O tempo estava bonito naquele dia. Realmente, ele nem indicava o que estava por vir... Quem olhasse pelas janelas, veria os pequenos brotinhos de flores nos galhos de árvores, aquelas pétalas coloridas se espalhando pelo ar, empapando as ruas e as calhas das casas que os maridos nunca tem disposição para limpar.

A chuva moderava suas quedas, deixando sempre para o início da noite, o que favorecia a maioria da população. As crianças brincavam livremente pelo parque, acompanhadas do riso de um tímido Sol, que vez ou outra era escondido pelas nuvens. Nunca estava muito quente, mas também não muito frio, um clima ameno, perfeito para tudo.

Ou melhor, para quase tudo...

As flores poderiam ser belas, trazer com elas a paz e a harmonia, mas nem mesmo seu ar pacificador era capaz de impedir as batalhas que pairavam no ar.

Afinal, o que mais poderia esperar? Era guerreira! Não havia sido treinada para poder aproveitar um dia calmo de início de primavera, olhar os passarinhos e as flores diversas de seu jardim que, aliás, estava sendo destruído pelo fogo do Gorgos.

Mas verdade seja dita: guerreira ou não, a ruiva estava muito irritada com aquela invasão inesperada. Justo no dia de folga que ganhara da comandante, algo assim acontecia. Só poderia esperar que controlassem rápido a situação. Mas, claro, não era o que estava acontecendo.

Quando chegou na base, melhor dizendo, seu lar, o inimigo já estava quase alcansando aquilo que eles deveriam proteger. Quem diria que, na mente limitada de Gorgos, ele tivesse espaço suficiente para assimilar que, se entrasse no portal interdimensional, causaria um caos?

– Elesis, venha me ajudar aqui!

Desviando os pensamentos da linha que seguiam, o ruiva balançou a cabeça, olhando para onde Dio se encontrava, tentando a todo o custo deter o Gorgos com alguns novatos, que logo eram atirados longe.

Realmente, ótimo dia de folga para decidir ir à cidade... Agora o ataque estava acontecendo e ela se encontrava completamente desarmada...

A jovem balançou novamente a cabeça, gritando para que o parceiro segurasse a situação um pouco enquanto corria pelos corredores da base, chegando logo ao seu destino.

Parando na frente da sala de armas, logo a abriu, adentrando e observando os objetos espalhados. Na pressa de arrumar algo com que pudessem se defender, os novatos haviam feito uma tremenda bagunça!

Tentando ignorar isso, a ruiva começou a caçar no meio da pilha de armamentos até achar uma espada vermelha larga e mais ou menos afiada. Sua lâmina habitual seria mais eficaz, mas não tinha tempo para ir pegá-la em seu quarto, alguns andares acima. Teria de servir.

Virou e voltou pelo caminho de onde viera. Iria sem armadura mesmo. O tempo para deter Gorgos era curto, não ia poder utilizar mais do que ataque seguido de outro ataque.

Quando chegou ao saguão da base, onde antes estivera, porém, notou que não havia mais ninguém lá. Alguns novatos estavam desmaiados pelo chão, entulho por toda a parte. Um buraco enorme na parede oposta a da porta de entrada indicava que a luta continuava base adentro. Os jardins, do lado de fora, pegavam fogo, as paredes estavam cheias de rachaduras e o ambiente, morto.

A ruiva, sem perder tempo observando mais alguma parte daquela 'paisagem', virou-se e seguiu a destruição pelo buraco na parede. Dentro de um minuto, já os havia alcansado. Infelizmente, o inimigo estava muito mais perto do portal do que poderia esperar.

Na frente de Gorgos, o único que restara tentando impedi-lo era Dio. O demônio pulava de um lado para outro tentando acertá-lo com a foice, mas não parecia que seus golpes estava sendo muito efetivos. O monstro sequer recuava.

Ao ver a ruiva ao longe, o rapaz suspirou em um pouco de alívio. Logo, arrumou a arma melhor na mão, pulando no ar e deixando que o poder demoníaco que consumia seu corpo se expandisse.

– Esfera das trevas! - Gritou, sua aura formando um círculo a sua volta, sendo preenchida por uma eletricidade arroxeada, acertando em cheio a lateral esquerda do Gorgos, que finalmente parecia esboçar uma reação ao seu esforço para detê-lo.

O monstro urrou, balançando a cabeça e dando um passo para trás conforme o asmodian caía de pé e arrumava a foice na mão novamente. Aproveitando a distração momentânea do inimigo, a ruivinha que acabara de chegar ao recinto correu, sentindo as chamas começando a queimar em sua espada enquanto se preparava para também dar um golpe.

Subiu seu corpo no ar, logo virando a espada para o chão e batendo ela com tudo, causando uma explosão de área.

– Arco fatal!

O monstro tropeçou quando seu pé direito foi atingido pelo explosão, soltando um rugido alto. A ruiva deu alguns passos para o lado, saindo do caminho dele como perida o equilíbrio e correndo para perto do demônio, que estava parado alguns metros distante.

– Você está bem? - perguntou, parando perante ele e analisando-no de cima a baixo rapidamente com o olhar. Estava ferido, em algumas partes chegando a sangrar, mas nada que o invalidasse na batalha.

– Sim. Se preocupe mais com o Gorgos. Quando ele melhorar, virá até aqui novamente - explicou Dio, fazendo sinal com a cabeça na direção do monstro e empunhando melhor sua foice, a expressão séria, testa franzida.

– Não há mais ninguém vindo ajudar? - Perguntou a ruiva, virando-se para o inimigo também, a espada arrumada nas mãos. - Não sei se somente nós dois seremos o bastante para impedi-lo de entrar no portal...

– Tesmo que ser - afirmou o asmodian, a expressão não mudando em nada, suor escorrendo por seu rosto. - Ninguém mais vai vir a tempo, Elesis. Só nós podemos detê-lo agora. A comandante e o restante das tropas só chegarão amanhã de manhã. Ou fazemos sozinhos ou fazemos sozinhos.

– Entendi... - sussurrou a menor. - Então se prepare, porque isso não vai ser nada fácil... - a espada começou a ser rodeada por chamas novamente enquanto ela se concentrava para o próximo golpe.

– E eu não sei que vai ser difícil? Quem estava lutando aqui era eu, Elesis - disse Dio, desviando o olhar para ela por um instante para vê-la fazendo o mesmo, a expressão zangada. - Só estou falando a verdade.

– Vamos acabar logo com isso, tá bem? Depois a gente discute... - pediu a menor, voltando a olhar para o Gorgos. Arrumando melhor o punho da espada vermelha entre suas mãos, correu para atacá-lo.

O monstro, notando o objetivo da garota, atacou-a de volta. Abrindo a enorme boca, rugiu. O som fez a espadachin parar, confusa. O que ela não esperava era que as ondas sonoras fossem substituídas pelo fogo.

A ruiva, surpresa, tentou correr para o lado. Claro, não daria tempo. Ficara tão distraída tentando entender o que ele iria fazer que nem pensou em se desviar do ataque que obviamente estava por vir.

As chamas teriam queimado-a completamente se não fosse por não estar lutando sozinha. A garota, ainda jovem em seus treze anos, não tinha uma velocidade das mais admiráveis, mas claro que alguém deveria ter.

Dio correu em um piscar de olhos, agarrando a cintura da menor com um braço e pulando para cima para se desviar do fogo, começando a voar com suas asas demoníacas. A garota, surpresa novamente, gritou, a espada escapando de seus dedos e caindo no chão perto do Gorgos.

Se vendo sem outras alternativas, agarrou as mãos com força na roupa do asmodian, que aumentou seu aperto em sua cintura para que não escapasse conforme descia do voo do outro lado do salão no qual se encontravam.

Quando os pés do demônio tocaram o chão, a garota, que era mais baixa, balançou os seus próprios. Ele então a soltou, deixando que pisasse nos azulejos rachados pela luta e ofegasse, assustada. Ela passou a mão pela franja, afastando-a da testa, que ainda não suava, olhando-no com uma expressão agradecida.

– Essa foi por pouco - sussurrou, logo olhando para o chão e corando minimamente. - Obrigada por me salvar.

O rapaz deu um sorriso de canto e passou a mão pelos cabelos dela, bagunçando-nos, fazendo a ruiva voltar seu olhar para ele novamente.

– Não é o momento para esse tipo de coisa, Elesis. Além disso, você nem é de agradecer... estou surpreso - confessou, o sorriso aumentando e se tornando deboxado.

A menor olhou-o, franzindo a testa e bufando. Deu um passo para longe dele, dando a volta no rapaz e olhando para Gorgos que, distante, seguia para derrubar a última parede que o separava da sala do portal interdimensional.

– Vamos logo - falou, correndo e pegando sua espada no chão. O demônio vinha em seu encalso, sem desviar os olhos do monstro. Passou pela ruiva conforme ela se abaixava para pegar a arma, seguindo na direção do inimigo, apertando a foice na mão com força.

Dio atirou-a para frente quando estava próximo o bastante do Gorgos, logo usando um poder demoníaco de brilho arroxeado para puxá-la de volta, fazendo um pequeno arranhão na perna do monstro, que sequer deu-lhe atenção.

– Estrela da morte!

A ruiva, que tinha ficado um pouco para trás, também seguiu correndo, erguendo a espada e gritando conforme parava ao lado da outra perna do inimigo, girando a lâmina e tentando feri-lo com ela.

Em um monstro normal, a espada no mínimo teria se enterrado em seu corpo com a força que jogara a espadachin. Mas Gorgos estava longe de ser normal, e sua couraça fazia jus ao título que recebia das pessoas.

Nem sequer o cortou. A lâmina ficou parada na frente da pele como se estivesse apenas apoiada ou encostada levemente.

Surpresa, a garota mal notou quando as garras do monstro vieram em sua direção, tomando o golpe em cheio do braço direto e caindo longe. Gorgos parecia estar se livrando dos 'empecilhos' que o separavam de seu objetivo.

O asmodian, vendo o que havia acontecido com a garota, não perdeu o tempo correndo até ela para ver como estava. Ele conhecia bem a espadachin para saber que o repreenderia veementemente se ele parasse de lutar para checar seu estado de saúde.

Mal sabia ele que ela havia desmaiado. E que, sem sua ajuda, jamais conseguiria deter o monstro.

*

Ele estava tão alheio que mal poderia dizer quem sentava a sua volta. Sua cabeça repousava no material gélido, os braços apoiando-a precariamente. Um som esganiçado saía de sua boca, chamado silencioso que não poderia ser ouvido por ninguém... Ou talvez por todos...

Um líquido descia de sua boca por sua face, se espalhando pelo local onde esta se apoiava, um indício claro do que havia e ainda estava acontecendo. As pessoas a sua volta falavam, as vozes indistintas para o rapaz, que não queria nem podia entender alguma delas.

Sua meditação acabou, porém, quando o sinal tocou, fazendo-no levantar a cabeça de um pulo, assustado. As pessoas na classe a sua volta começaram a rir alto de sua reação, pegando suas carteiras e lanches e deixando o recinto.

Uma mão se apoiou no canto da mesa, fazendo com que o ruivo levantasse o olhar devagar, esfregando o olho. O mais velho, repetente de um ano, segurava firme a ponta de sua carteira, um sorriso deboxado em sua face.

– Ryan, seu idiota, você dormiu de novo - informou o moreno.

O ruivo apenas encostou-se no apoio da cadeira e levantou os braços, se espreguiçando. A sala se esvaziava rapidamente, fazendo com que o moreno apressasse-o com o olhar. Deu um suspiro, levantando-se e seguindo para a porta com o outro.

– Sieghart, você é muito chato, sabia? - Informou, seguindo pelo corredor agora quase vazio com o mais velho a seu lado.

– A culpa não é minha se você dorme a aula inteira e ainda fica murmurando besteiras sobre os seus joguinhos nerds de computador - rebateu o moreno, revirando os olhos. - Depois você pergunta porque as garotas não olham para você.

O ruivo apenas olhou o moreno feio por um momento antes de encontrarem os outros três garotos do grupo no fim do corredor. Ronan e Jin conversavam animadamente sobre algo que parecia o assunto da aula de biologia enquanto Lass estava apenas encostado na parede olhando para o teto como quem não quer nada. Uma cena extremamente normal para os membros daquele círculo de amigos.

Com o 'bando' formado, desceram para o pátio. Logo, o assunto chato sobre como seria difícil decorar os grupos de seres vivos foi substituído pelo filme que estaria lançando no cinema na semana seguinte, algo que quatro dos cinco queriam assistir. Claro, não é, porque Lass nunca queria ver nada. Aliás, nem fazer algo ele parecia ter vontade. Às vezes, os amigos se perguntavam se ele andava com eles por apreciar o que falavam ou apenas por não querer estar só, afinal, eram raras as conversas em que o albino se entrosava.

Não demorou muito para que chegassem até a mesa de sempre, sentando-se confortavelmente em seus típicos lugares, ainda discutindo sobre o trailer do filme e se poderiam assistir juntos. As garotas que se uniram a eles logo cortaram o assunto, como de costume.

– E aí, garotos, como passaram o fim de semana? - Perguntava Amy, sentando-se ao lado de Ronan enquanto Arme tropeçava nos próprios pés, acomodando-se logo em seu outro lado.

– O de sempre - respondeu Ryan, dando de ombros enquanto abria um sanduíche embrulhado em papel laminado que trouxera para lanchar e dava uma grande abocanhada. - Vídeo game, skate...

– Você quer dizer 'tentativa de skate', né? - Perguntou Lire, rodando os olhos e sentando entre Lass e Jin. - Eu já vi você andando, Ryan. Não fica dois segundos de pé.

O ruivo franziu a testa e bufou, mordendo seu sanduíche novamente para evitar dizer desaforos à loira enquanto todos à mesa riam abertamente.

A última integrante do grupo de crianças, Mari, sentou-se quieta do outro lado do albino, colocando o canudo em seu suco de caixinha e tomando comportadamente, arrumando o óculos no nariz com uma mão.

Eles eram um grupo excêntrico, sem sombra de dúvidas. Quietos, bagunceiros, animados, nerds, todos em uma roda só. Ou eram realmente muito deslocados, ou amigos de verdade...

E mal sabiam eles que o poder de sua amizade seria testado. Muito menos que o seria de tal modo, tão... inesperado.

*

A ruiva levantou o olhar, sua visão meio turva enquanto olhava o braço, vendo três cortes longos e profundos dos quais o sangue começava a escorrer dolorosamente. Suspirando, apoiou-se no braço bom, impulsionando o corpo para cima e sentando-se, passando a mão uma vez pelos cabelos, confusa.

Quando lembrou-se do que havia acontecido, mais do que depressa levantou o olhar, procurando em volta pelo monstro, que não viu. Ao invés disso, do outro lado do salão, apoiado na parede parecendo exausto, Dio ofegava, a foice frouxa em sua mão.

A espadachin levantou-se de um salto, correndo até ele e parando a sua frente, preocupada. Olhou-o de cima a baixo. Parecia relativamente bem, tirando um machucado ou outro, mas nada tão sério quanto os três cortes que possuía em seu braço.

– O que aconteceu? - Perguntou, por fim, vendo como ele levantava o olhar para ela, sério.

– Pegue uma arma descente, rápido! - mandou, endireitando a coluna e se afastando da parede, dando passos largos enquanto a garota, confusa o seguia apressadamente. - Gorgos atravessou o portal. Vamos atrás dele.

Elesis por fim assentiu, correndo para pegar uma arma, já que o mais velho mandara, nervosa. Nunca tivera uma missão tão importante, ir a outra dimensão deter um monstro. Um novo mundo... Ela estava curiosa para ver.

Passaram-se quinze minutos e o par já estava na frente do grande portal interdimensional. Era basicamente um circulo de aproximadamente quatro metros de diâmetro, preenchido por um líquido azul elétrico rodopiante que soltava um fino chiado. O ar do lado deles da dimensão era puxado para lá com força, fazendo com que os cabelos da ruiva esvoaçassem loucamente enquanto ela os prendia novamente em um rabo-de-cavalo apressado.

– Uh... Espero que consigamos logo... - sussurrou ela, olhando apenas como o líquido girava sem parar.

– Não precisa ter medo - assegurou, dando um sorriso de canto. - Eu vou estar com você.

– Eu não estou com medo! - Afirmou a menor, bufando e olhando para o outro lado, fazendo com que o sorriso do asmodiano aumentasse. - Bem, vamos logo.

Foi a primeira a passar o portal, Dio indo em seu encalço.

Eles esperavam que seria rápido, sim, que a tentativa de deter o gorgos seria seu maior desafio. Mas, claro, como sempre, a historia de verdade só estava no início.