz simplesmente ignorou os avisos alarmados de Helena, que ficava cada vez mais distante. Ele caminhou a passos largos, rumo à criatura recém-nascida.

            - Charlie! De novo não! Seu idiota...

            O dragão voou silenciosamente até a extremidade do tronco, repousando suas patas. Sua longa mandíbula se abriu em um bocejo muito humano e, com os olhos semicerrados, o animal lambeu o próprio focinho. Parecia entediado. Aquele acontecimento apenas serviu para Charlie se sentir ainda mais atraído e fascinado por aquela natureza que, por muito tempo, ficou escondida de seus olhos.

            Aproximou-se do ponto onde estava o dragão. Apertou o passo para evitar que fosse alcançado pela amiga, agora correndo em sua direção. Charlie saltou sobre um arbusto, agarrou em um ramo de frutas quando se desequilibrou e, por muito pouco, não caiu. As orelhas do dragão se movimentaram atentas, como se soubesse estar sendo observado.

            - Hei, chapa... – murmurou Charlie, sentindo o calor do corpo do animal cada vez mais perto – não se preocupe... Não vou te machucar... E mesmo que eu quisesse.

            E riu da própria piada.

            A cabeça do animal virou-se subitamente em direção a Charlie. O garoto ficou imóvel, cauteloso. O animal respirou fundo, encarando o rapaz com certa desconfiança. O dragão piscou duas vezes e voltou sua atenção ao horizonte.

            Era sua chance. Correu, sem pensar em nada. Apenas queria ver o dragão, ou mesmo tocá-lo, saber qual era a textura de algo tão gracioso e elegante. Estava, agora, a menos de dez metros de distância.

            Mais uma vez o dragão percebeu a aproximação, voltando sua cabeça contra o jovem que insistia em invadir seu espaço. O réptil mitológico virou seu corpo graúdo, ficando frente a frente com o jovem Inspirado. Os olhos verdes de Charlie fizeram contato com os negros do dragão e, de repente, uma conexão havia se formado entre eles.

            Helena aproximou-se, mas achou prudente não se aproximar de súbito do animal.

            - Charlie! – ela chiou em um sussurro furioso – volte aqui!

            - Shhh... – Charlie murmurou, mas sem tirar os olhos do animal – ele está... Me olhando.

            - Isso não é uma boa notícia! – sua voz saiu como um guincho abafado de um gato sendo atropelado.

            - Só mais um pouco...

            Charlie estendeu a mão. O dragão rugiu, parecia irritado, mas não o suficiente para desejar arrancar o braço do rapaz. Helena soltou um gritinho abafado, incapaz de reagir. Convocou suas borboletas, que pairaram a sua volta.

            - Não faça nada! – sibilou Charlie – veja, ele está... Está calmo. Veja.

            Charlie deu mais alguns passos, sempre mantendo o animal em seu foco, os olhares trocados como um diálogo mudo, mas tão intenso como mil palavras despejadas.

            - Isso garotão... Pronto, viu? Sou seu amig...

            VRUM!

            Num súbito movimento, o dragão saltou. O corpanzil de réptil se projetou sobre o rapaz e, num salto de puro reflexo, Charlie se jogou para o lado. Mas não foi rápido o suficiente. Sentiu a cauda monstruosa do animal acertar-lhe o estômago, arremessando para o alto. Charlie gemeu de agonia, incapaz de respirar. Mas não chegou a tocar o chão novamente. O dragão alçou vôo e, como passageiro, levou o rapaz, que pousou de forma nada suave nas costas duras como concreto do réptil albino. A asas chacoalharam o ar, repelindo as borboletas escarlate e, num impulso único, o dragão ganhou o céu. Charlie cravou os dedos entre as escamas protuberantes para se segurar, enquanto a força do vento tentava, a todo custo, arremessá-lo para fora de sua carona nada convencional.

            - CHARLIE! – Helena gritou, apavorada.

            Charlie teve apenas a chance de vislumbrar uma nuvem de borboletas voando furiosamente em sua direção e, entre os insetos cor de rubi, uma garota ruiva muito alarmada. Seria uma cena incrível, se ele não estivesse entre a vida e a morte sobre um dragão cujos dentes poderiam rasgá-lo como papel-toalha.

            - Você pode me impedir agora! – gritou Charlie, suspeitando que o pedido fosse um pouco tarde demais.

            O dragão mergulhou magistralmente, girando várias vezes, usando a calda como leme. Charlie escalou a montanha viva, cada vez mais perto do pescoço. O golpe na barriga ainda doía, mas não tinha muito tempo para chorar as dores. Não se quisesse viver.

            Nesse momento ele teve uma ideia, talvez não tão sábia. A primeira coisa que fez foi se equilibrar, meio desengonçado, sobre o lombo do dragão, o suficiente para manter as mãos livres por um tempo, ainda que pequeno. Contraindo os dedos simulando garras, aproximou as mãos do peito e, virando-se para trás, contra a direção do vôo, fez um impulso como se empurrasse uma parede invisível.

            Um tufão de ar brotou de seu corpo, a partir de pulsos elétricos que percorreram cada terminação nervosa. Era sua tentativa de manipular o elemento ar. O deslocamento de ar repentino arremessou Charlie em direção à cabeça do dragão, como uma turbina. Manipular o ar teria sido uma boa ideia, se essa fosse a sua melhor técnica. Ele concluiu que não era esse o caso quando pousou abruptamente sobre o pescoço do animal. Suas pernas estalaram e, Charlie não precisou refletir muito, seu fêmur fora deslocado com o impacto.

            Seu urro de dor foi abafado pela corrida do dragão, que parecia irritado com a presença de um carrapato tamanho família em suas costas. Charlie não podia se dar ao luxo de morrer, não de forma tão imprudente, depois de tudo o que passou.

            Sentindo que sua perna não valeria de nada nos próximos dias, Charlie começou a se arrastar pelo pescoço do réptil, em direção à sua grande cabeça de orelhas compridas.

            - Pare, agora! – berrou Charlie.

            Suas mãos agarraram firmemente as orelhas cobertas por escamas e, num último ato de desespero, Charlie as puxou, como se fossem rédeas. Isso só serviu para irritar o animal. As borboletas, ainda que fossem rápidas, não era o suficiente para alcançar o dragão. Os olhos de Charlie começaram a lacrimejar, um pouco por causa do vento, mas, acima de tudo, devido à dor na perna, cruciante.

            - Ok... – Charlie respirou fundo – Somos apenas eu e você, chapa.

            Charlie não conhecia muito de sua natureza. Até onde poderia chegar sendo um Inspirado. Ainda assim, havia tanto que não tinha descoberto! Não poderia perder tudo assim, sendo um grande idiota por não ouvir o sábio conselho de sua amiga. Desejando, como nunca, estar seguro, apertou as orelhas do animal como se fossem medalhões da sorte, ou uma alavanca para a salvação.

            - Pare, agora!

            Algo aconteceu. Sua voz não soou como costumava ser. Ainda que Charlie tivesse sentido suas pregas vocais vibrarem, a voz que saiu pela sua goela não era familiar. Era sibilante, áspera e tinha uma vibração incomum, ecoando e superando o próprio rugido do vento em suas orelhas. Simultaneamente à sua voz, algo dentro de Charlie, do âmago, brotou, estendendo-se como mãos invisíveis partindo do garoto e ligando-se em cada centímetro da grande extensão do corpo do réptil, como se, de repente, o tivesse à sua mercê, ligando-os por cabos de aço invisíveis. Talvez fosse loucura, mas no momento o rapaz sentiu que ele e o dragão eram um só.

            O dragão, respondendo à ordem, estendeu as asas, usando-as como planadores. A velocidade foi reduzida, a fúria do animal se dissolveu como névoa. Não havia na criatura nenhum traço hostil que, outrora, Charlie havia constatado. estava domado.

            - Desça! – Charlie ordenou em uma reação mecânica, ainda desacreditando do que estava fazendo.

            Mas o animal o convenceu. Como um cão adestrado, o dragão recolheu seu longo pescoço, inclinou-o para baixo e, num vôo sutil, mergulhou.

            Se era possível, ele não sabia. Mas, de uma forma muito estranha, tinha controlado cada movimento da criatura. Mais do que isso, tinham se conectado, uma experiência que Charlie jamais sentira em muito tempo.


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