Inspirados - o Andarilho do Tempo escrita por Pedro_Almada


Capítulo 19
Um treino à altura


Notas iniciais do capítulo

pois é, mais um capítulo demorado.
Se existe alguém ainda disposto a ler minha história, obrigado e prometo responder os reviews anteriores assim que possível. Espero que curtam a leitura e deixem sua opinião.
Mais uma vez, desculpem-me pela demora.

boa leitura xD



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Um treino à altura

            Charlie poderia ter questionado? É claro que, provavelmente, Munphus analisara essa possibilidade, Roxanne poderia querer tirar à prova tudo o que ele havia dito. Mas, no fim, outra pessoa iria se envolver. Era algo que ninguém queria, já havia envolvidos demais, e muitos problemas para serem resolvidos.  

            Roxanne estava dentro do elevador, olhando para o rapaz, curiosa.

            - Quer dizer que o seu armário na escola é um Literadouro?

            - Sim – murmurou Charlie – mas Ernesto, um... Uma pessoa, ele colocou o selo. Um cadeado de prata, como aquele que eu te dei.

            - Ah, aquilo. – Roxanne havia trancado o seu guarda-roupa com o objeto que lhe fora entregue.

            Atravessaram o hall, desceram as escadas e avistaram o Galaxie do outro lado da rua. Roxanne fez uma expressão de tédio ao ver o carro.

            - É aquela banheira?

            - Um belo exemplar – protestou Charlie. Logo em seguida riu de si mesmo, vendo que, tudo o que estava fazendo era defendendo o patrimônio de Munphus, alguém que, de repente, parecia ser um amigo, ou quase isso – vamos logo, Munphus precisa chutar o seu traseiro para que eu possa voltar ao meu treinamento.

            - Hey! Isso é coisa que se diga a uma garota?

            - Eu já disse. Nunca sei o que dizer a uma garota. – dessa vez, havia mais deboche do que frustração em seu tom de voz.

            Os dois atravessaram a rua, Munphus acabara de sair do carro, com um semblante tranqüilo. Aquilo lhe parecia previsível, como Charlie imaginava.

            - Acho que a Srta. O’Hare é o típico escritor curioso, não? - ele sorriu, embora se esforçasse para não parecer tão amigável – diga-me, jovem. Quantos livros você já leu?

            Ela parou, surpresa pela pergunta, mas pôs-se a pensar com seus botões.

            - Não faço ideia... Esse ano eu devo ter lido uns trinta... Minha banda tem me tomado muito tempo.

            Munphus afrouxou o sorriso, agindo de forma mais natural.

            - Devo presumir que é uma amante de livros – perguntou ele.

            - Com toda certeza – ela afirmou, arrogante.

            - Ótimo. Entre no meu carro.

            Ela não pensou duas vezes.

            - Hei, Sr. Munphus! O senhor tinha dito que... – Charlie foi interrompido.

            - Charlie. Quando eu pedi que viesse falar com ela, eu estava esperando a pior das alternativas: que ela aceitasse ficar longe disso. Mas, se de boa vontade, ela quis vir conosco, significa que não temos apenas um inimigo a menos, como um aliado a mais. Não acha isso justo?

            - E bastante lógico, também – afirmou Roxanne, abrindo a porta do passageiro da frente.

            - Hey, sou eu quem vai sentar aí!

            - Você pode sonhar – ela sorriu, triunfante.

            Munphus escondeu um riso, abafando-o entre os lábios contraídos. Charlie bufou, irritado.

            - Isso não é justo, e muito menos lógico.

            - Vamos, Charlie – o velho deu um tapinha amigável nas costas do rapaz – vamos voltar ao Literadouro, a garota quer saber sobre seus poderes.

            Andrew enfiou a cabeça pela fresta do vidro, confidenciando aquelas palavras apenas para o irmão.

            - Charlie... Com sorte o dragão polonês pode comer essa ordinária durante o treinamento.

            Roxanne virou-se para trás, encarando o passageiro que acabou passando por despercebido.

            - Ah, tem mais um. Você também é um Inspirado? – os olhos dela pousaram sobre as mãos de Andrew – Você não acha que a noite está um tanto quanto agradável para ficar de jaqueta de couro e luvas tão grossas? Céus, que gente doida...

            Ela se virou novamente, encarando as sobrancelhas pelo reflexo do retrovisor.

            - Vamos torcer para que o dragão não tenha uma indigestão, irmãozinho... – Charlie cochichou, esperançoso – vamos torcer.

            Charlie não quis admitir a princípio. Pela primeira vez se sentiu importante à sua maneira e, de uma forma meio estranha, era desagradável dividir esse posto, especialmente com alguém tão arrogante quanto Roxanne.

            No entanto ele sabia como era importante manter a mais nova Inspirada ao lado deles, assim evitaria mais uma aquisição ao grupo do Dr. Sanguinetti, ou fosse lá quem estivesse por trás do provável Despertar.

            Quando entraram na biblioteca Roxanne ficou levemente decepcionada. Achou que o lugar fosse mais excitante. Mas quando atravessaram a porta com o cadeado nada receptivo, ela ficou maravilhada.

            A grande árvore, as novidades que sobrevoavam suas cabeças, com cores e plumagens nunca vista antes. O vôo rasante de um Imperador, os cavalos com crinas de névoa que percorriam os campos, abaixo deles e, o mais fascinante: as crisálidas, onde os personagens esperavam sua vez, além das composições dos livros, tecidos tão miraculosamente confeccionados por insetos do tamanho de um homem. Charlie se deixou levar pela euforia também, nunca era demais ficar maravilhado diante de tamanha grandeza.

            - Esse lugar é incrível! – exclamou a garota, boquiaberta – Oh, o que é aquilo?

            - Uma Garza d’Uthopia – falou Charlie, veemente – é a nossa carona.

**********************************************************************

            A pequena casinha na ilha parecia bem mais movimentada. Com doze emissários, um garoto normal com mão Desfabuladora, um leprechaun e dois Inspirados, a pequena cabana parecia ainda menor.

            Roxanne, mesmo depois das apresentações, mantinha-se o mais perto da porta possível. Havia um pouco de hesitação em seus movimentos, mas não podiam culpá-la, seu mundo sempre foi um apartamento solitário com sua imaginação fértil. Conhecer pessoas, provavelmente, não era uma de suas habilidades. Para piorar, o anfitrião não era nenhum pouco gentil.

            Munphus já estava acompanhado dos outros Emissários em uma mesinha, discutindo sobre estratégias de luta, as alternâncias de vigília para garantir que nenhuma aparição fosse engolida pelas sombras, enquanto outra parcela iria compor o grupo de “perícia” (Munphus gostava de dar nomes às coisas, Charlie logo percebeu) para encontrar os verdadeiros responsáveis por todos aqueles ataques.

            Charlie, por outro lado, tinha uma outra tarefa: treinar. Mas, dessa vez, Munphus não seria seu professor.

            - Charlie – disse o velho, assim que todos se levantaram – tomamos algumas decisões... Primeiro preciso ter uma conversa com Roxanne.

            Ele olhou para a garota, que engoliu em seco.

            - Você... – continuou o bibliotecário falando com Charlie – vai continuar o seu treinamento. O Sr. Franz Mormmon.

            Charlie encarou o homem atarracado a poucos passos de distância, que fez uma leve reverência. O rapaz apenas assentiu.

            - Preciso esperar sua ordem, Razar? – perguntou o Sr. Mormmon.

            - De forma alguma – sorriu Munphus em resposta – pode raptar o garoto e ensiná-lo o que for preciso.

            - Ótimo – ele assentiu, inexpressivo – menino, venha comigo. Hoje você irá liberar seus nós mais profundos.

            Andrew não pôde deixar de soltar uma risada, imaginando o quão estranho tinha soado aquela frase.

            Charlie não se sentia a vontade com aquele homem. Era sério, de poucas palavras, Charlie nunca sabia o que era saudável dizer, ou que deveria evitar falar. Naquele momento, havia se esquecido do suposto ciúme de Helena ou da aparição desagradável de Roxanne. Estava focado em seu treinamento e no quão nocivo poderia ser o Sr. Franz Mormmon.

            - Aonde vamos? – arriscou Charlie, enquanto se segurava no pescoço da Garza.

            Mormmon estava a frente, conduzindo o par de pássaros ao lugar onde iriam treinar. Mas Franz não disse uma palavra, apenas deixou o silêncio se tornar constrangedor o suficiente para que Charlie começasse a assobiar baixinho, acompanhando a música que a ave emanava de sua plumagem.

            As Garzas começavam a voar mais alto, atingindo uma altura maior do que o estômago de Charlie poderia agüentar. Ele fechou os olhos e deixou que as sensações trazidas pela ave o envolvesse por completo, esquecendo-se da viagem, até que chegassem em seu destino.

            Finalmente, depois de alguns minutos, eles aterrissaram. Charlie sentiu uma forte rajada de vento que o engolfava a cada segundo, mudando de direção vez ou outra. Abriu os olhos, apreensivo, e percebeu. Estava no topo da grande árvore.

            Com certeza, ele logo se deu conta, era maior do que um arranha-céu. Mal se podia ver o que acontecia lá embaixo, as nuvens dividiam espaço com eles e, por mais que Charlie tentasse, certamente era mais difícil respirar ali.

            - Senhor... Aqui é um pouco difícil – Charlie ofegou – o ar...

            - Eu sei – Franz falou, mas incapaz de sentir qualquer alteração de ambiente. O homem era um miserável de pedra, nada o abalava – Mas é assim que começaremos o seu treinamento. A primeira coisa que quero: assobie.

            Charlie o encarou, aturdido. Assobiar? Que, raios, treinamento seria esse?

            Mas ele não discutiu. Simplesmente contraiu os lábios e, como mandado, assobiou. A princípio foi difícil, principalmente conciliando a dispineia com o simples ato de assobiar que, naquele momento, era, no mínimo, desconfortável.

            - Ok, agora, como vez antes, quero que entoe uma música, qualquer uma – pediu Franz.

            Charlie o fez, e precisou sorver considerável quantidade de ar. O meio rarefeito começara a lhe dar tontura e sonolência.

            - Agora, caminhe até aquele galho.

            Charlie virou-se. Sem discutir, caminhou pelo tronco, saltou um ramo com flores do tamanho do tamanho de uma mão aberta e, cautelosamente, começou a dar um passo após o outro, atravessando o galho.

            - Aqui? – perguntou Charlie, ansioso.

            - Não. Vá até o fim.

            - O quê?!

            Charlie encarou a ponta do galho, parecia frágil, como se fosse quebrar com um simples pensamento. Ele hesitou, pensou em voltar, mas, ao virar, deparou com a expressão rígida do Emissário.

            - Ok...

            Charlie caminhou vagarosamente. “Não olhe para baixo”, falou consigo mesmo. O vento estava forte e parecia prestes a carregá-lo como pena. Mas ele se consolava em saber que, se caísse, não tinha a menor chance de sobreviver. Seria uma morte rápida. Iria estourar como bexiga d’água na grama a, o que? Um milhão de quilômetros de distância, talvez.

            Ele, então, alcançou a ponta do galho, que rangeu com o peso, mas não cedeu. O vento passou por debaixo de seus braços, desafiando seus pés a se manterem plantados sobre o pequeno espaço que tinha como apoio.

            - O próximo nó que você irá liberar está associado à sua inconstância. Muitos sentimentos podem atrapalhar sua desenvoltura no treinamento, por isso sugiro que não tente focar em muitas coisas ao mesmo tempo. Se possível, focalize um único pensamento, mas não pode ser qualquer um. Precisa ser algo abstrato. Evite formar imagens em sua mente, cenas ou rostos. Pense apenas em formas e cores mas que, de alguma forma, signifiquem algo bem específico. Confine sua mente em um pensamento.

            O rapaz assentiu.

            - O segundo corresponde à sua afinidade com o ar, o vento e a movimentação de partículas – Franz movimentou seu cajado e, como mágica, uma lâmina de ar se formou, cortando um pequeno ramo ao seu lado – assim como meu elemento ar, você pode dominar cada uma das frações da Inspiração. Mas o ar é, certamente, o mais difícil de dominar, pois não pode vê-lo.

            De fato, Charlie não sabia como controlar algo que não podia enxergar.

            - Veja, rapaz... Controlar o vento é como assobiar. Quando quer um som mais agudo, você assopra uma grande quantidade de ar em um pequeno espaço, contraindo seus lábios, certo? Se quer uma nota grave, você reduz o assopro. Você pode produzir um zumbido sugando o ar em vez de expeli-lo. Da mesma forma, o seu diafragma está intimamente ligado a essa variação.

            - Sr. Mormmon, ainda não sei aonde quer chegar?

            - Digamos que seu corpo é uma extensão de sua habilidade para assobiar e, controlar o ar é como um assobio aumentado mil vezes, senão mais.

            - Eu estou me sentindo o Último Dobrador do Ar aqui.

            - Mas aqui não é um filme, rapaz – impacientou-se Franz, esfregando os olhos – apenas escute, depois faça perguntas... Bem, as suas mãos cumprirão a função dos lábios, controlando o espaço disponível para liberar o ar, ou mesmo sugá-lo. Os dedos são os vetores que irão conduzir o caminho do vento. A distância entre a palma da mão e o seu peito controla a intensidade do “sopro”. Flexionar os joelhos ajuda, se você quiser uma rajada mais forte. Consegue compreender?

            - Eu gostava mais quando eles tentavam me queimar – Charlie sorriu meio besta. Estava nervoso com a perspectiva de cair a qualquer momento.

            Franz bateu o cajado sobre o tronco, irritado. Encarou o garoto com um olhar que não combinava com aquela antiga expressão ilegível.

            - Você não leva nada a sério, rapaz? – queixou-e Mormmon – não sabe o quão importante é isso? Não para mim, mas para você!

            - Hei, devagar com essa bengala, eu estou na ponta de um galho, se o senhor não percebeu!

            - Ora! – Franz estava prestes a cuspir palavras nervosas, mas engoliu-as, sem queixa – Quer saber, rapaz. Você é imaturo demais para isso. Não está pronto.

            Ele deu as costas ao garoto, caminhando em direção à Garza.

            - Hei! Aonde está indo?

            - Está na hora do lanche – ele avisou e, novamente, havia recuperado sua inexpressividade – volto para te buscar quando conseguir limpar o céu.

            Charlie o fitou, incrédulo.

            - “Limpar o céu”? O Que, diabos, você quer dizer com isso?

            Mormmon fitou o rapaz.

            - Tem muitas nuvens aqui, fica difícil enxergar. Afaste-as com uma única rajada de vento, e você terá direito ao jantar.

            - Hey! Qual é! Olha, Sr. Mormmon, foi mal, eu vou me esforçar! As piadinhas foram involuntárias! Não...

            Tarde demais. As aves alçaram vôo. Charlie se viu sozinho, sobre o galho, sentindo-se um completo idiota. Toda sua expectativa a respeito de Franz foi, de uma forma diferente, frustrada.

            Sim, o céu estava repleto de nuvens que seguiam linhas circulares, formando um vórtice de fumaça e brancura. O vento era forte o suficiente para derrubar Charlie do galho, mas incapaz de mover uma única nuvem.

            - Do que elas são feitas? De aço? – queixou-se o rapaz para si mesmo. Não havia um único movimento partindo das nuvens.

            Lembrou-se das dicas de Franz, mas nada parecia fazer sentido no momento. Ele poderia dançar um tango sobre o galho, ainda assim não saberia como desfazer o maldito nó dentro da sua cabeça. Lembrou-se, também, sobre o que o seu professor excêntrico dissera sobre os pensamentos, focar em coisas abstratas e com único significado. Não deveria pensar em rostos, em cenários, mas não conseguia tirar da cabeça a imagem de sua cabeça estourando no campo assim que sofresse a queda.

            Respirou, leve e comedido, pensando que, talvez, fosse esse o primeiro passo. As mãos iriam ajudar a criar a dimensão do ar deslocado. Aproximou as mãos, pensando em começar com ao pequeno. Deixou-as próximo ao peito e flexionou levemente os joelhos. Só faltava concentrar.

            A primeira coisa que lhe veio à mente foi o rosto de Helena, quando se conheceram. Depois se lembrou do dragão e como quase fora devorado pelo animal insano. Pensou no irmão e seu braço disforme. É, isso não iria ajudar. Seus pensamentos estavam elétricos, praticamente tinham vida própria. Jamais conseguiria focar seu pensamento. Quando fechava os olhos, lá estava Helena ou seu irmão, ou mesmo um enxame de besouros esmeralda voando em sua direção. Como ele queria ter uma dracma perdida naquele momento!

            Foi quando Charlie percebeu como era difícil desenvolver seus poderes. Focar seus pensamentos era algo difícil. Especialmente difícil! Normalmente sua mente trabalhava sozinha, criando mil e uma idéias e dando vida aos sonhos e pensamentos escondidos em algum lugar em seu buraco negro particular, que convertia tudo em criatividade.

            Pela primeira vez ele gostaria de poder se desligar. Era frustrante descobrir que seu dom não era uma ferramenta, mas uma parasita em sua mente, usando seus neurônios para se manter vivo, ativo e pulsante, criando e criando compulsivamente.

            Concentrando todo o seu potencial talento de Inspirado, cerrou os olhos e focou em um borrão em sua mente. Um borrão preto sem nenhuma forma aparente. Mas não durou muito. Bastou segundos para ela se tornar uma mão asquerosa correndo atrás do seu irmão.

            - Minha cabeça está fora de controle – suspirou ele, desanimado.

            Suas pernas estavam tremendo devido o esforço que fazia para se manter naquela posição, lutando contra o vento traiçoeiro. Tentou mais uma vez, mas novas figuras se formaram em meio aos pensamentos, como um dragão escarlate e uma bela garota. Chacoalhou a cabeça, irritado.

            - Uma única vez, apenas isso... – ele pediu para si mesmo – só dessa vez...

            Ele se lembrou do que fizera na ilha, quando estivera preso com o dragão naquela jaula. Focou o céu se concentrou no branco, convertendo aquelas chamas em fumaça. Naquele momento, no entanto, ele deveria fazer exatamente o contrário. Quanto menos sentido tivesse a imagem em sua cabeça, melhor.

            Charlie evocou a primeira lembrança, quando vira a dança dos cabelos de Helena, enquanto a garota arrumava os livros na estante da biblioteca. Foi naquele dia em que se inspirou a criar o dragão. Há quase três anos atrás.

            Apenas o rubi de seus cabelos, ele pensou. Com os olhos fechados, Charlie viu linhas escarlates se projetarem a sua frente, formando círculos, formas helicoidais e outros desenhos sem nexo, apenas ao léu, sem importância. Uma pintura em abstrato.

            Era o que precisava: um borrão vermelho, com linhas em abstrato, mas cheio de sentido. A sensação de estar no lugar a que pertencia.

            Focando todos os seus sentidos nessas últimas ações, lançou as mãos à frente como se empurrasse uma parede invisível.

            No entanto, não houve nenhuma mudança.

            Charlie passou as últimas três horas sobre o galho, se esforçando como pôde. No momento, dividia a preocupação em atingir seu objetivo de treinamento, com a provável irritação da mãe por mais um dia em atraso. Não saberia que desculpa dar, dessa vez.

            Seus esforços eram em vão e, ainda que insistisse em empurrar a muralha invisível, nenhuma fração do ar era deslocada. Pelo menos não por intermédio de seus poderes que, naquele momento, ele duvidava ter.

            Estava prestes a desistir, sentindo seus músculos fatigados e o corpo dormente, quando ouviu o arfar de asas imensas. A Garza retornara acompanhada do homem de baixa estatura que, anteriormente, se considerava um professor para Charlie.

            - Vejo que tem se esforçado – falou Franz. Do bolso do paletó, retirou três laranjas muito vistosas – você deve estar com fome.

            - E cansado – ofegou Charlie, que demorou a perceber as gotas de suor em sua testa.

            - Logo vai anoitecer – comentou Franz sem muita intenção.

            - E eu preciso estar em casa, ou minha mãe vai ter um treco – queixou-e Charlie, sem desprender os olhos das laranjas que, no momento, pareciam mais suculentas do que o normal.

            - Você quer uma dessas, não quer? – perguntou Mormmon – uma deliciosa laranja.

            O homem arremessou a laranja para o alto e, com o seu cajado, fez vários movimentos certeiros e, com uma precisão cirúrgica, as navalhas de ar cortaram a casta da fruta como um verdadeiro chef teria feito.

            A laranja pousou suavemente na mão do Emissário.

            - Corsario Area – anunciou Franz, repentino – Sei muito bem como a habilidade de manipular o ar pode ser complexa... Pensar demais não ajuda. Você precisa sentir-se como o próprio ar. Sei que isso pode soar clichê, mas é preciso conhecer a natureza do vento furioso ou da brisa calma. Pensar formas definidas está te mantendo longe dessa capacidade.

            Charlie continuava encarando a laranja, não sabia se se lançava contra a fruta ou ouvia o professor que começava a lhe dar nos nervos. Não era exatamente fome o que o rapaz sentia, mas, depois de tanto treinamento, uma fruta carnosa seria um ótimo revigorante.

            - Sabe... – Franz partiu a laranja descascada ao meio, e começou a sugar os gomos cheios de líquido – Isso aqui é muito bom...

            Charlie se sentiu enganado. Aquele homem não era, nem de perto, a pessoa que parecia ser. Lembrou-se de Munphus e Pyrah e supôs que, talvez, a maioria dos Emissários adotasse essa maneira de viver.

            - Se você quiser, rapaz – avisou Sr. Mormmon, exibindo as duas outras laranjas – terá que tomá-las por si só.

            Charlie fez menção de ir até o homem, mas Franz ergueu seu cajado, criando uma rajada consideravelmente forte. Charlie precisou abrir os braços e dançar desengonçado para se equilibrar.

            - Não seja tão afoito, rapaz – advertiu o homem – tente pegá-las, daí mesmo.

            Charlie mordeu o lábio. Como faria isso? Implorar para que as laranjas rolassem até os seus pés? Bem, seria mais fácil do que manipular o próprio ar.

            Franz lançou as duas laranjas para o alto com uma velocidade impressionante. Elas rodopiavam enquanto caíam, formando um redemoinho de borrões alaranjados indistintos. O homem agarrou as frutas novamente, exibindo-as como um troféu.

            - Eu sei que é exatamente o que você quer – falou ele, seu tom de voz era quase impiedoso – mas precisa ser mais esperto do que realmente é.

            Mais uma vez, Mormmon lançou as laranjas para o alto e, como antes, elas se fundiram em um borrão alaranjado, acompanhando a dança louca das rajadas de vento produzidas pela vontade do Emissário.

            - Vamos, pegue...

            Charlie fez menção de sair de seu posto, mas outra rajada de vento o repeliu. Se tentasse demais, perderia o equilíbrio e, com toda certeza, cairia.

            “É impossível...”

            Os borrões se formavam, cada vez maiores.

            - Vamos, rapaz. Seja criativo.

            “Eu preciso tê-las...”

            O vórtice alaranjado de tornava cada vez mais delgado, fiel ao sopro induzido pelas habilidades de Franz.

            - Você não é um Inspirado? Ora, seja criativo...

            A voz do homem foi se afastando, Charlie focou na única coisa que lhe interessava.

            “Preciso tê-las...”

            Estendeu a mão para o borrão de cor, mas era impossível alcançá-lo.

            Frustrado e, até mesmo, irado, saltou contra o seu intento, abanando as mãos desesperadamente.

            Não contava com o que aconteceria em seguida. Um pulso percorreu o seu corpo e, de súbito, uma rajada de ar engolfou as laranjas, arremessando-as para longe.

            Charlie sorriu, satisfeito, conseguira usar sua habilidade. Mas não sabia se tinha valido a pena. O rapaz se viu caindo, incapaz. Suas últimas sensações antes de apagar foi a de dor, ao se chocar contra um galho, e frustração, pelas pancadas estupidamente frequentes.


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