Haunteds escrita por LadySpohr


Capítulo 2
Castelo de Cartas


Notas iniciais do capítulo

Pra Carla, a quem agradeço o apoio que tem me dado.
S2



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The way you move is like a full on rainstorm. (And I'm a house of cards)

O jeito que você se move é como uma completa tempestade. (E eu sou um castelo de cartas)

Quando o vi eu sabia que iria ter problemas. Quando Isabela tinha me entregue a relação dos candidatos a presidência do conselho estudantil na noite passada eu tinha me preparado para as fichas e informaçãos de sempre, de que ninguém conseguiria me vencer numa reeleição. Mas eu tive uma surpresa.

- De onde veio isso? - eu ergui uma folha de transferência de universidade diante dos olhos dela. Estávamos na minha sala de estudos em casa, cada uma na  sua cadeira estofada preferida, de frente uma para outra, com a mesinha de vidro no centro, roçando os pés no meu tapate de pele branco – Não lembro disso no ano passado – eu ergui as sobrancelhas, e o vento das janelas altas do lado esquerdo da sala roçou no meu cabelo longo e castanho-claro, deixando-os um pouco bagunçados.

Isabela sorriu, fazendo ruguinhas nos cantos dos olhos verdes.

- É porque ano passado não estava aí, ué – ela puxou uma pasta verde, a última de todas que estavam espalhadas pelo tapete e mesinha – Felipe Henrique Ross, transferido a um mês, notas impecáveis, curriculum moral impecável, maravilhou todos os professores desde sua chegada com sua capacidade inata de fazer críticas bem elaboradas e racionais de vários assuntos, assim como atraiu a atenção do professor mais exigente de toda a universidade, o p.h.d Emílio Steinbach, que atua tanto em áreas sociais, quanto nas exatas em nossa instituição – Isabela colocou o papel à minha frente na mesa de vidro – Parece que finalmente surgiu um rival a sua altura, Amanda que conseguiu essas informações pra nós, está na mesma turma que ele. Ela disse que o tal Felipe é foda.

Dei um abanar de mão.

- Ele pode ser, mas se pensa que pode me derrubar assim do nada, ele que tire o cavalo da chuva – eu estava observando as notas do indivíduo, divididas em blocos, tanto da outra universidade, quanto as novas. Não pude deixar de me impressionar, afinal, ele era mesmo um nerd de primeira classe, como eu. Notas todas acima de oito. Impecável – Hum, ele é muito bom mesmo. Mas isso não significa que tenha conquistado popularidade em um mês Isabela.

- Fala sério, Laura?! Ele chamou a atenção do Steinbach! Nem você mesma conseguiu isso até hoje, é questão de tempo até ele conseguir a simpatia de todo mundo! - minha amiga parecia incrédula, ao olhar meu rosto, como se eu não estivesse funcinando bem do cérebro. Mas não só estava, como já estava a mil por hora.

- E o que isso importa? - dei de ombros, pensando que ele podia ser o máximo, mas ainda não passava de um desconhecido do corpo de estudantes – A presidência se ganha por popularidade e competência, e isso eu tenho de sobra – apanhei um bombom na caixa ao meu lado, no sofá – E ainda tenho três anos de experiência nisso, como ele vai poder ganhar de mim?

- Ele tem apoio do Steinbach, e você bem sabe que ele manda mais aqui do que o próprio reitor – de novo Isabela expôs o ponto com determinação.

    Bufei, impaciente, e dei um olhar mau-humorado pra ela, que não se abalou, afinal é minha amiga desde a infância.

    - Isa, quem vota são os alunos. Esquece.

    - Tá bom – ela pulou do sofá dela pro meu, colocando os pés pra cima no encosto, ficando de ponta cabeça, os cabelos ondulados e cor de mel, escorrendo no chão – Só estou tetando te abrir a mente, às vezes não dá pra ganhar tudo na vida. E convenhamos, ser a presidente do conselho não é bem algo que você ama ser.

    - Mas é necessário que eu seja – retorqui, fitando seus olhos verdes, que sempre tinham aquela ponta de preocupação comigo. É por isso que eu amava Isabela, ela era assim, doce e preocupada. O tipo de pessoa que se odeia magoar – E não há mais discussão em torno desse assunto, está bem?

    - Como quiser, mas não diga que não avisei – ela sorriu, e estendeu a mão pra mim, pedindo um bombom.

    Ao comermos em silêncio me lembrei das palavras do meu pai, logo antes de prestar Vestibular.

    - Honre o nome e o dinheiro que gastei com você durante todos esses anos. Espero que você não seja uma decepção como sua mãe foi – seus olhos sobre mim eram duros, e de uma falta de carinho que eu nunca vi em mais ninguém. Meus punhos se fecharam, ao ouvir o comentário sobre minha mãe. Ele não tinha o direito de falar nada dela – E seu irmão parece seguir pelo mesmo caminho – ele continuou – Você é inteligente, Laura, mas não pense que vou deixar desperdiçar isso com uma escolha errada. Seu curso será Direito.

    - Mas pai... - comecei, mas apenas com um movimento autoritário de mão vindo dele, eu parei. Se eu continuasse correria sérios riscos, não apenas mentais, mas físicos. Eu lembrava bem das esquimoses de minha mãe.

    - É só isso. Prepare-se, eu pagarei o que for necessário. Não terei uma filha fracassada. Agora vá, tenho negócios a tratar.

    Lembro de ter saído e ido pro quarto, e lá eu chorei por horas. Amassando a camiseta do meu uniforme, e manchado meu rosto de lágrimas de infelicidade. Não quis falar com meu irmão, Cristian, queria que ele pensasse que eu estava feliz, e que não se incomodasse comigo. Que fosse feliz fazendo e sendo o que quisesse. A missão de ser o alvo de dardos seria apenas minha. E se tivesse que ser atingida, pro meu irmão ter um futuro mais feliz que o meu, eu deixaria. Ele era a única coisa que me restava. Ele e Isabela. Eu passei no curso de Direito, e estava no terceiro ano, e cumpri a exigência de meu pai, me mantendo a primeira em tudo. Não era qualquer plebeu que iria me tirar o reinado. Revoluções devem ser sufocadas desde o início, portanto era isso que eu faria. O que mais um cara como ele iria querer, do que ter um cargo dentro do conselho? Além de dar prestigío dentro da própria universidade, as portas se abririam pra ele no mundo profissional. Ele seria um vencedor logo antes de se formar. E ninguém com alguma coisa dentro da cabeça recusara um cargo até hoje. Mas pra isso houve algum suor.

    - Eu não acho que deva haver mais nada, Laura, todos os cargos são esses há anos.

    Eu estava frente a frente com o reitor Daniel de Souza. Todo mundo sabia que ele era mais fácil de dobrar que maria-mole, embora ele estivesse bem firme ao quanto me negar o que eu queria.

    - Por favor, reitor, seria mais uma oportunidade de mostrar que o conselho está aberto a todos, tenho até um candidato em mente – expliquei, com seriedade – Sabe que o maior requisito para se estar no conselho é a competência acadêmica, e bem sabe o senhor, que aqui é o que não falta. Além de que, isso daria ainda mais renome a universidade, os melhores alunos, os melhores profissionais, os melhores de suas áreas, saindo deste lugar – eu dei um sorriso intencional – Formados na sua gestão. E todos merecem a chance de saírem daqui com a vitória embalada de presente pras suas vidas.

    Eu juarava que podia ver as engrenagens do reitor trabalhando através de seus cabelos bem cortados e pretos. Ele estava olhando pras mãos apoiadas na mesa, o suor borbulhava em sua testa.

    - Que cargo seria aberto, Laura? - ele finalmente ergueu seus pensativos olhos castanhos de volta pro meu rosto.

    - Meu secretário ou secretária particular. Sabe que meu cargo não é o que se chamaria de fácil de administrar. Sempre preciso de toda a ajuda que houver disponível.

    - Mas você já tem uma vice-presidente – ele lembrou, as mãos unidas, e a expressão dos olhos expectante. Ele estava esperando por um argumento, melhor do que meu excesso de trabalho. Muito bem.

    - Ela tem suas tarefas de vice, que são enormes, eu não posso sobrecarregá-la com mais. Não seria nada ético. Cada um tem suas responsabilidades  – e eu nem estava mentindo, de qualquer forma. Isabela sempre estava com alguma dor de cabeça pra resolver com o restante do pessoal do conselho.

    O reitor ainda ficou mais um tempo em silêncio reflexivo. E eu pela primeira vez aflita, pela possobilidade de um pedido meu, Laura Bonfleur, a estudante mais promissora de Direito, filha da ex-miss mais linda do país, Andréia Silva e do grande empresário, Júlio Bonfleur, não ser atendida.

    - Tudo bem, eu deixarei que abra um novo cargo, Laura.

    Eu sorri, radiante. Eu tinha conseguido.

    - Mas há uma condição.

    Ah, merda. Lá vinha problemas. Me esforcei pra manter meu sorriso aceso.

    - Você abrirá edital, pra que todos possam participar. Como você mesma disse, todos devem ter uma chance. Prepare as entrevistas, e envie os curriculums pra mim avaliar se será uma escolha justa. Quem era seu candidato, já cotado?

    - Felipe Ross – respondi, sem precisar tomar fôlego.

    O diretor pareceu se alegrar com minha escolha prévia.

    - Laura, você tem mesmo olho clínico para jovens promissores. O rapaz é mesmo um excelente nome para o novo cargo.

    Eu não podia ter o impecilho de um edital, e um monte de gente pra entrevistar. Esse cargo teria de ser do Felipe. Quando se trata do inimigo, o melhor é mantê-lo o mais próximo possível. E além do mais, havia a cláusula de trabalho dos cargos. Eles não podiam se candidatar a presidência até a gestão de que fizesse parte fosse substituída. Uma leizinha injusta pra alguns, que acarretava indiferença em outros, e que era minha maior arma no momento.

    - E então? Acha que ainda precisamos de edital?

    - Muito bem, entreviste o rapaz, e faça o convite, Laura. Caso ele não aceite, o que na minha opinião é improvavél, visto que é uma oportunidade de ouro à um bolsista, abra o edital.

    - Eu farei, reitor. Obrigada pelo seu tempo.

    - É sempre bom recebê-la Laura, tenha uma boa noite.

    Eu suspirei de alívio ao sair da sala do reitor. Pelo menos essa parte estava encaminhada.

    Agora só restava falar com o indivíduo em questão. E foi isso que agendei com o resto do conselho.

    - Bom, suponho que alguém a mais lhe ajudando, diminua um pouco a tensão de todos nós aqui – disse Fábio, no seu lado da mesa, ajeitando os óculos no rosto moreno e bonito. Ele era representante do curso de Medicina, e uma das pessoas mais generosas que eu tinha conhecido, raramente pensava nele mesmo em primeiro lugar.

    - Eu, sinceramente não vejo muita mudança pra nós, mas se você acha que devemos aceitar mais um nota dez, sabe que estaremos todos de acordo! - Letícia ergueu o punho em gesto de vitória, o que fez todo mundo rir, incluindo eu – Amanda, você é colega do cara, como ele é? - nessa hora vi aquele brilho de interesse que só Leti conseguia ter em seus olhos castanho-claro. Ela não estava nem aí pras notas dele. Todos na sala sabiam que o que ela queria era mais um troféu pra sua coleção. O que claro, gerou algumas risadinhas abafadas e revirar de olhos.

    Amanda tossiu delicadamente em seu lenço de papel, sua gripe estava cada vez pior, mesmo que isso não diminuisse sua beleza. Amanda era do tipo de parar o trânsito. Alta, loura, e escultural. Nem mesmo usando óculos deixava de ter charme, o que era um resfriado?

    - Inteligente, comunicativo e muito, muito astuto. Todos ficam babando quando ele fala – contou, o olhar azul distante, como se estivesse mergulhada numa lembrança histórica importante – Acho que ele tem um futuro e tanto pela frente.

    - Se souber usar seu potencial – lembrou Alexandre, nosso integrante mais duro e crítico – Notas não querem dizer competência.

    - Isso eu vou avaliar – cortei, antes que ele começasse com um de seus         discursos habituais sobre capacidade versus notas excelentes – E até você baba quando ele fala, Amanda?

      Ela sorriu, mostrando seus dentes brancos e alinhados.

      • Devo admitir que         sim, babo completamente.

      • Então o cara é         bom mesmo! - riu Douglas do meu lado, sendo retribuído pelo pessoal         – Pra fazer nossa Amanda babar ele deve ser foda mesmo!

      • Muito bem, eu vou         entrevistá-lo. Alguém contra a decisão?

      • Não – disseram         todos em unissono.

      • Nunca recusaríamos         um cérebro desse – complementou Fábio, com a vista pregada no         curriculum que destribuí do Felipe para todos – Ele deveria         tentar Medicina depois que finalizar Antropologia.

      • Tá maluco?! -         exclamou Ricardo, na minha ponta oposta da mesa, rindo, com suas         covinhas adoráveis – Quer que ele entre em colapso nervoso antes         mesmo de completar o primeiro ano?

      Fábio sorriu tranquilamente, como sempre.

      • Eu ainda estou são.

      • Você é exceção         a regra, caro amigo – Daiane, bateu nas costas dele, enquanto nós         ríamos.

      • Muito bem, pessoal.         A reunião de hoje está encerrada. Em breve teremos a honra de         receber um novo membro valioso.

      • E esperemos que         seja útil – resmungou Alexandre, afastando a cadeira com as         pernas.

      Isabela ao lado dele virou os olhos.

      • Hoje você está         com a macaca, Alex, o que aconteceu?

      • Isso se chama falta         de sexo, Isa! - gritou Ricardo, já atravessando a porta de saída,         junto com Fábio e Amanda, que riram alegremente.

      • Vai se foder,         Silva! - retrucou, Ricardo, levando no bom humor e sorrindo.

      A resposta foi um estouro de gargalhadas.

      Depois que todos eles saíram, eu fiquei apenas acompanhada de Isabela, que admirava pensativamente o curriculum de Felipe Ross.

      • O que está te         preocupando agora? - indaguei, sentando na cadeira ao lado, dela e         suspirando – Já está tudo resolvido.

      Pela primeira vez eu vi a incerteza refletido nos olhos da minha melhor amiga.

      • Eu não sei, Laura.         Tenho o pressentimento que este cara vai se tornar uma pedra no seu         sapato. E como Amanda o descreveu como astuto, acho que vai ser         esperto o suficiente pra calcular suas pretensões assim que         apresentá-las – ela enrolou uma mecha de cabelo nos dedos e a         admirou – Como já tinha dito: você achou um adversário à sua         altura.

      • Ninguém         está à minha altura, Isa – tirei uma escova de cabelo da bolsa,         ignorando o erguer de sobrancelhas de minha amiga, assim como sua         expressão cética. Ela às vezes enxergava demais         – Você         vai ver, ele estará aos meus cuidados num estalar de dedos.

      • Espero que tenha         razão, ou terá uma rebelião nas mãos – murmurou ela, torcendo         os lábios. Se tinha uma coisa que irritava Isabela, era quando eu         fazia pouco de seus conselhos. Mas nesse caso não era bem isso,         dentro da minha cabeça, onde habitava a Consciência e a Razão,         elas me alertavam o mesmo que ela: havia um rival à minha altura.         Eu querendo ou não. E só me restava esmagá-lo na batalha antes         que ele pudesse ter a chance de fomentar uma guerra. Essa técnica         de suborno tinha sido utilizada com dois membros do conselho: Fábio         e Amanda. Por quê não funcionaria com Felipe?

      Eu estava certa do meu sucesso até vê-lo ali, rodeado por Amanda, e ao que parecia ser toda a turma do terceiro ano de Antropologia. Puta que o pariu, ele era mesmo o papa bola da vez!

      Isabela fora que marcara a entrevista dele comigo, logo após a reunião da tarde anterior. E agora eu estava parada em pé, com minha pilha de livros na mão, observando aquele cara, encantar todo mundo, tal qual a flauta de um encantador de serpentes. Eu não podia ver seu rosto, porque estava de costas pra mim, mas quando pensei nisso, ele girou a cabeça, encontrando meus olhos. Eram escuros, e no momento estavam curiosos. Então Amanda me notou:

      • Ei, Felipe, é ela,         a nossa presidente! Vem cá, Laura! - ela acenava com contentamento,         os cabelos louros balançando.

      Que escolha eu tinha? Não sou do tipo que tem medo de bicho papão. E o Felipe parecia cada vez menos com um, a medida que fui me aproximando do grupo enorme. Todos me cumprimentaram, menos ele. O que causou algumas expressões espantadas.

      • Sua entrevista é         daqui a dez minutos, Felipe – lembrei, estendendo a mão.

      • Eu         não esqueci – seu sorriso foi amigável e nada ameaçador ou         desafiador. Com sinceridade, ele estava me avaliando sim, mas não         de modo invasivo, apenas com uma curiosidade que me pareceu bem         inocente. O que me fez notar que ninguém tinha falado de mim pra         ele, mesmo – Fiquei surpreso com o convite.

      • Bem, podemos ir         adiantando? - indaguei, querendo sair do meio daquela muvuca e         parar de sentir aquela sensação incomoda de que todos prestavam         atenção em cada sílaba pronunciada por nós dois – Eu estou         indo pra sala de reunião.

      • Ah, tudo bem –         ele olhou para Amanda – Nós terminamos o assunto depois – ele         sorriu, e alguns resmugaram em vista da sua evidente saída – Eu         vou pra aula daqui a pouco gente, parem de ser tão criancinhas!

      A maioria riu, alguns se dirigindo aos corredores que levavam às salas, outros se distraindo com algo que Amanda começou a dizer. Felipe virou-se na minha direção.

      • Acho que podemos         ir.

      Eu respondi com um aceno de cabeça e comecei a andar, com ele fazendo o mesmo tranquilamente ao meu lado. Felipe era mais alto que eu, com um cabelo bonito escuro e liso, que contrastavam com sua pele pálida, e combinavam com um par de olheiras abaixo dos olhos.

      • Problemas pra         dormir? - comentei, observando as manchas escuras.

      • Eu gosto da         madrugada – foi sua resposta, educada, mas desatenta. Ele estava         observando o céu cheio de estrelas acima de nossas cabeças –         Está bonito hoje.

      Eu não precisei erguer o rosto, porque as luzes se refletiam em seus olhos, como se fossem espelhos. Não podia negar que eram olhos que chamavam a atenção, eram grandes, e tinham alguma coisa misteriosa. Ele não seria um tipo fácil de conhecer.

      • Sim, está –         concordei, ausente, verificando se tinha pego mesmo os livros         necessários na biblioteca e me esquivando de coisas sem importância         como céus estrelados – Eu só tenho meia hora pra entrevistar         você, desculpe a falta de tempo.

      • Eu não me importo,         eu dou respostas rápidas – ele olhou pra mim diretamente, como se         soubesse exatamente o que ia propor na sala de reuniões. Eu segurei         seu olhar com a segurança de quem já tinha enfrentado olhares mais         intensos. Tá, nem tanto, mas enfim.

      • Ser rápido é um         pré-requisito pro convite que pretendo fazer, de qualquer forma –         respondi, ainda sustentando aquele olhar de “eu sei o que você         está tramando”.

      Ele desviou a vista pro ambiente, onde alunos corriam pra sala de aula, ou ficavam onde estavam mesmo, porque de seu ponto de vista era mais interessante. No que será que noso novato se encaixava? Primeiro ou segundo grupo? Ou talvez ele fosse do tipo que podia intermediar os dois rótulos. Ricardo era assim, não precisava de muitas aulas pra reter informações, os professores ficavam loucos com ele, de raiva e de amores.

      Felipe me acompanhou sem falar. Eu não puxei conversa, estava focada demais no que teria de fazer. Quando ele se sentou de frente pra mim e cruzou as mãos em cima da mesa, e me lançou uma olhadela curiosa, vi que tinha chegado a hora.

      • Bom, Felipe, seu         curriculum me foi encaminhado a uns dois dias atrás – comecei,         sentada confortavelmente na minha cadeira, girando uma caneta         esquecida por ali entre os dedos – E eu, como presidente do         Conselho Estudantil, achei você muito interessante, e este conselho         só aceita estudantes com média excelente e comportamento bom,         então discuti com o grupo, e achamos uma boa ideia ter você no         conselho e en... - a porta se escancarou, e uma garota alta e de         cabelos escuros sem fôlego nos encarou.

      • Ai, meu Deus,         desculpe! - ela estava mais vermelha que um pimentão. Sua expressão         era tão desolada de culpa que tive de me segurar pra não rir.

      • Tudo bem, está         procurando alguém? - perguntei, sorrindo pra ver se ela voltava a         colocar os olhos nas órbitas.

      • Ahm... essa é         minha irmã, Laura, Fernanda – se pronunciou Felipe, com o rosto         se tingindo de um leve rosa. Ah, finalmente! - Como conseguiu me         achar?

      • Perguntei pra um         bando de gente, quem tem boca vai a Roma, irmãozinho – ela me         observou, e deu um sorriso nervoso – Você é a presidente do         Conselho Estudantil.

      Eu sorri de novo. Ela era adorável. Parecia ter unz quinze anos, e olhos da mesma cor que os do irmão. Mas não havia toque de mistério neles, eram transparentes como água, o que estava em seu rosto, abrangia os olhos.

      • Eu sou, prazer te         conhecer Fernanda – inclinei a cabeça em cumprimento, e ela         retribuiu com um sorriso mais calmo – Acho que quer falar com seu         irmão.

      • Ah, não, só vim         entregar as chaves da casa – Fernanda andou e ficou ao lado dele –         Vou dormir na casa do Cristian hoje, ele tem uma pilha de filmes         novos pra gente ver! - ela enfiou as chaves na mão do Felipe, meio         pulando de alegria. Me lembrei de quando tinha quinze anos, e minha         mãe ainda estava viva... Abanei a cabeça, afastando as lembranças,         não era hora pra elas darem as caras.

      • Desde que você         esteja na escola no horário. Eu não esqueci do telefonema de         semana passada – Felipe guardou as chaves no bolso e fez uma         careta pra irmã, que olhou pro teto.

      • Aquilo foi acidente         isolado.

      • Sei – Felipe         ergueu a vista e a encarou com a mesma expressão que utilizara         comigo: “Eu sei o que você está tramando”.

      Ao contrário de mim, Fernanda, suspirou exasperada e virou de novo os olhos, impaciente.

      • Tá bom, vou chegar         na escola no horário, prometo – ela ergueu a mão, num gesto         solene.

      Dessa vez tive que trincar o queixo pra não gargalhar. O meu irmão costumava fazer aquilo quando eu enchia muito sua paciência a respeito de deveres de casa não feitos. E no fim, eles continuavam incompletos.

      • Boa menina – ele         piscou pra irmã, que sorriu e então me encarou.

      • Sua jaqueta é         linda, adoro vermelho – comentou, fixando minha roupa.

      Eu baixei os olhos pra minha jaqueta. Vermelho também era minha cor favorita. Era a cor do meu vestido de debutante, que nunca fora usado... Mais uma vez expulsei as memórias inconvenientes.

      • Eu também – foi         só o que pude responder, o coração na garganta – Mas         provavelmente a cor combina mais com você, por causa da cor do seu         cabelo.

      Ela puxou uma mexa, distraidamente e lançou um delicado sorriso em minha direção.

      • Obrigada, Laura. Eu         vou parar de atrapalhar. Tchau, Felipe – ele acenou e saiu tão         rapidamente quanto entrara.

      Passei segundos com a vista grudada na porta. A vontade de gritar me esmagando. Aquela garota lembrava como eu era mais novinha. Toda aquela fúria e correria, impertinência e vivacidade. Eu tinha sido assim, até aquele acidente. A partir daquele acontecimento, toda essa juventude transbordante morrera.

      • Desulpe por isso,         ela costumava bater nas portas, mas parece que isso se perdeu com a         idade.

      A voz de Felipe me fez voltar à realidade, piscando furiosamente.

      • Ah, tudo bem... -         eu tentei concertar minha expressão, mas foi tarde demais. Ele         estava de novo, com o olhar preso no meu.

      • Você está bem,         Laura? - sua pergunta foi em um tom preocupado que me deixou         estranhamente mais sensível do que já me encontrava. Eu não         respondi imediatamente, estava presa dentro daqueles globos escuros,         sem saber o que falar.

      Minha imobilidade deve tê-lo assustado, porque seu próximo gesto foi esticar o braço, e tocar com a mão o meu pulso. Os dedos dele estavam quentes, e um arrepio percorreu toda a extensão das minhas costas até a nuca, me fazendo quase arquejar se não trinco os dentes à tempo.

      • Estou bem – eu         retirei a mão e ele voltou à posição de antes – Às vezes me         distraio, só isso – eu coloquei o cabelo atrás das orelhas,         rezando pra ele não perceber que minhas mãos estavam tremendo por         motivos inexplicáveis – Bem, como eu estava dizendo, gostaríamos         que você fizesse parte deste conselho, com todas as honras         condizentes com o cargo.

      • Que seria...? - ele         estava de sobrancelhas erguidas, e notei pela primeira vez que         estava tão focado quanto eu, e que talvez sua distração fosse         frequente apenas em ocasiões não importantes.

      • Meu secretário         particular, não vai faltar trabalho, acredite em mim – eu dei um         sorriso veemente, que foi retribuído por uma expressão pensativa.

      • Eu estarei         restringido de alguma maneira? - Felipe perguntou, como qualquer com         bom senso perguntaria.

      Esse ponto seria delicado.

      • Você se tornará         um membro efetivo, podendo opinar nas decisões sobre qualquer         assunto que for discutido. E também vai usufruir de todos os         benefícios que vêem com a entrada nesse conselho.

      • Huumm... - Felipe         balançava a cabeça, de um jeito de quem pesa as vantagens e         desvantagens de algo. Só achei estranho ele não perguntar quais         seriam as vantagens. Apertei a caneta nas mãos, tentando decifrar o         que ia naquela cabeça de cabelo escuro – Acho que não vou         aceitar.

      A caneta caiu da minha mão, rolando pelo chão. E meus lábios se entreabiram de choque.

      • O-o quê você         disse? - grunhi, sentando muito reta na minha cadeira.

      • Que não vou         aceitar – Felipe repetiu, franzindo a testa e esboçando um         sorriso confuso – Você é mesmo bem distraída – e finalmente         ele sorriu de verdade, com todos os dentes à mostra, e parecia         estar se divertindo.

      • Posso saber por quê         você está recusando um cargo dentro do conselho??? - eu não podia         acreditar, ele estava mesmo fazendo aquilo? Muitas pessoas dariam         uma perna, e até um braço pra estar no conselho, era dentro do         conselho que estavam as melhores oportunidades! Ele era louco????

      • Você ouviu o que         minha irmã disse? - ele continuou, me pegando desprevenida. Eu         devia estar com a expressão mais pasma, se não idiota, do planeta.

      Pisquei, abobada.

      • Sobre a chave?

      Ele acenou negativamente.

      • Não. Sobre quem         tem boca vai à Roma.

      • O que isso tem a         ver com sua recusa? - eu estava voltando a meu estado racional,         mesmo que eu sentisse que alguém tinha passado com um caminhão por         cima de mim – É uma charada que terei de adivinhar?

      • Não, só quis dar         um exemplo com o que a Fernada disse – ele afastou a cadeira e         ficou em pé, em toda sua altura, me observando astutamente de cima.         Mordi o lábio, pra ele não cair de novo. Eu não estava errada,         aquele olhar de “eu sei o que você está tentando fazer”, não         tinha sido ilusão. Porque ele sabia exatamente pra onde eu estava         tentando levá-lo – Eu ouvi algumas coisas sobre você, o pessoal         dessa universidade gosta muito de você, Laura, mas há uma parte         dela que também te odeia. Eu não precisei perguntar, as         informaçãos voaram até mim assim que pisei aqui.

      Muito bem, ele queria cartas na mesa??????? Ótimo.

      Me pus em pé, espalmando as mãos sobre a mesa, o queixo erguido na direção do Felipe, estreitando um pouco a vista.

      • Eu não me importo         com o que você ouviu, quero saber que tipo de conclusões você         tirou – minha voz saiu firme, embora eu estivesse tremendo como         vara de bambu por dentro.

      • A pior possível         depois dessa sua tentativa, muito transparente de querer me colocar         dentro do seu rebanho de ovelhinhas dóceis – as mãos dele também         se espalmaram na mesa, assim como as minhas, e sua atitude         descontraída tinha evaporado mais rápido que água em ebulição.         Ali na minha frente, estava a força real daquelas notas perfeitas e         elogios de toda a parte, seus olhos cravados no meu rosto, a         rebeldia explícita neles – Eu não sou uma ovelha, e muito menos         um tipo doce de pessoa, Laura. É difícil alguém me manipular.

      Meus dedos esticados se retesaram, curvando, minhas unhas arranhando a madeira da mesa.

      • Já percebi que não         – minha voz saiu entredentes, quase um assovio – Mas saiba de         uma coisa, você perdeu uma grande chance.

      • Acho que não,         Laura, há chances de vitórias maiores por todos os cantos – o         tom dele foi tão calmo que meu sistema de alerta mental não         identificou de primeira o que aquilo poderia significar. Até ele         dar um esboço de sorriso.

      Foi como cutucar o dragão adormecido.

      • Se pretende contar         sobre o que aconteceu aqui, boa sorte com isso – dei de ombros,         porque se era essa a pretensão ele iria colocar a si próprio em         situação constrangedora. Uma das regras da universidade era: você         pode denunciar seu colega, desde que tenha provas para acusá-lo.

      • Não, eu não vou         fazer nada, Laura. Desde que você não me prejudique – ele estava         relaxado de novo – Eu não vou fingir que esta conversar não         aconteceu, porque não sou estúpido, mas por enquanto vou guardá-la         no fundo da mente. Estamos entendidos, presidente? - Felipe estendeu         a mão, um sorriso de lábios indecifrável pintado em seu rosto.

      Eu queria é morder aquela mão branca, mas dei um sorrisinho falso e a apertei.

      • Estamos, Felipe.         Fique fora do meu caminho – avisei, num sussurro.

      Ainda segurando minha mão, ele me puxou pra tão perto, que pude contar seus cílios e reparar como ele tinha curvas acentuadas nos lábios.

      Ele agarrou meus ombros e encostou a boca no meu ouvido. Mais arrepios inexplicáveis. Eu senti cada terminação nervosa do meu corpo reagir, como se eu estivesse sofrendo uma descarga elétrica de voltagem letal.

      • Se você se         comportar, eu ficarei, Laura – murmurou, e me soltou tão         abruptamente, que cambaleei, mas consegui deter uma queda, me         agarrando nas costas da cadeira que ele estivera sentado –         Cuidado, você pode se machucar – ele notou meu atordoamento, o         que me deixou tinindo de raiva – Até mais – me oferecendo um         último sorriso calmo e dando as costas, num passo tranquilo, ele         deixou a sala de reuniões.

      Eu não me movi por vários minutos.


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