Inspirados - o Andarilho do Tempo escrita por Pedro_Almada


Capítulo 14
À Prova de Fogo


Notas iniciais do capítulo

não deu pra revisar... qualquer erro, avisem xD

boa leitura!



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À Prova de Fogo

            - Eu desenvolvi essa técnica. Trata-se de mantê-lo em uma redoma em chamas – começou Tharsos, segurando seu chapéu entre os dedos – a mente humana possui limites, rapaz. A de um Inspirado, no entanto, é diferente. Os limites podem ser rompidos, se conseguirmos remover os nós criados com os sentimentos que te impedem de ver com clareza. Cada um desses nós atuam em seu cérebro, cobrindo os pontos responsáveis pela dominação dos elementos, movimento das partículas a sua volta e a forma Elemental de cada substância. Se fosse aprender isso da forma convencional, você estaria em uma montanha meditando com monges e macacos de sunga, até que pudesse desfazer os nós em sua cabeça, o que levaria anos e anos. Mas aqui, meu rapaz, iremos rompê-los na marra.

            - E isso vai machucar? – Charlie arriscou a pergunta.

            Tharsos deu uma risada.

            - Meu rapaz, você acha que o fogo é uma brisa de verão? Não seja tolo, é obvio que machuca. Dói muito, mas não se preocupe, você não vai morrer, pelo menos estaremos torcendo para que não aconteça. Assim que for envolvido pelas chamas, você, involuntariamente, vai pensar: “Está quente”, “estou queimando”, “vou morrer”. – Tharsos imitou uma voz fina e esganiçada - São os pensamentos óbvios, as primeiras coisas que se passam na cabeça de alguém quando se está nessa situação. Mas aí é que está o ponto. Você vai convencer a si mesmo de que o fogo não lhe pode fazer mal, que não há nada tentando te queimar até que, finalmente, você possa desaparecer com o fogo com sua simples convicção de que ele não exista.

            Charlie ficou pensativo por um momento.

            - Esse nanico é doido, Sr. Munphus. Vamos embora.

            Charlie virou-se, mas, antes que pudesse pensar em qualquer outra coisa, tinha desabado. Por muito pouco não estatelou o rosto no chão, impedindo o impacto com as mãos. Olhou para o lado, os olhos astutos de Tharsos estava a menos de trinta centímetros da expressão pasma do garoto. Como chegara ali tão rápido?

            - Pode fugir, moleque. Mas, sabe o que dizem... Se você perde um leprechaun de vista uma única vez, você nunca mais o vê. É bom estar ciente de sua decisão, pois eu não estarei aqui para ajudá-lo se resolver mudar de ideia.

            Charlie engoliu em seco. A forma como o homenzinho falava parecia a situação parecer ainda mais séria e, por menor que fosse, era igualmente assustador. Charlie se sentou no chão, olhando para os próprios pés. Quando se virou para o lado, Tharsos não estava mais lá.

            - Então? – Tharsos perguntou, novamente perto da cerca onde as ondas quebravam – continuamos?

            Charlie assentiu, ainda hesitante.

            - Você está com ela, Munphus? – perguntou Tharsos – a dracma perdida.

            - Ah, sim, claro.

            Munphus enfiou a mão no bolso, retirando uma moeda relativamente grande, cunhada em ouro com as bordas incrustadas de pequenas esmeraldas. O brilho verde lembrava em muito os cascos reluzentes dos besouros de Munphus.

            O bibliotecário atirou a moeda em direção a Charlie, que agarrou-a no ar.

            - Isso é uma dracma perdida, Charlie. Pertencem aos antigos guerreiros romanos. Foram cunhadas apenas doze delas e, o soldado que a tivesse, jamais sentiria dor quando fosse ferido em batalha. Antigamente era usado pelos guerreiros mais fortes. Assim eles poderiam lutar sem serem surpreendidos pelo principal inimigo: a dor. Enquanto tiver essa moeda em mãos, você não sentirá dor alguma. Compreende isso?

            Charlie assentiu.

            - Helena e Ernesto foram buscar uma pessoa que irá nos ajudar com o seu treinamento – avisou Munphus.

            - Quem? Aquela piromaníaca? – queixou-se o Leprechaun – ela vai queimar todo o meu jar... Ah, falando no diabo!

            Eles olharam para o céu. Entre os galhos da enorme árvore, surgiram duas Garzas d’Uthopia. Em uma delas estava Helena e Ernesto. Charlie ficou encantado com a viajante da segunda Garza. Era uma bela jovem de cabelos castanhos, arremessados contra a força do vento. Os olhos âmbar reluziam com a luz do sol, destacando as bochechas pálidas. Naquele momento Charlie sentiu um estranho calor dentro do peito, uma espécie de promessa que não sabia decifrar.

**********************************************************************

            O grupo estava reunido no jardim. Helena e Ernesto estavam de pé, logo atrás de Andrew, sem dizer uma única palavra. A ruiva apenas olhou para Charlie e, com um sorriso gentil e tenro, cumprimentou. “Não se preocupe”, ela gesticulou com os lábios. Charlie acenou em agradecimento, sentindo a tranqüilidade de Helena envolvendo-o, aos poucos.

            Munphus deixou o amigo leprechaun e se dirigiu à recém-chegada.

            - Você deve ser Pyrah – perguntou ele, inexpressivo.

            - O senhor é Razar Munphósteles La Fay – ela disse – Ouvi falar.

            Charlie fitou o velho com surpresa, percebendo que seu irmão também o fizera. Jamais imaginara um nome tão peculiar a um velho que parecia fadado a mofar entre os livros de uma biblioteca antiga.

            - Sim. Creio que já conheça minha sobrinha, Helena La Fay.

            Pyrah assentiu, não tão animada. Helena pigarreou ao fundo, mexendo nos cabelos de forma pouco a vontade. Ambas pareciam concordar em não se amarem mutuamente.

            - Ouvi dizer que você é muito talentosa com a pirocinese.

            - De fato – ela afirmou.

            Munphus lançou um olhar cheio de significados em direção a Charlie, ainda que o garoto não soubesse compreender o motivo daquele olhar. Houve uma pontada de hesitação. Munphus parecia não confiar na garota.

            - Pois bem... Você já está ciente dos últimos acontecimentos. Precisamos de toda ajuda possível. Para isso, quero que me ajude a preparar o jovem ali. Venha, Charlie.

            O rapaz caminhou em direção ao velho. Pyrah o encarou até que se aproximasse, sem desprender os olhos de Charlie.

            - Charlie, essa é Pyrah. Pyrah, Charlie Logan.

            Ela acenou, simplesmente.

            Munphus explicou à jovem a situação, sobre a redoma de fogo e a que o rapaz deveria submeter-se. Não seria fácil. Pediu que ficassem no jardim apenas Tharsos, Munphus, Pyrah e Charlie, para que pudessem trabalhar. Sem questionar, o restante entrou na casa. Helena desejou boa sorte ao garoto com um abraço e, lançando um olhar fulminante sobre Pyrah, desapareceu de vista.

            - Bem, Charlie... Você precisa manter a moeda em sua mão. Enquanto a tiver, não sentirá dor. Pyrah irá te envolver com a chama, sem tocá-lo, mas vai ficar muito quente. Nesse meio tempo, você precisa se concentrar. Não deixe nenhuma limitação te prender. Você precisa se focar em suas habilidades. Quando a chama te cobrir, precisa reinventá-la, convencer a si mesmo de que aquilo não é fogo e não pode te queimar. Você ficará com a moeda por cinco minutos e, depois disso, Tharsos irá invocá-la novamente para sua bolsa.

            Charlie fitou o leprechaun, que tinha em mãos uma bolsa de coro amarrada a um barbante feito com pelos de crina de cavalo.

            - Por que o fogo? – perguntou Charlie, pouco se importando o quão trêmula sairia a sua voz.

            - É o primeiro . O ponto do seu cérebro que tem afinidade com o fogo, o calor, e está associado ao ímpeto das emoções. A aproximação com as chamas podem ajudá-lo a despertar esse ponto latente e desfazer o . Você precisa se livrar dessas emoções, esses sentimentos que irão engolfá-lo assim que sentir medo, pânico... Acha que pode fazê-lo, Charlie?

            - Sim, senhor Munphus. – ele não tinha a menor ideia – o que vai acontecer com o meu corpo? Eu posso até não sentir dor, mas...

            Munphus ficou em silêncio.

            - Não se preocupe, você vai se sair bem. Uma queimadura aqui, outra ali... – falou Tharsos – agora vamos logo com isso, estou com fome e a menina no porão já deve ter feito cogumelos com açafrão. É melhor aquele gato fedido nem chegar perto da minha refeição.

            Pyrah tomou sua posição. Apenas Charlie e a garota estavam no centro do jardim, enquanto Tharshos e o bibliotecário se afastavam para assistir.

            - Charlie, certo? – Pyrah falou.

            - Exato.

            - Não se preocupe, Charlie – avisou a garota – serei cautelosa.

            Intimamente Charlie estava agradecido, mas não sabia o quão confiável eram aquelas palavras. Ainda assim, havia a promessa no ar, o calor inexplicável que emanava dos olhos âmbar da jovem Emissária.

            - Pode começar! – Charlie apertou firme a moeda em sua mão.

            - Apenas uma redoma, Pyrah! – lembrou Munphus.

            Começaram.

            Pyrah, a quase dez metros de distância de Charlie, ergueu as mãos em direção ao garoto.

            - Destoa!

            Fagulhas percorreram todo o seu corpo. Cabelos, pontas dos dedos, olhos. O ar quente começou a brotar de seu corpo e, com um último aceno, abrindo as mãos, uma linha de fogo brotou dos dedos, projetando chamas serpenteantes que rastejaram ligeiras até o garoto.

            O fogo subiu acima da cabeça e Charlie e, com um segundo comando de Pyrah, as camas começaram a circulá-lo, criando um vórtice intenso a sua volta. As chamas aumentaram e engolfaram o garoto. Do lado de fora não podia ser visto. Charlie estava sozinho, acompanhado de uma dracma perdida que, até o momento, funcionava.

            Lembrou-se das palavras do velho e como dominar a situação. Mas ainda havia o medo, que parecia quase sólido naquele momento. Com os olhos fechados, tentou afastar o nervosismo mas, tamanha era a claridade, nem mesmo suas pálpebras podiam afastar a luminosidade do fogo, que crepitava ameaçadoramente. Charlie teve a sensação de estar na língua de um dragão, sentindo o hálito quente enquanto esperava ser tragado pelo fogo. Não sabia o que fazer.

            - Pare! – gritou ele – PARE!

            Ninguém pareceu ouvi-lo, as chamas ainda dançavam a sua frente. Ele olhou o próprio braço e percebeu que sua pele estava avermelhada, como se tivesse sido exposta ao sol por tempo demais. Sem a moeda, ele sabia, a dor deveria ser cruciante.

            - PARE!

            Nada. Seu corpo estremeceu. E se o leprechaun invocasse a moeda, a dor o derrubaria. Odiou a garota, por achar que poderia confiar nela, odiou a si mesmo por aceitar aquele jogo doentio e, depois de tudo, odiou o irmão por tê-lo seguido até a escola. Seria melhor estar em casa.

            A redoma de fogo começou a se estreitar. O pânico invadiu sua mente como uma pedrada. O tempo passava, as chamas se aproximavam e nenhuma ideia parecia ser boa o suficiente para ajudá-lo.

            Sua pele estava irritada com o calor, seus cabelos começavam a ficar chamuscados. Por mais que se esforçasse em lembrar como fizera os ratos se liquefazerem, não conseguia pensar em nada. Estava preso ali dentro e, mesmo gritando, ninguém o respondia ou corria em seu apelo.

            Subitamente, a moeda sumira. Do nada, como fumaça, não estava mais entre seus dedos. A dor o engolfou.

            Seu grito fora convincente o bastante para fazer Pyrah apagar as chamas. Charlie caiu de cócoras no chão, sentindo cada centímetro de pele queimando, uma dor que não acreditava poder existir.

            - O garoto ainda é muito imaturo – falou Tharsos – não vale a pena prosseguir com isso, só irá nos fazer perder tempo.

            - Precisamos tentar, Thor – falou Munphus – precisamos de toda ajuda possível.

            O leprechaun encarou o garoto jogado no chão, sentindo nada senão frustração. O homenzinho não estava convencido, não conseguia ver em Charlie tanta esperança que Munphus depositava.

            - Eu... Quero tentar de novo... – a voz de Charlie soou fraca, mas decidida.

            Pyrah observou a expressão de dor mesclada com fúria estampada no rosto avermelhado de Charlie. Naquele momento, ela não sabia explicar, mas podia sentir um estranho calor emanando do corpo daquele jovem. Um simples humano.

            - Acho que ele consegue – falou Pyrah.

            Charlie direcionou seu olhar a ela, acenando em agradecimento. Pyrah assentiu com um sorriso discreto.

            - Ok – resmungou Tharsos, enfiando a mão na bolsinha de couro e retirando a dracma perdida – mais uma vez. Se o garoto morrer, a culpa não é minha. Tome a moeda, moleque.

            - Prepare-se Pyrah – pediu Munphus – vamos começar mais uma vez.

            Charlie se levantou, sentindo a queimação esvaindo aos poucos. Munphus pegou um pouco de água, deu ao rapaz e afastou-se em seguida. Estavam, agora, muito atentos ao próximo movimento de Charlie. Ele próprio estava em dúvida a respeito.

            - Destoa!

            As chamas brotaram de Pyrah mais uma vez e serpentearam em volta de Charlie, formando um segundo vórtice de fogo. Pressionando a moeda com mais ansiedade, o rapaz tentava manter a calma e pensar. O que poderia fazer? Como ordenar que o fogo deixe de ser fogo, ou convencer a si mesmo que aquilo não era real? Naquele momento ele percebeu como os olhos poderiam, em alguns momentos, limitar a mente, sua criatividade.

            Mais uma vez, ele fechou os olhos, cobrindo o rosto com a camisa e as mãos, impedindo, o máximo possível, que a luz pudesse atravessar-lhe as pálpebras. Sentou-se no chão e colocou a cabeça entre os joelhos, tirou a camisa e enrolou-a em sua cabeça. Logo, sua visão não era nada, senão uma enorme mancha negra. Escuro como a noite.

            Sem o calor, sem a luz, era mais fácil.

            - Não há fogo aqui – murmurou ele – porque acreditar nisso? Não posso vê-lo. Logo, não há fogo.

            Seus pensamentos estavam focados na noite em seus olhos, tudo o que podia ver.

            - Charlie!

            Alguém tinha gritado, mas ele não tinha tempo, precisava encontrar um jeito de afastar as chamas.

            - Charlie!

            Não agora. Só mais um pouco, ele sabia que conseguiria.

            - CHARLIE!

            O rapaz sentiu uma mão agarrá-lo pelos ombros e puxá-lo com toda força. Ele abriu os olhos diante do movimento surpresa. Não havia fogo, assim como não havia mais ninguém à sua volta. Tudo ao seu redor era sombra. Mas havia um problema. A escuridão parecia viva, mexia-se sorrateiramente. Uma mão insistente puxava-o furiosamente.

            - Destoa!

            Então, novamente, a luz alaranjada do fogo devorou a escuridão, as sombras desapareceram como fumaça, cinzas e poeira.

            Charlie piscou algumas vezes, perplexo. Não conseguia entender o que acabara de acontecer.

            - ESSE MENINO É UM PROBLEMA, MUNPHUS! – gritou Tharsos, furioso – VOCÊ VIU O QUE ELE FEZ? VOCÊ VIU?

            Charlie olhou a volta, apavorado. Do que o leprechaun estava falando: o que, raios, ele estava falando? Suas mãos estavam trêmulas e suas pernas recusavam-se a se levantar. Os dedos de Munphus estavam cravados no ombro de Charlie. Ao seu lado, o velho ofegava, o suor escorria em sua testa enrugada. Pyrah encarava os dois caídos no chão com a mesma expressão de incredulidade.

            - Você, Charlie... – murmurou Munphus, conciliando as palavras com o pouco ar que conseguia sorver – Você... Chamou as sombras.


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Notas finais do capítulo

reviews?