A Lobisomem escrita por maribocorny


Capítulo 3
Cookies e rolinhos primavera




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O tempo nunca havia parado antes, mas eu venderia a minha alma para que ele tivesse parado naqueles dias depois da minha primeira transformação. Fiquei por muito tempo escondida no meu quarto, sem ver nem ouvir ninguém. Mamãe tinha sido paciente, ela sentava do lado da minha cama e me fazia um pouco de carinho nos primeiros dias. Mas até (ou eu deveria dizer principalmente) paciência de mãe tem limite. Quando completou quatro dias que eu não saía do meu quarto, ela começou a brigar.

- Você vai sair dessa cama hoje – Mamãe disse, bem-humorada, enquanto abria as cortinas do meu quarto, deixando a luz entrar.

- Mas não vou mesmo. – Eu falei, me escondendo da luz embaixo das cobertas.

- Você vai sair dessa cama e chamar a Zoe e a Agatha para virem aqui e vocês vão fazer alguma coisa. Qualquer coisa, desde que seja fora desse quarto. – Ela disse enquanto tirava meus cobertores.

- Como se elas fossem querer me ver. – Eu disse, lembrando da canalha que eu tinha sido com elas da última vez que as vi. Puxei os cobertores e me escondi de novo.

- Então você vai se desculpar. – Mamãe puxou meus cobertores de novo.

Mais uma vez eu me escondi da luz e do mundo sob as minhas cobertas, prendendo-as embaixo do meu corpo para que mamãe não pudesse tirá-las dali de novo. Ela era forte, no entanto, e conseguiu pegá-las de volta, me fazendo rolar pelo colchão.

- Eu não vou deixar você ficar nenhum só dia a mais acuada nesse quarto, Elizabeth. – Ela disse, perdendo seu bom-humor matutino. Ela só me chamava de “Elizabeth” quando estava se zangando ou já zangada.

Meus cobertores estavam estatelados no chão, eu não tinha mais motivo para ficar deitada. Levantei de um pulo e olhei minha mãe nos olhos, com uma raiva latente. Dei um grito ininteligível e fui, pisando firme, até o banheiro. Bati a porta com força e me apoiei nela, deixando o corpo escorregar até ficar sentada no chão.

- Você tem que parar de agir como se isso só acontecesse com você, como se você fosse a única, Elizabeth. – Ela disse, com a voz mais calma e também mais triste.

- Ah, sim! – Eu ironizei, gritando. – Porque isso é uma coisa muito normal, que acontece com todo mundo. Praticamente parte da puberdade...

- Não é da transformação que eu estou falando. – Mamãe soltou, ríspida. Era a primeira vez que ela usava a palavra com t. – Estou falando de se sentir triste. De se sentir magoada. Você não é a primeira, não é última e também nunca será a única.

Fiquei em silêncio. Naquele momento, para mim, eu era sim a única. Só eu poderia me sentir mal naquele momento e mamãe, a minha própria mãe falar que a minha dor não valia mais que a dor dos outros me deixou mais ferida ainda.

- Ninguém sente o que eu estou sentindo. – Eu disse, num murmúrio, mas mamãe ouviu.

- Você ainda pensa que isso só acontece com você? – Eu nunca tinha ouvido a voz da mamãe assim, tão magoada. Ela continuou: - Acha que não houve outros, centenas de outro com a mesma... com a mesma maldição?

Continuei em silêncio. Cega com a minha própria miséria, eu não conseguia ver a da minha mãe. Não era de mim que ela estava falando. Bem, não era apenas de mim. Eu deveria ter entendido que ela falava do meu pai, do pouco tempo que eles passaram juntos e de tudo que eles deviam ter sofrido juntos. No meu egoísmo, eu só conseguia ver a minha tragédia e o único momento que eu conseguiria arrancar mais informações sobre o meu pai da minha mãe passou a ser uma discussão sobre mim.

- Eu nunca pensei que eu diria isso de você, Elizabeth. – Mamãe continuou, cansada de esperar por uma resposta. – Mas você é uma garotinha mimada, com medo de encarar a vida. Porque, queira você ou não, você ainda está viva.

Eu sabia que ela ainda estava ali, plantada do outro lado da porta do banheiro, esperando por alguma declaração minha, mas eu era muito orgulhosa para admitir que ela estava certa.

- Se desculpe com as suas amigas. – Ela disse, com um suspiro.

Só então eu ouvi os passos dela indo embora e ficando mais silenciosos até desaparecerem por completo. Meu rosto já estava molhado de novo. Liguei o chuveiro e lavei minhas lágrimas de raiva e de dor com a água morna, esperando que os sentimentos também fossem lavados para fora de mim.

Não foi fácil me esconder da mamãe pelo resto do dia. Mesmo não querendo dar o braço a torcer, eu não voltei para o meu quarto depois do banho. Encontrei um livro na sala e fingi estar interessada, só para o caso dela passar por ali. Eu não queria que ela visse que eu concordava com ela e achava que ela tinha razão.

Mamãe e eu tínhamos muita coisa em comum. As pessoas costumavam dizer que eu era um clone dela, que éramos fisicamente muito parecidas, mas não só aí. A maioria (para não dizer todas) das nossas brigas aconteciam porque tínhamos personalidades muito parecidas, fortes e teimosas. Não era para menos, éramos apenas nós duas desde que eu podia me lembrar. Quando ficávamos brabas, não gostávamos de falar com ninguém e deixávamos bilhetes sucintos para evitar que se preocupassem conosco. Quando o livro perdeu o pouco interesse que tinha, eu fui até a cozinha deixar um bilhete para ela.

Fui dar uma volta. Não se preocupe comigo. Volto logo” foi tudo que eu escrevi. Peguei a minha bolsa no cabide perto da porta.

A vila bruxa em que eu morava era como uma pequena cidade. O meu lugar favorito era a pracinha que ficava apenas a algumas quadras da minha casa. Antes de ir para lá, eu tinha passado em uma padaria e comprado algumas coisas. Coloquei a sacola da padaria no chão e sentei num dos balanços da praça vazia. Senti o forte cheiro do salgueiro centenário da praça, símbolo da pequena vila em que eu morava.

Ao invés de me balançar para frente e para trás, eu girava em círculos torcendo as correntes do balanço. Assim que não conseguia mais girar, eu tirava os pés do chão e deixava-me desenrolar. Adorava aquilo, a ‘vista’, por assim dizer, que aquela brincadeira me proporcionava.

Torci e desenrolei naquele balanço umas cinco vezes antes do sol se pôr. Por força do hábito, espiei o meu relógio-mostrador, que dizia que era o final da lua minguante e início da nova. Suspirei aliviada.

Era tão bom ver o mundo daquela perspectiva de giro. Tudo parecia tão caótico e nada se encaixava. Fazia eu pensar que meus problemas também estavam girando e que só pareciam tão ruins porque eu não conseguia vê-los parados.

- Cara. – Uma voz disse, vinda da minha esquerda. – Você demorou.

- Quatro dias. – Disse outra voz, à direita. – Nós já estávamos desistindo.

Eu não precisava olhar para saber quem eram. Zoe e Agatha estavam sentadas nos balanços ao lado do meu.

- Está na sacola. – Eu disse, sem muita emoção na voz. Pelo menos foi o que eu tentei aparentar, mas acho que não consegui esconder que estava feliz por elas estarem ali comigo. – Podem pegar.

- O que... O que está na sacola? Uma bomba? – Zoe olhou desconfiada para a sacola plástica branca que estava no chão.

- Pior. – Eu falei. – É o meu pedido de desculpas.

Não era surpresa nenhuma nos desculparmos com comida. Eu gostava de cozinhar os meus pedidos de desculpa eu mesma, mas daquela vez não deu e eu passei na padaria que eu sabia que teria tanto cookies com gotas de chocolate quanto rolinhos-primavera com molho agridoce.

Os cookies estavam embrulhados em um saquinho de papel pardo dentro da sacola plástica com o nome da Zoe escrito com canetão. Ela pegou o saco de papel e virou os olhos, me olhando, muito séria.

- Zoroastra? – Ela disse, quando leu. – E você espera que eu te perdoe depois disso?

Eu sorri. Era sim um golpe baixo, mas era a única coisa que eu tinha. Zoe abriu e mordicou um cookie, fingindo ser a contragosto. Fez uma careta e, infelizmente, quando eu menos esperava, ela se jogou em cima de mim, me derrubando do balanço.

- Ai! Ai, sai de cima de mim!

- Como se eu conseguisse ficar brava com você por muito tempo... E eu adoro esses cookies! – Ela disse.

Agatha riu enquanto abria o pote de isopor com os rolinhos-primavera. Zoe ainda estava em cima de mim enquanto Agatha cheirava e experimentava um, certificando-se de que era bom.

- Não! – Eu gritei em câmera lenta quando ela se jogou em cima de mim.

Momentos depois nós estávamos na varanda da casa de Zoe, comendo os cookies e os rolinhos. Agatha não queria que ficássemos na praça a noite, ela disse que achava muito perigoso. Eu me senti mal por ela, sem dúvida ela ainda estava se culpando pelo meu ataque. Zoe também estava mais responsável que o normal e fez com que eu ligasse para avisar a minha mãe assim que chegamos.

A varanda da casa da Zoe era para a frente do terreno, não para os fundos, então nós podíamos ver o pouco movimento da rua enquanto comíamos.

- Então. – Agatha disse quando começamos a ficar escassas de assuntos. – Como você está?

- Eu não sei. – Eu disse, por fim. – Eu não me sinto estranha, nem diferente. Mas eu sei que eu estou.

- E como é? – Zoe perguntou sem respirar.

- É... – Eu disse enquanto pensava. Não sabia como descrever, e também não queria descrever ao mesmo tempo. – É simplesmente horrível.

Me encolhi na cadeira de ferro fundido, abraçando os meus joelhos. Eu estava sentindo frio de novo, e senti um arrepio subir pela minha espinha enquanto lembrava daquelas três noites horríveis. Tomamos alguns goles de chá em silêncio. Eu encarava o céu sem lua, desejando que ele ficasse assim para sempre.

Agatha e eu fomos embora juntas, nossas casas ficavam para o mesmo lado.

- Liz... – Ela começou, depois de vários minutos em que caminhávamos sem falar nada. A voz dela era fraca e arrependida, eu sabia o que ela queria dizer.

- Não. – Eu cortei. – Nem ouse pensar que é sua culpa.

- Mas fui eu, Liz. – Ela continuou, com a voz pequena. – Fui eu quem levou a brincadeira adiante. Foi uma coisa estúpida!

- Não, Agatha. – Eu disse, passando mais firmeza do que eu sentia. – Não pense assim. Eu poderia ter evitado com a mesma facilidade.

Agatha parou e me olhou com os grandes olhos castanho-avermelhados por trás dos óculos, com uma expressão triste e cansada.

- Por que você é tão legal? – Ela perguntou. – Meu... Eu sei que eu fiz merda, Liz. Foi bobagem, sabe, não precisava ter acontecido. Eu estraguei a sua vida e tenho consciência disso. E você fica aí tentando fazer eu me sentir melhor... Eu não...

- Meu pai era um lobisomem. – Eu soltei sem conseguir me segurar. – Por isso eu fui atacada, eles são mais sensíveis à minha presença. Ninguém sabia disso, eu nunca contei. Por isso que eu fui atacada, Agatha. Não venha querer se responsabilizar por quem eu sou e pelos meus segredos. Eu não tenho direito de te culpar, e você também não tem o direito de se sentir culpada, quando a culpa toda foi minha.

Agatha me olhou por alguns segundos mais, desamparada. Eu não sei até hoje por que eu fiz aquilo, mas eu precisava tirar aquele peso dos ombros dela.

- Obrigada, Liz. – Ela disse quando chegamos à minha casa.

- Por quê?

- Porque ser uma boa pessoa. Nada vai mudar isso, nem mesmo uma maldição.

Eu não me sentia uma boa pessoa, sentia-me um monstro depois daquela transformação. Fiquei pensando se a Agatha sabia como eu me sentia e como ela saberia, mas ela disse exatamente o que eu precisava ouvir para me sentir melhor.

- A gente se vê amanhã? – Ela disfarçou perguntando.

- Claro. – Eu sorri e entrei em casa.


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Notas finais do capítulo

Escrevi esse cap umas mil vezes, e perdi ele duas por causa do word. -_-"

Particularmente não gostei muito da briga da Liz com a Daia, acho que poderia ter desenvolvido melhor, mas acabei perdendo o arquivo que eu tinha escrito primeiro T_T e a preguiça e a ansiedade pelo resto da cap estava grande.

Espero mais comentários! :)