Inspirados - o Andarilho do Tempo escrita por Pedro_Almada


Capítulo 18
Roxanne


Notas iniciais do capítulo

Pois é, pessoal... Vocês vão ter que me perdoar pela demora... Não deveria ser assim, mas cursinho é a coisa mais cruel do mundo... Não é o Ensino Médio, nem a faculdade. É um mundo paralelo onde nós, dejetos da humanidade, tentamos nos erguer e ganhar alguma posição social... Perdoem eu aqui e leiam esse capítulo, comentem e, se quiserem me xingar depois... Bem, o que eu posso fazer pra impedir? xD

Boa leitura pessoal! "Mals ae" a demora^^



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Roxanne

            Chegar em casa nunca tinha sido tão difícil. Parecia ter passado metade de sua vida dentro do Literadouro, enfrentado o dragão e aprendendo a usar um poder que ainda não sabia qual era. Com as costas ainda doendo, não conseguia caminhar pelas ruas normais de Manhattan sem se sentir deslocado, metaforicamente. Bastou menos de dois dias para sentir que a normalidade não era o seu lugar. Sentia falta do Literadouro. Seria capaz, inclusive, de beijar o dragão polonês.

            Munphus combinara com Charlie de se encontrarem novamente na biblioteca no dia seguinte, quando retomariam o treinamento. O velho tinha dito que o próximo professor seria Franz, o Emissário de feições sábias.

            Entrou em casa, assim como a noite invadiu o céu sorrateiramente. Não demorou a ver sua mãe se projetando no portal da cozinha, com uma expressão ligeiramente frustrada.

            - Charlie! Por onde você esteve? Seu irmão disse que ficou na biblioteca, mas... Passar a noite por lá? Isso é alguma brincadeira insana? O que vocês pensam... O que vocês... Ora! Vocês querem é matar a mãe de vocês do coração, isso sim!
            Charlie ficou surpreso em ver que sua mãe ainda não estava babando feito um cão raivoso. Para a sua sorte, seu pai não estava em casa, foi o que constatou quando estudou a sala e percebeu que sua figura paterna não estava à espreita.

            - Seu pai precisou fazer uma viagem em nome do jornal, mas isso não me impede de castigar você à minha maneira – ela chiou. Charlie se perguntou se ela era capaz de ler mentes. Não seria surpresa, depois de tudo o que tinha visto.

            - Diga-me, Charlie! Onde você esteve, com quem, e por que nenhum aviso?

            O garoto ficou em silêncio. Precisava mentir. Depois de tantos anos lutando contra isso, seria necessário mentir.

            - Mamãe, eu já te disse – Andrew adiantou-se, posicionando ao lado do irmão mais velho – ele estava com o Sr. Munphus. Pode ligar pra lá.

            - Charlie, não me agrada você dormir na casa de um estranho.

            - Mamãe... Helena e Ernesto não são estranhos. São meus amigos.

            Andrew fez uma careta diante da menção de Ernie.

            - Sim, mamãe. Quase irmãos.

            Ela olhou de um filho para o outro, desconfiada. Tinha alguma coisa ali que ela não conseguia engolir.

            - Isso não muda o fato de que você não pediu permissão, Charlie.

            - Mãe, eu... Ok, eu vou dizer o que aconteceu... Eu me machuquei. Nada sério, mas ele me ajudou. Posso garantir, está tudo na mais perfeita ordem, agora.

            Lauren ficou boquiaberta, correu em direção ao filho e começou a apalpar seu rosto.

            - Machucou aonde, filho? Como?

            Vitória! Agora não era mais a mãe furiosa, mas a mãe-coruja. Seria bom para ganhar tempo.

            - Bem aqui.

            Charlie levantou a camisa e mostrou um corte nos ombros. Tharsos tinha feito um ótimo trabalho, parecia bem melhor, o suficiente para não desconfiarem que Charlie pegara uma carona com um dragão. Parecia, agora, apenas um arranhão provocado por um cabide.

            - Como foi isso, meu filho? – perguntou ela, aflita.

            - Foi uma estante, mamãe. Ela tinha essas coisas de pendurar, entende, e me cortou. Mas estou bem, veja. Colocaram ataduras e tudo o mais.

            - Você, ao menos, foi ao médico? – ela estava alarmada.

            - Claro! – ele respondeu o que a mãe queria ouvir.

            Andrew riu, vendo o irmão mentindo descaradamente, mas engoliu as gargalhadas diante do olhar reprovador da mãe.

            - Por que não me chamou? Por que, raios, esse bibliotecário não me avisou?

            - Eu pedi para que não o fizesse, mãe. Olha como a senhora está! Imagine se estivesse lá na hora do incidente. Você iria surtar, com certeza... Ele relutou, sabe? Queria muito ligar para a senhora, mas eu insisti “não, não precisa, ela vai pirar”. Foi difícil, mas eu o convenci.

            Lauren fitou o filho, cheia de preocupação.

            - Venha, filho. Vamos passar uma pomada nisso. E essa conversa ainda não acabou.

            - Não, mãe, chega de pomadas...

            Lauren fechou a porta, decidida em cuidar do filho. Sem saber o que, de fato, acontecera.

***

            Já não era a mesma coisa se deitar em sua cama aconchegante e esperar o sono chegar. Da última vez, um dragão o obrigara, literalmente, a passar a noite em um sono profundo, enquanto suas feridas recebiam devidos cuidados. Ali no seu quarto, longe de perigo ou de qualquer criatura fantástica, Charlie se sentia inútil. Ele tinha muito nas mãos, mas não sabia o que fazer com tanto.

            Estava ansioso, sabia o que o esperava no dia seguinte.

            Sua ansiedade, no entanto, só serviu para fazer a noite se arrastar. Seus olhos estavam fixos no teto, e assim permaneceram por longas horas sem sono. A imagem do dragão voando pronto para matá-lo estava tatuada em seu crânio, os acontecimentos recentes retiniam dentro da sua cabeça como um sinal estridente, impedindo-o de pegar no sono.

            Mas a noite não era eterna. O dia, enfim, chegou. O sol foi o primeiro a dar as boas-vindas a um novo começo. Os olhos de Charlie, sensíveis à luz, tremeram diante da invasão do Sol.

            O garoto se levantou, sentindo a cabeça pesada. Tinha dormido por apenas quarenta minutos e, quando finalmente a cama estava mais receptiva, era hora de acordar. Charlie se lembrou da escola, e do que precisaria encarar: Drue. Seus problemas, agora, pareciam insignificantes, mas não deixava de incomodá-lo.

            Quando Charlie desceu as escadas, semi-vestido para a aula, parou, abruptamente, ouvindo uma voz familiar vindo da cozinha. Só podia ser ele.

            - Sra. Logan, entenda. Sinto muitíssimo não tê-la avisado sobre o incidente, mas o jovem rapaz não queria preocupá-la, embora, é claro, acabou acontecendo exatamente isso. A culpa foi minha.

            O Sr. Munphus estava por dentro da desculpa mirabolante que Charlie havia dado para sua mãe.

            - Eu entendo, Sr. Munphus, mas veja... Eu seria uma mãe terrível se deixasse meu filho sair nessas condições e, dado os acontecimentos, ir com o senhor... Não me leve a mal, perdoe minha indelicadeza, mas... Como espera que eu confie meu filho ao senhor? Ele se machucou e não fui retratada sobre o incidente. Desculpe-me, Sr. Munphus... Mas não posso tê-lo como uma pessoa confiável.

            Charlie ficou vermelho, completamente constrangido, ainda que ninguém pudesse vê-lo. Sua mãe fora bastante rude com as palavras, mas, ele sabia muito bem, nenhuma mãe aceitaria o acontecido. Charlie se sentiu culpado por não inventar uma desculpa melhor e, tão logo, culpado por ter mentido.

            - Sra. Logan. A senhora é uma mãe admirável. Sua atitude foi bela e, diante disso, não posso dizer nada senão, que estou muito envergonhado do meu feito. Mas, veja, Charlie foi tão solidário na biblioteca, ele e minha sobrinha Helena (a senhora a conhece muito bem) estão me ajudando em algumas coisas e seria bom para os dois se pudessem ter um tempo juntos. Percebi que Charlie não tem muitos amigos por aqui, e reconheço o seu filho como uma boa companhia para minha sobrinha. Sou apenas um tutor, como a senhora, preocupado com a companhia de minha sobrinha e meu filho.

            Charlie teve que admitir, Munphus era esperto. Tocou no ponto mais sensível, a dificuldade de Charlie em se enturmar. No início, Lauren acreditava ser apenas uma fase, mas, depois de tantos anos, ela começava a pensar que a compulsão por mentiras estava intimamente associada.

            - Veja bem, Sra. Logan. Sei perfeitamente como é difícil lidar com a responsabilidade de criar jovens nessa idade. Prometo à senhora que não irei falhar novamente. Pretendo, inclusive, contratar o seu filho para trabalhar comigo, se a senhora o permitir. É um ótimo rapaz, e ama os livros... Dou-lhe minha palavra.

            Ela pensou, mas sua resposta já estava estampada em seu olhar. Acabou cedendo. Claro que ela não iria responder de imediato, sua hesitação estratégica era apenas para que ficasse claro que Lauren ainda não confiava inteiramente em Munphus e que estava apenas dando ao pobre bibliotecário o benefício da dúvida. Mas tinha uma condição, única e irrevogável, para que o pedido de Munphus fosse aceito:

            - Andrew pode ir? Ele adora ficar com o irmão, mas ele anda meio estranho, acho que tem medo de perder a amizade do irmão. Fico mais tranqüila em saber que os dois estão juntos.

            Charlie sabia que isso não tinha fundamento o discurso da mae. A mão de semi-vivo era a primeira preocupação na cabeça do irmão, o que os tornava ainda mais conectados, se é que era possível. Diante da vitória, Charlie suspirou, aliviado.

***

            Munphus tinha um Galaxie Landau preto, muito bem conservado. Preso ao para-brisa, um besouro verde permanecia imóvel, como um adorno para o carro. Charlie sorriu para si mesmo diante do segredo que lhe fora confidenciado. Para o resto das pessoas, era apenas um besouro. Para ele, um Corsario.

            O veículo estava estacionado do outro lado da rua. Entraram no carro, que começou a se mover com leveza, como se mal tocasse o chão. O estofado era macio e tinha um cheiro de couro novo.

            - Temos muito o que fazer hoje – avisou Munphus – Andrew, alguns dos Emissários estão, nesse momento, estudando sobre a sua situação, lá na minha biblioteca. Não se preocupe, logo teremos uma resposta.

            Andrew suspirou, agradecido. A mão parecia ter encolhido ligeiramente, mas, para o pesar, não significava coisa boa. Ela parecia estar se deteriorando aos poucos, os dedos estavam mais curtos e mais finos, a pele cada vez mais seca.

            - Eu disse que iria levá-lo pessoalmente à escola, mas... – Munphus sorriu travesso – acho que acabei mentindo.

            - Sr. Munphus. Já perdi dois dias de aula, a escola vai acabar ligando e...

            - Esse será o menor de nosso problemas, Charlie. O que precisamos focar, agora, é o seu treinamento. Mas, primeiro, vamos fazer uma parada em um lugar.

            Charlie lançou um olhar furtivo em direção ao amigo, olhar esse que foi logo compreendido pelo velho bibliotecário. Ele sorriu, compreensível.

            - Descobrimos um novo Inspirado. – avisou ele – ele tem feito muitas criações nesses últimos dias. Ao que parece, ele ainda não sabe o que está acontecendo, acha que o seu guarda-roupa é encantado. Recentemente capturamos uma de suas criações, uma garotinha com uma tarântula de um metro e meio como bichinho de estimação.

            - O que eu devo fazer? – perguntou Charlie, pronto para a sua tarefa. Era bom se sentir útil novamente.

            - Você vai convencê-lo a ficar longe dessa guerra e, se alguém tentar contatá-la, como esse tal Dr. Sanguinetti, ele deve nos avisar.

            - Espera aí! Como espera que eu vá abordá-lo? Eu não posso simplesmente chegar e dizer que sombras estão engolindo pessoas e fábulas, e que ele tem um dom... Ta vendo, nem mesmo eu sei o que estou dizendo?

            - Charlie... – Munphus parou no sinal vermelho, olhou para o rapaz, cheio de bondade – Eu confio em você. Mostre a ele que vocês são iguais. Garanto que não será difícil.

            Munphus estacionou próximo a um apartamento de luxo do Central Park, próximo ao Plaza. Charlie estava ansioso, tentando recriar frases em sua mente que fossem, no mínimo, inteligíveis, e que não parecesse tão idiota na frente de um Inspirado.

            - Qual é o nome dele? – Charlie quis saber.

            - Na verdade... Não é, hãn, ‘ele’... É ‘ela’. Roxanne O'Hare. Ela tem dezoito anos.

            Charlie estremeceu, ligeiramente nervoso. Sendo uma garota, então as coisas se tornavam um pouco mais complicadas. Munphus entregou um bilhete com o endereço ao rapaz. Andrew ficaria no carro esperando pelo irmão. Antes que Charlie se despedisse, o bibliotecário confiou ao rapaz um pequeno cadeado de prata com as iniciais LS.

            - Dê isso a ela.

            - O que é isso? – perguntou Charlie, sentindo a textura do metal e a frieza, seus olhos se detiveram nas iniciais em alto-relevo.

            - Isso é um selo. Ele irá manter o Literadouro inativo... Colocamos um desses em seu armário, na escola, apenas por precaução.

            Charlie assentiu. Não havia muito o que dizer, precisava mesmo era agir. Enfiou o cadeado no bolso e, num salto, precipitou-se para fora do carro. Antes de ir, lançou um olhar ao Munphus, que retribuiu com um aceno confiante.

            O edifício tinha vinte andares, era uma verdadeira construção de ares provincianos, mas tinha uma aparência requintada e cheia de classe. O hall era adornado por mesas de mogno, poltronas reclináveis, uma mesa-de-centro com miniaturas de dezenas de pontos turísticos em todo o mundo, como a torre Eiffel, o Cristo Redentor, a Estátua da Liberdade e três pirâmides desbotadas, mas ainda muito vistosas.

            Charlie caminhou em direção ao recepcionista, que o encarava de forma curiosa.

            - Ahn, olá – ele sorriu – gostaria de falar com Roxanne O’Hare.

            O recepcionista estudou da atitude do rapaz por um rápido minuto.

            - Quem é você? – perguntou, enfim.

            Charlie, durante o caminho, já esperava por isso. Logo pensou no que dizer.

            - Diga a ela que eu encontrei a aranha, e que o guarda-roupa não é a chave.

            - Perdão? – o recepcionista arqueou a sobrancelha, confuso e ainda mais desconfiado.

            - Ela sabe do que estou falando.

            Depois de um momento de hesitação, o recepcionista pegou o interfone e ligou. Não demorou a ser atendido, e falou exatamente como Charlie havia pedido. Pela expressão do recepcionista, o rapaz percebeu que houvera uma pausa durante a ligação, a pessoa do outro lado calou-se por um breve momento, significativo para as expectativas de Charlie.

            - Pode subir – avisou o recepcionista, desligando o interfone – ela mora no décimo andar.

            O elevador rangia suavemente, enquanto as entranhas de Charlie eram comprimidas. Finalmente chegou ao décimo andar. Estava um bocado nervoso e, pensando no que dizer, cada vez suas frases ensaiadas pareciam mais idiotas. Mas precisava tentar.

            Bateu à porta, no número 1004. Esperou pacientemente, encarando os nós dos próprios dedos. A porta, então, se abriu.

            Uma garota estava à porta, e Charlie não pode deixar de notar a elegância em uma jovem de traços desinteressantes, dando a impressão de um desleixo, estranhamente sedutor. Cabelos louros acobreados harmonizavam com o lábio avermelhado e as maçãs do rosto redondas e rosadas. Os olhos azuis cintilavam de ansiedade, medo, constrangimento e um turbilhão de sentimentos. Não era exatamente bonita, mas havia um charme em sua presença, e uma beleza incomum em suas feições infantis.

            - Roxanne? – Charlie foi o primeiro a dizer.

            - O que sabe sobre... Aramelia? – ela lançou a pergunta, sem apresentações.

            Charlie arqueou a sobrancelha, confuso.

            - Você disse que a viu. Aramelia e a aranha. – Roxanne tinha o olhar cauteloso, mas estava ligeiramente irritada - Onde elas estão?

            Charlie não queria mais mentir. Já tinha conseguido o que queria e, depois de revelar ser conhecedor do segredo de Roxanne, ela não se atreveria a expulsá-lo.

            - Ahn, ok... Bem, a verdade é que eu não a vi... Mas eu sei onde ela está. Eu sei muita coisa, na verdade... Eu sou como você, Roxanne. – Charlie falou, enfim – sou um Inspirado. e você também.

            - Um o quê?
            Charlie riu entre dentes. Aquela expressão de ingenuidade engraçada acabou fazendo-o se lembrar do dia em que descobriu ser capaz de dar vida às suas ideias. Foi quando pensou “Céus! Não tem nem uma semana!”.

            - Se me deixar entrar, eu posso te contar tudo.

            Ela fez menção de fechar a porta, mas o rapaz segurou com as mãos.

            - Confie em mim – ele pediu – você não está curiosa? Nenhum pouco? Como isso acontece... O que mais seria capaz de fazer... O que você vai perder se me ouvir por alguns minutos?

            A garota mordeu o lábio. Charlie logo identificou uma fraqueza comum nos Inspirados: a curiosidade. Se havia algo que não conseguiam ignorar era a possibilidade de obter respostas e, naquele momento, Charlie era a única pessoa que poderia entender a condição de Roxanne, ela bem sabia disso.

            - Não posso confiar em qualquer um – ela disse, tentando resistir.

            - Não quero que confie em mim agora. Apenas me escute, o resto do julgamento você mesmo o fará.

            Demorou cerca de um minuto. Era parecia relutar, lutando contra seus pensamentos e a reação mais prudente, que seria expulsar um completo estranho de sua casa. Mas ela não o fez. Nunca houve nada de convencional em sua vida, de qualquer modo.

            Assim Roxanne se entregou à curiosidade.

***

Em algum lugar

            As pegadas da raposa marcaram a terra úmida, deixando sinais discretos de sua passagem por lá. O pequeno animal de pelagem acobreada embrenhou-se nos arbustos, ensopando o corpo felpudo de orvalho. Definitivamente, não era, nem de longe, uma criatura comum.

            A raposa não mudou seu curso, mantinha sempre rumo ao sul. Meteu-se entre um matagal raso, porém crescido o suficiente para escondê-la de qualquer olhar curioso. O vento começou a assoprar, trazendo no ar um cheiro familiar de chuva. A raposa parou por um instante, erguendo o focinho molhado, apontando-o para o céu, onde relâmpagos cintilantes rasgavam as nuvens, acompanhados de rugidos tardios de tempestade. O animal não estava com medo. seus olhos pareciam admirar o temporal, como se sentisse grande prazer diante da manifestação natural.

            O animal chacoalhou o corpo, expulsando as gotas de chuva que começaram a cair discretamente. Lançou-se novamente entre o matagal, ligeira e sem ofegar. Seu corpo minúsculo e ágil dava-lhe a vantagem ideal num momento como aquele. Era tudo feito com grande cautela, para que a raposa não fosse perseguida.

            Ao longe, uma pedra imensa, plantada ao pé da montanha, mantinha-se sólida e robusta. Na parte inferior havia uma fenda, uma passagem onde apenas alguém muito pequeno poria passar. A raposa lanço-se contra a cavidade da pedra, sorrateira, entrou na pedra, deixando a chuva do lado de fora.

***

            Charlie passou quase uma hora no apartamento de Roxanne O’Hare, tentando explicar. Mencionou o Literadouro, os Emissários, a existência do Meio-Termo, Vazio e o limite que fora rompido. Falou de forma breve sobre Vulno e tentou explicar, como se lembrava, sobre o Despertar do Vazio. Roxanne falou sobre suas criações e sobre como alguns deles acabaram fugindo. Uma de suas preferidas era Aramelia e sua aranha, que se tornaram boas amigas, mas que, um dia, fugiram do apartamento, pois queriam conhecer o Central Park. Segundo a Inspirada, Aramelia era uma menina que morava num sótão, ignorada pelos pais ocupados demais em criar os outros três filhos mais novos. Aramelia, então, conheceu uma pequena aranha que falava, batizando-a com o nome de Aranha. Charlie riu involuntariamente e, ofendida, Roxanne parou de contar sua história. Finalmente Charlie falou sobre a carta do Dr. Sanguinetti. Ela havia recebido uma igual.

            - Faz quase um mês – ela disse, abrindo uma caixinha sobre a sua penteadeira e recolhendo um pequeno envelope, idêntico ao que Charlie recebera – nunca ouvi falar nesse homem, mas, depois que recebi a carta, coisas... Coisas aconteceram.

            - Ele te deu um Literadouro.

            - Ele pode fazer isso? Aqui diz “colecionador”.

            A palavra incomodou Charlie como da primeira vez. Seriam os Inspirados parte dessa coleção? O quão perigoso poderia ser?

            - Roxanne... Preciso te dizer uma coisa. Aramelia voltou para casa. – ele disse – Aramelia e sua aranha... Não estão mais aqui. Preciso te pedir um favor.

            Charlie enfiou a mão no bolso, retirando o cadeado.

            - Coloque isso em seu Liter... Digo, no seu guarda-roupa. Assim as suas fábulas não irão sair. Precisa ficar longe disso por um tempo. E, se por acaso, você ouvir qualquer menção sobre Dr. Sanguinetti, Galahan, ou qualquer coisa associada ao Meio-Termo, me avise. Quem quer que esteja tentando provocar o Despertar do Vazio, está usando as habilidades dos Inspirados para isso.

            Charlie levantou-se, louco para ir embora. Eram quase dez da manhã e sentia cada vez mais necessidade em estar treinando.

            - Espere um momento! – Roxanne segurou o rapaz pelo ombro – você vem aqui, me diz um monte de... sandices! Diz que eu devo ficar quieta, e pronto? Que tipo de conselho é esse?

            Charlie pensou. De fato, a conversa foi um lixo, mas não sabia o que dizer.

            - Apenas faça o que eu te pedi. Mantenha-se segura.

            - Mas, e essas sombras? – ela perguntou – e se vierem atrás de mim, como você disse que estão indo atrás das... das...

            - Fábulas.

            - Isso! – ela apontou, eufórica – eu não vou ficar... Isso é... Céus! Eu tenho que ligar para os meus pais!
            - O que? Não! Ninguém pode saber sobre isso! Não ouviu o que eu acabei dizer?

            Roxanne olhou para o guarda-roupa no canto da sala. Era uma relíquia, provavelmente do período colonial, mas bem conservado.

            - Você me deixou apavorada, seu idiota! – ela chiou – sobre essa coisa de Krak, sombras... Eu não vou ficar sozinha, não vou ficar sem os meus pais! Eu preciso ligar.

            - Não, Roxanne! Isso só irá colocá-los em perigo. Por hora, fique em casa, freqüente apenas lugares movimentados onde haja alguém que você conheça... Não fique de bobeira pelas ruas...

            - Olha aí você, outra vez, me apavorando!

            - Foi mal! – Charlie esfregou a cabeça, aflito – é que eu não sei o que dizer! Eu não me dou bem com garotas!

            - Jura?!

            - Hey, não seja debochada!

            - E você não seja um idiota! – ela estava praticamente gritando.

            - E VOCÊ NÃO SEJA UMA GAROTA!

            - COMO QUER QUE EU NÃO SEJA UMA GAROTA, SEU PANACA?!

            Logo, os dois se deram conta, estavam discutindo aos berros, chacoalhando os braços furiosamente e cuspindo a torto e direito. Estavam ofegantes, trêmulos e, naquele momento, Charlie percebeu que Roxanne não era a única a sentir medo. Pela primeira vez, ele se deu conta, era esse o sentimento que estava tentando camuflar todo esse tempo. Não só estava maravilhado com as novidades, assim como Roxanne, como também partilhavam do mesmo medo. Não sabiam o quão perigoso poderia ser.

            - Foi mal... – murmurou Charlie, enfim – É que... Eu pirei... Principalmente depois que as sombras quase devoraram meu irmão e...

            - Isso não vai ajudar!

            Charlie se calou. Agora sim não sabia o que dizer, se ia embora e deixava a garota sozinha, ou se arriscava algumas palavras até falar a coisa certa. Ele ainda estava em conflito com seus próprios pensamentos, mas foi Roxanne quem falou.  

            - Achei que ele tivesse poderes, o guarda-roupa... Todo esse tempo, criando aquelas coisas... Achei que guarda-roupa fosse mágico... – subitamente, um sorriso brotou no rosto da jovem – Mas não é... Não é o guarda-roupa... “Peraí”! Não foi o guarda-roupa! Sou eu! Eu fiz tudo isso! Caramba! Eu fiz... Eu fiz aquilo... Isso é incrível!

            - Não, Roxanne! Isso é perigoso e...

            - Leve-me até esse tal Munphus! Quem é esse velho bibliotecário? Eu quero saber! Aposto que ele é cheio de respostas!

            Charlie ficou paralisado. De repente não sabia mais o que fazer ou como reagir.

            - Quero ver o Meio-Termo! – ela disse – Quero saber com o que estou lidando! E já!

            - Não, Roxanne, não podemos...

            - Olha só! Eu passei os últimos dias à beira da loucura, eu pensei que estava ficando doida, vendo aquele monte de coisas. Então, de repente, você vem aqui e tem todas as respostas para as minhas perguntas (ou quase todas)! Você quer que eu fique parada fingindo que não é real? Você é quem está louco! Não importa o que diga, eu vou te seguir e chegar até esse velho! Não importa o que isso me custe!


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