Merry Meet escrita por Roxane Norris


Capítulo 1
Merry Meet


Notas iniciais do capítulo

Essa One pertence ao Amigo Secreto de Halloween promovido pela Fics No Jutsu. A íntegra dessa original, entretanto, espero eu, seja um livro lindo! Com outro final...

Minha amiga oculta é um anjo em forma de mulher, e tenho certeza, que por sua sagacidade, ela saberá quem é por si só!

Te amo!



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Kilkenny – Irlanda, 1324


Minha senhora... – A moça de intensos olhos azuis prestou uma única reverência à mulher a sua frente, sentada numa cadeira recoberta de peles, á lareira. – Não vai se deitar?


A febre baixou? – indagou sem lhe dirigir o olhar.


Não, senhora. – Baixou a cabeça, fitando o vestido curto de lã amassado entre seus dedos. Os cabelos ruivos presos á uma pequena rede, por onde fugiam alguns cachos sobre as orelhas. A pele de sardas sombreada pela luz bruxuleante das chamas.


Não tenho sono, então – determinou ao se erguer fracamente da lareira, a túnica longa de algodão cintada por um fio delicado de ouro ocultando-lhe os passos. Os cabelos pretos e ondulados, desgrenhados sobre os ombros, demonstrando as noites passadas em claro. Os lábios sem cor, na pele clara, ainda mais pálida sobre a luz amarelada do calor das toras, que crepitavam quebrando eventualmente o silêncio daquela sala.


Lady Kyteler flutuava pelo chão de pedra, sem sons, sem respiração.


Já fizemos todo o possível, milady – a criada sentenciou num murmúrio: – As marcas começaram a surgir por seu corpo, é a peste.


E o que sugere que eu faça? – Os verdes viraram em sua direção, cintilantes. – Quer que eu o abandone?


Os passos rápidos dela agora estalavam no chão enquanto se aproximava da ruiva.


Dane-se os boatos! Ele veio a mim!


Os verdes vidraram nos azuis. As mãos claras fecharam-se nas dela.


Milady...


Precisamos salvá-lo, Meath.


Mas, minha senhora, aquele Bispo, Ledrede, está na cidade – ela ponderou incerta. As imagens do sacerdote em sua mente, a boca amarga envolvendo-lhe em calúnias. – Ele já perguntou tanto pela senhora... Sobre sua vida. Se fizermos isso novamente, talvez não lhe restará escapatória.


Tolice – rasgou o ar num esgar insano. – Não irei deixá-lo morrer!


A criada fitou-a se afastar, num olhar compadecido. Poucas vezes a vira tão desesperada, mesmo com todos os boatos a seu respeito e a Inquisição batendo-lhe ás portas.


O que precisaremos? – cortou o silêncio em dois, decidida.


Nove galos e nove pavões...


Tem certeza?


A ruiva respirou fundo e assentiu.


Então será feito essa madrugada, enquanto a lua ainda está negra.


Como queira, milady. – Curvou-se novamente em respeito e deixou-a sozinha.

...xxx...

O céu estava escuro, sem lua, quando ela pisou o terreno lamacento da floresta ao redor da casa. Havia deixado as aves próximas ao local escolhido e com a ajuda de um cavalo, arrastara o corpo do enfermo até o local. Não deviam chamar atenção, por isso ela tomara cuidado em se locomover aos poucos, em diversos horários. Agora, escorregava sozinha pela noite, encoberta pela capa escura de lã. Penetrando na floresta até somente ouvir os sons da natureza. Os sons de todos os seres que respiravam e viviam em harmonia com a terra, o ar, a água e o fogo. O cheiro do orvalho em flor e folhas... da lama que sujava seus pés.


Com cuidado, se aproximou do corpo ali perto, fazendo os galos eclodirem num cacarejo assustado. Ainda que o homem dentro da camisola não se mexesse. Ordenou seus azuis sobre o rosto sem cor, suado, belo até mesmo na dor. Os cabelos castanhos curtos, á meia altura do pescoço, espalhados sobre a maca improvisada que o trouxera ali. A vida parecia esvair do corpo talhado nos campos, e depois, nas batalhas, conforme as manchas pretas o cobriam sem que se pudesse controlar.


O esforço que ela imprimiu para arrastá-lo até o centro da clareira, desenhando ao redor dele, com um athame, um círculo no sentido anti-horário. Começando pelo Norte. Dividindo-o em quadrantes depois de feito. Terra preta ao Norte, a vela azul acesa ao Sul; a água na vasilha de barro á Oeste, reluzindo um espelho branco; e as aves ao Leste. As penas que baniriam a doença daquele corpo. As palavras que ela deixou à volta deles, calmamente, enquanto retirava a capa e entrava no círculo, ajoelhando-se próximo ao corpo:


"Pelo Poder da Deusa e do Deus, pelos Guardiões dos Quatro Quadrantes, eu traço este Círculo Sagrado. Deste espaço só o Mal que habita esse corpo sairá, e nele nenhum Mal poderá entrar!"


Ela continuou com cuidado, desfazendo-se do vestido de lã curto, sem botão e branco, unindo-se á natureza. Pedindo com toda a força de sua alma que banisse para longe a Peste, que os livrasse daquele Mal.


Que venham as forças antigas, e a Deusa use sua sabedoria e purifique a carne; que o Deus tenha pena dele e devolve-lhe o sangue de um guerreiro. Bravo como era antes de padecer...


O vento soprou em seu rosto e, então, ela rastejou até as aves. Tomando o athame novamente nos dedos, salpicando a terra de vermelho dezoito vezes... As penas oscilando ao vento. O sopro quente seguido do uivo. Os azuis voltados para as copas das árvores que sibilavam no mesmo ritmo, longo e agonizante. O corpo do homem que tremeu sobre a maca, o som das folhas amassadas por patas.


Volkodlák... – um suspiro escapado de seus lábios róseos.


O olhar dourado em meio a névoa crescente, que tomava o círculo. A respiração rápida dela, a falta de ar, a fraqueza quando a névoa se deslocou até o corpo, fazendo-a tombar por cima dele enquanto desaparecia totalmente. Sem vestígios. A consciência que ela retomou aos poucos, incrédula no que acontecera... Como ela evocara aquilo? O corpo quente abaixo do seu, atirando-a para longe, assustada, ao descobrir dourados sobre si. Dourados que se abriram para fitá-la do corpo outrora pestilento.


Um corpo não mais maculado ou agonizante, e azuis se alargaram. As mãos que ela levou aos lábios enquanto ele erguia o tronco e perguntava:


O que faço aqui?


O que era ele? Ela se perguntou incapaz de reagir. Nunca fizera algo parecido. Não tinha respostas. A falta de roupas que ele notou que havia nela, e o vestido que ela puxou rapidamente contra seu corpo. Escondendo-o sob a lã branca. Branca como um cordeiro a ser abatido por um lobo. Fitou-o mais uma vez.


Volkodlák – ela balbuciou de novo.


O que disse?


Ela não repetiu, precisava terminar o feitiço e expulsar o lobo dali. Aqueles não eram os olhos do homem que conhecera em vida. Então o corpo dele cobriu-se de pelos castanhos, sem que ela nada pronunciasse. Sua altura alcançou quase dois metros enquanto urrava como se alguma faca o partisse em pedaços, e ela recuou. Recuou até um ponto seguro, sem quebrar o círculo. Ainda podia salvá-lo, tinha certeza. No entanto, uma mão capturou-a pelo braço. Forçando-a a sair dali. Rompendo o selo.

Bruxa! – a voz do homem sentenciou. – Não negue!

E os dourados a fitaram uma vez mais, vertendo fumaça pelas narinas naquela noite fria... Só então, fazendo o bispo se dar conta da besta. A besta que se preparava para atacá-lo num golpe só de sua pata, conforme ele largava a moça no chão. O golpe desferido que desmaiou o sacerdote enquanto o lobo se preparava novamente para o ataque. Um ataque fatal.

Não! – Ela se colocou entre os dois. O vestido sujo de lama.


Os dourados nos azuis, que piscaram até compreenderem o que ela queria. A cabeça que ele abaixou até que ela pudesse tocá-lo e acarinhar seu pêlo.


Eu vou devolvê-lo a sua forma original... – sussurrou. – Eu juro.


Ela está por aqui! – gritavam mais vozes ao longe, na borda da floresta.


Vá... Deve ir – ela pediu baixo. – Na próxima lua cheia eu estarei aqui e desfarei esse feitiço. Você me entende?


Um único movimento de cabeça do lobo.


Obrigada – ela agradeceu, beijando a lista branca em sua testa.


Um uivo longo e doloroso, e o lobo corria para longe, sumindo na escuridão da floresta.


Achem-na!


As tochas iluminaram a cena de um crime e os cães ladravam irritados. Um pentagrama quebrado e um bispo caído, mas a prova final tinha sido-lhes usurpada. Não havia bruxa ou craven no local. Os castanhos reluziram enquanto os seus homens se espalhavam pela floresta em busca de rastros.


...xxx...


A porta foi açoitada pela mão do homem uma, duas... três vezes seguidas, até que os ferrolhos fossem destravados e a criada ruiva delimitasse uma fresta para poder fitá-lo.

Devo falar com sua senhora – ele rosnou de dentro de sua cota de malha.

Ela não está... – disse, estreitando a distância entre a madeira e o beiral.


Eu não vou ser escorraçado da casa de uma bruxa! – bramiu ao vetar-lhe o movimento com o braço forte contra a madeira, impedindo que a porta se fechasse. Os castanhos cintilando sobre a moça ao arremessá-la ao chão e dar-se passagem para a sala. – Diga aonde ela está – exigiu, avançando até ela. Erguendo-a do chão frio pelos cabelos acobreados. – Eu só vou perguntar mais uma vez, entendeu?


Entendi... – a voz veio detrás de si, fazendo-o virar-se para fitar a morena. – Solte-a Gilbert!


Alice... – um sibilo de castanhos, deixando os cabelos cor de fogo escorregarem por seus dedos.


Aonde está aquele estrangeiro?


Estrangeiro? – Ela sorriu sob o olhar escuro dele.


Robin MacArt – sentenciou irritado.


Não sei do que está falando...


Em duas passadas, estava sobre ela, agarrando-a pelos ombros.


Não brinque comigo! – O ar quente batendo contra seu rosto, os verdes nos castanhos enfrentando-os. – O demônio com quem se deitou, sua bruxa!


Não me deitei com demônio algum! – Ele sacolejava-a como a uma boneca de pano, mas os riscos de altivez não desapareciam. Pelo contrário, mexiam com seus nervos. Sempre fora assim... Alice sempre mexera com suas entranhas, entrando em sua mente como veneno. Bruxa amaldiçoada! – Me deitei com homens ricos... guerreiros... – A boca vermelha sangrava indecências, escorrendo pela pele macia dela. Queria tocá-la, rasgá-la ao meio em sua insanidade. Ela lhe tirava juízo, maldita mulher! – Mas nunca com Gilbert de Bohun! Nunca o quis!


Cale-se! – Ergueu-a do chão com apenas um braço. – Você está em minhas terras!


Você, sim, é um demônio! – rebateu seca, chutando-o com os bicos dos sapatos de couro curtido. – Normando imundo!


Eu mandei calar-se! – Atirou-a contra a parede.


Os castanhos presos ao choque dela contra a pedra fria. O rubro escorrendo pelo cinza.


Alice... – a consciência voltando á mente. Ele se aproximou, os cabelos encaracolados escuros emoldurando os castanhos estreitos... Ternos sobre ela.


Como podiam facilmente mudar de aparência?, refletiu a morena.


Saia! – Ela chutou-o uma vez mais. – Não me toque!


Alice... – A mão bruta parada a centímetros de seu rosto.


Ele, ao menos, era mais gentil. Sabia como tratar uma mulher... – Os verdes verteram lágrimas em pares. – Me esqueça, Gilbert!


Os castanhos que perderam o brilho paulatinamente, retirando de dentro da indumentária, que o deixava ainda mais truculenta, um pergaminho. Esticando-o á ela.


Essa é uma decisão do Bispo de Ossory. Seus filhos ficarão sob minha custódia enquanto as autoridades verificam a acusação de bruxaria imposta a você.


Meus filhos? – Os verdes oscilaram nos castanhos ao tomar o pergaminho entre os dedos e fitá-lo. – Não podem fazer isso!


Eles já nos revelaram como suas heranças não lhes foram legadas... – Deixou seu olhar abandonar o rosto belo dela e fixar o teto sobre sua cabeça. – E como seu atual marido enlouqueceu. – Voltou a encará-la, a mesma raiva riscando os castanhos. – Só não souberam dizer nada sobre o paradeiro de Robin MacArt.


Os verdes luziram nos castanhos enquanto ele aproximou seu rosto do dela.


Foi mais cuidadosa dessa vez, bruxa... – Sorriu bestialmente. – Mas eu vou encontrar algo que prove o que é capaz de fazer aos homens... Como os enfeitiça.


Você está louco!


Veremos. – Afastou-se dela. – Por hora, as crianças vão comigo.


Não!


Não quero envolver meus homens nisso, Alice... – Pela primeira vez, naquela sala, ela recuou. – Vejo que sob as palavras certas, você pode ser bastante compreensiva.


Virou-se para a criada ruiva, que se erguera do chão há alguns minutos, após ter passado o efeito da pancada.


Traga-os... – Ela não se moveu. – Não me ouviu, mulher?


Silêncio.


Está tudo bem, Meath – consentiu a morena. – Traga-os.


Sim, senhora.


E numa mesura ostensiva, deixou a sala.


Não me surpreenderia, se ela estivesse metida nisso com você.


Deixe Petronella fora disso...


Ele riu abertamente.


Não está mais em minhas mãos decidir seu destino, Alice.


As crianças entraram num alarido, acercando-se da mãe.


Escutem-me, vocês irão com Earl Pembroke...


Eles assentiram e ela os beijou a testa, um por um... Sem baixar nenhuma vez seu olhar na frete dos castanhos. Quando a sólida porta se cerrou atrás dele, nem mesmo a prestativa Meath foi capaz de suportar o peso do corpo da morena.


Meath... – Agarrou-se ao vestido da ruiva, enterrando seu rosto nas dobras da lã.


Acalme-se, milady. – Afagou-a nos braços. – Os meninos provarão sua inocência...


...xxx...


Um homem de cabelos castanhos se aproximou da clareira na primeira lua cheia da estação. Os olhos cor de mel que vasculhavam a escuridão, tentando encontrá-la. A bruxa ruiva.


As nuvens cobriam parcialmente a lua, e ele ouvia apenas os sons da floresta. Sons que imitavam os seus próprios... Afinal, o que ele se tornara? Escondera-se por um quase um mês, abrigando-se em cavernas e lugares isolados com medo de si mesmo. Lembrava-se vagamente do que lhe acontecera, da febre no corpo e como procurara Lady Alice. E exatamente ali, instalara-se uma lacuna branca... Ao menos até olhar a ruiva. A bela ruiva nua a sua frente, que não pode tocar porque se tornara um lobo... E, então, ela lhe dissera que estaria ali, na próxima lua cheia. Desfaria o feitiço.


Um feitiço... que o tornara um animal. Assim ele achava, nas roupas esfarrapadas que roubara de um varal qualquer. Desde aquela noite ele era humano, não houvera transformações, mas queria ter a certeza de que não voltaria a ser lobo... Lembrou-se do receio nos azuis dela, não queria ter aquela sensação novamente. Ver aquele brilho escuro nos azuis. Talvez quisesse apenas vê-la de novo.


A noite já avançara muito quando a lua saiu detrás da nuvens, tornando os mel em dourados. Fazendo o corpo dele vergar, os cabelos castanhos cobrirem-lhe as feições enquanto soltava um uivo. As unhas cresciam, rasgando-lhe a pele... Trazendo à luz, a escuridão de um ser da noite. Os pelos castanhos que se espalhavam pelo corpo de homem. E ele era lobo uma vez mais. Um lobo com sede e fome.


A corrida empreendida por entre as árvores, veloz como vento que batia-lhe nos pelos. Um vento frio contra sua respiração quente. As veias latejando até avistar uma corsa, empinar o corpo e saltar em sua jugular, lacerando-a. As presas afundando na carne tenra, sorvendo o sangue quase instantaneamente. O prazer que desfrutou ao se alimentar da corsa... Na fome do animal que era.


Volkodlák... Ele lembrou que ela o chamara assim.


Os dourados na escuridão e a boca cheia de sangue. Ele não podia ser essa fera. Os sentidos alertados pelo cheiro humano, cada músculo seu tencionado para a caça. E nada o seguraria, cada célula sua clamava por aquele cheiro, desejava seu gosto. Na espreita da carroça carregada de lenha, ele atacou no êxtase da batalha que corria sua mente, dominando-a. A força de mil homens destrinchando a carne clara... A sede saciada na última gota rubra que desceu por sua garganta antes do uivo que inundou a floresta.


O uivo do monstro que se tornara.


O monstro que devia aprender a controlar até que conseguisse achar a bruxa.


O lobo que habitava seu corpo a cada lua cheia...


...xxx...


Vamos, confesse! – ele exigiu em dentes expostos de sua raiva, dentro da roupa de inquisidor.


Com as roupas rasgadas, os braços estavam para traz e seus pulsos amarrados por uma corda que se estendia até uma roldana e um eixo. O sangue coagulado marcava-lhe as pernas, resquícios da tortura sofrida anteriormente. A respiração era pesada e a pele que cobria o corpo tinha uma cor arroxeada devido aos hematomas de variados tamanhos, que sucediam uns aos outros, conferindo uma aparência grotesca á mulher. Havia gangrena em um dos pés, e as mãos deformadas não podiam se agarrar em nada. Os cabelos ruivos haviam sido cortados e estavam colados á cabeça.


E agora, Petronella? – A corda foi puxada violentamente pelo torturador, através deste eixo, arrancando dela um urro de dor. – Não seria melhor confessar?


Um movimento dos lábios ressecados, rachados em veios vivos de sangue. As paredes de pedra que ela cansara de fitar infinita vezes em busca de absolvição, mas só encontrava mais dor.


Diga alto! – ele riu enquanto deslocava os ombros e provocava diversos ferimentos nas costas e braços dela.


O desmaio e a sentença dos lábios odiosos de Ledrede:


Deixem-na aí um pouco mais, talvez quando recobrar a memória, queira cooperar conosco.


Eu sou uma bruxa – era um sopro que chegava até seus ouvidos quando ele já cruzava os portões de ferro do calabouço.


Um sorriso em seus lábios de vitória, e ele nem se deu ao trabalho de voltar até ela.


E será queimada amanhã, em praça pública, para absolvição de seus pecados; a expugnação de Satã de seu corpo e um aviso para aqueles que ainda tem o coração imerso em trevas.


Ela voltou a fechar os olhos e a fechadura rangeu ao ser lacrada.


A luz será gravada em seu corpo através do fogo e a levará ao seu verdadeiro senhor. – Fez o sinal da cruz e a deixou sozinha.


Estaria livre ao amanhecer... Livre de tudo.


Lembrou-se dos olhos de Lady Kyteler ao deixar a Irlanda, ainda altivos, como se a Inquisição nunca a alcançasse. A falta de notícias que invadira a casa em Dubin por meses até eles baterem na porta, precedidos por Earl Pembroke e a levarem dali, culpada por se aliar a uma bruxa. Então, na primeira tortura, quando o rastelo açoitou sua carne, viu os olhos dourados invadirem sua alma, em pelos castanhos de lobo. O homem que ela transformara em lobo, que não pudera salvar... Era uma bruxa.


Bruxa.


Pediu desculpas por sua falha com ele, por não ter sido tão boa bruxa.


E quando abriu os olhos, havia o povo que gritava ao seu redor. Havia o cheiro de enxofre na camisola que vestia, mas não havia medo em seus olhos. Os gritos de: queimem!, eram distantes. Os rostos claros sucediam uns aos outros na sua visão, não havia ninguém conhecido até o capuz dele ser baixado e os mel pousarem nela intensamente. Os lábios que se moveram vagarosamente e nada mais importava:


Eu a abençôo.


Ela sorriu sem se importar com as chamas que começavam a crepitar abaixo de si, estava em paz antes de tocarem seu corpo frágil. Os mel que desviaram da imagem dantesca quando viu a cabeça dela pender para o lado sem vida e o cheiro podre preencher o ar, em fumaça negra. Não havia mais nada ali para ele...


Um dia ele iria amaldiçoá-los como haviam feito a ela. Ele jurou em dourados diante dela quando o crepúsculo banhava a praça e ninguém mais o via. Os raios pálidos revelando um brilho arroxeado entre as cinzas, que ele trouxe até seu campo de visão em forma de pedra. Uma ametista. Os dedos que se fecharam ao redor da pedra, esbranquiçando os nós.


O uivo que cortou o ar conforme um lobo corria para longe, na direção da floresta.


...xxx...


Kilkerny, maio de 1385


Earl Pembroke... – disse-lhe o criado enquanto ele se encontrava na tina para o asseamento.


Diga, Adam. – Esfregou os ombros com força, sem fitar o rapaz.


Há um homem, lá embaixo, que deseja vê-lo – respondeu como medo da represália do seu senhor.


A uma hora dessas? – Estreitou seus castanhos sobre o criado.


O rapaz apenas se calou enquanto ele se erguia da tina de madeira.


Vamos, me passe a camisola – retrucou entre os dentes.


Sim, senhor – assentiu ao desviar os olhos para o tecido encardido e entregar-lhe.


Agora, vá até lá e diga que estou indo – retrucou, quando o criado já se preparava para sair. – Espero que seja importante, não se visita ninguém a essa hora.


Ele correu um longo caminho, até alcançar a escada de pedra e descer ao primeiro andar. As portas foram abertas por alguns guardas, que não o fitavam no rosto, e entrou na atmosfera recém aquecida pela lareira, analisando seu vistante de costas para si, com as chamas alaranjadas desenhando suas sombras contra as pedras. A imagem refletida na parede fria, ainda mais alta e sombria do que a presente a frente: os cabelos castanhos do visitante caíam-lhe na altura do pescoço, sobre a gola do casaco; seu porte era harmonioso com sua altura e mais nada poderia ser dito de onde o conde o olhava.


Queria me ver... – deixou em dúvida, no ar ao passar por ele e se dirigir á mesa posta.


Um tempo longo que o homem demorou até encará-lo em mel brilhantes.


Earl Pembroke? – Sorriu-lhe, esfregando as mãos uma na outra. E o conde pode ver o quanto alto e corpulento era o homem, que não passava de seus vinte cinco anos. Ele assentiu ao rapaz curioso. – Sou Joseph Buttler.


Buttler? – repetiu, tomando a direção da sala de refeições. – Não me lembro de ter conhecido nenhum Buttler... – Sentou-se despojadamente na cadeira á cabeceira da mesa de doze lugares, em madeira escura, deixando seu olhar vagar pelo intruso parado sob o portal.


Não, de fato, não nos conhecemos. – Os mel nos azuis dele, brilhantes. – Eu apenas ouvi falar de seus feitos...


E isso o faz bater em minha porta numa hora como essa? – Pegou uma coxa de pato entre os dedos, analisando-a demoradamente. – Ou veio em busca de estadia? És nobre? – Arrancou-lhe um pedaço e mastigou enquanto dirigia um gesto ao intruso, ofertando-lhe comida.


Não o importunaria por tão pouco, milorde... – murmurou, aproximando-se da mesa, porém sem tocar em nada. - Mas, creio, não há uma hora certa para se tratar de negócios.


O conde se serviu de vinho, deixando que uma parte do líquido na taça á frente do visitante, e levou-o aos lábios, saboreando-o.


Negócios, você diz... – Ele riu. – Que tipo de negócios?


Os mel lhe fitaram confiantes.


Os do tipo amaldiçoados.


Os castanhos que fixaram o homem, os olhos dourados que borraram sua mente com o horror. O grito e a mordida em seu pescoço. O vinho esparramado pela mesa, pingando no chão enquanto o lobo passeava em meio a comida e se alimentava do resto do pato. Ainda faltava muito para o amanhecer...

...xxx...


Ele estava em seu quarto, sob as cobertas, e sua cabeça doía enormemente. Talvez fosse efeito do vinho, sentia a garganta seca; e nada que fizesse, trazia-lhe as lembranças da noite anterior. Tudo parecia um tanto confuso. Passeou os dedos entre os cabelos claros e curtos, soltando um esgar e fixou os azuis nas sombras, vendo os mel lhe fitarem da poltrona diante da lareira.


Então, despertou...


O que faz aqui?


Os dois falaram quase ao mesmo tempo.


Vim lhe tirar de uma vida enfadonha.


O louro sorriu.


Não estou numa vida enfadonha...


O outro não retrucou, apenas o encarou severamente.


O que realmente quer aqui?


Eu confesso que não esperava que fosse sobrinho dele. Pensei em algo mais próximo... – Ergueu-se prontamente, andando pelo quarto enquanto os azuis o seguiam preocupados. – Entrementes, eu deveria ter devolvido o favor ao seu tio... – Deixou os olhos saírem pela janela, observando a moça que deixava o castelo pelos fundos, vestida em trajes serviçais. Os cabelos eram castanhos escuros e fugiam pelas beiradas do pano em sua cabeça. E, por segundos, ela relanceou a porta que se fechara atrás de si.


Meath”, era um sopro em seus pensamentos. Não era a primeira vez que acontecia, abanou a cabeça e quando a fitou de novo, ela já adiantara-se para a granja. Em sessenta anos ela não poderia estar tão jovem ainda, não como ele. Cerrou os punhos. Além do que, a havia visto queimar.


Queimar...


Perdeu a fala? – ironizou o louro a suas costas, já devidamente asseado. – Estava tão aplicado em explicar o favor que me devolvera...


Os mel que se voltaram a ele, ardendo em brasas.


Há sessenta anos, seu tio, deixou que uma moça inocente fosse queimada na fogueira. – Ele avançava em passos largos até o louro, que recuava assustado até a parede. – Ela foi torturada até arrancarem-lhe a confissão de bruxa!


A raiva brotando-lhe de cada poro quando o encurralou na parede de pedra. O braço apertando-lhe o pescoço.


Eu não sei do que está falando – protestou quase sem voz, segurando-lhe o braço. – Vim para cá tem poucos meses... Meu tio morreu há quatro anos.


A última vez que estive aqui, ele ainda gozava de boa saúde. – Soltou-o no chão e ele tossiu. – Devia ter lhe dado o corretivo de uma vida, mas faltou-me a oportunidade certa.


A jovem era sua esposa?


O brilho nos mel em alerta de perigo.


Uma namorada?


Não saia desse castelo hoje á noite – disse seco, tomando a direção da porta, sem dar-lhe atenção. – Fique dentro desse quarto, eu voltarei em breve.


O louro ficou aturdido.


Por que devo fazer o que diz?


Porque não vai querer saber o que acontece quando um animal como você fica a solta...


O louro voltou a sorrir.


Olha, eu entendo sua raiva pelo meu tio, mas eu não sou um executor de mulheres. – Abriu os braços e lançou o olhar a sua volta. – Nem ao menos sei lidar com tudo isso. Castelo, terras. – Sorriu. – Eu me perco em minha própria casa.


Apenas me obedeça.


A porta se fechou num estrondo seco, deixando os azuis sobre o vazio dos nós de madeira.


...xxx...


Sentia fome, sede... Suas veias queimavam como brasas. Deitara-se mais cedo, aliás, trancara-se em seu quarto. Não comera, preocupado com o alerta que aquele homem lhe dera ainda pela manhã. O que aconteceria se menosprezasse seu aviso? Não o conhecia, mas tinha a forte impressão de que se não seguisse suas ordens, algo ruim lhe sucederia.


Rolou na cama.


Era supersticioso? Um pouco... talvez muito. No entanto, havia algo naquele estrangeiro que o assustava. Um calafrio inundou-lhe a espinha e invariavelmente, deixou os azuis saírem pela janela. As nuvens cobriam parcialmente o céu, e agora, ele sentia calor. Sua mente era turvada por pensamentos desconexos, cenas de sua infância, de batalhas longínquas... Tudo tão difuso e disforme. Tão irreal.


Suou.


Sentou-se na cama, respirando rápido. Que sons eram aqueles? As corujas piavam mais alto do que de costume, cachorros latiam, e as empregadas... Tapou os ouvidos, comentavam trivialidades obscenas. Como faziam isso aquela hora? E como ele podia ouvi-las?


Ergueu-se da cama, irritado. Podia ouvir o som do riacho ali perto, se, se concentrasse. Isso não era uma coisa normal. Então, parou ofegante á janela, inalando o cheiro de mato, de relva molhada de orvalho... e de baia de cavalo, feno... excrementos. Fez uma careta. Aquilo estava indo longe demais. O vinho da noite anterior devia ter algum alcaloide. Segurou-se fortemente no beiral da janela. Tinha que haver um modo de parar aquilo ou enlouqueceria!


O luar começou a enfeitar as nuvens, em raios contrapostos que corriam as paredes do castelo até que a lua cheia surgiu, atirando seu brilho diretamente na janela aberta. O louro recuou até um ponto escuro do quarto, sentindo a pele arder. Levando as unhas que cresciam rapidamente á altura dos olhos, apavorados. Voltando seus azuis á lua brilhante, correndo as unhas pela pele clara, esfacelando-a e urrando de dor. Já não estava em si.


A porta foi aberta, deixando a touca branca á mostra e as palavras:


Sir, trouxe-lhe uma refeição.


O uivo agudo, os olhos voltados á moça que deixava a bandeja cair ao chão, espatifando louças. As patas pretas e felpudas que escorregavam pelo chão em sua direção, os amarelos que invadiam-lhe a alma ao ponto de imobilizá-la. O grito e o lobo castanho que veio por trás dela, atirando-se contra o outro, embolando-se com ele pelo chão. Os castanhos dela que tentavam entender o que acontecia, antes que o rosnado do lobo castanho a atingisse e ela deixasse o quarto, numa corrida desabalada e aos atropelos.


O ar faltando-lhe nos pulmões conforme corria por entre as árvores atrás do castelo. O olhar escurecendo, assustado, com receio de ser seguida. As mãos que retiravam galhos do caminho, sem se importar com os pequenos cortes espalhados pelas palmas ou o vestido sujo de lama. Queria apenas fugir. E, quando deu por si, só havia o silêncio da floresta ao seu redor e os ecos de sua respiração acelerada. Parou no centro da clareira, arfando; as mãos sobre os joelhos, segurando-lhe o corpo aflito.


Está segura, agora. – O coração pulsava em sua garganta, impedindo-a de se virar e fitá-lo.


O que era aquilo? – Ela falseou tanto na voz, quanto nos músculos.


Algo que não devia ter visto.


Ela riu em angústia. O que ele queria dizer com isso? Alguns gravetos partiram-se as suas costas, denunciando sua aproximação.


Ela se afastou.


Não se aproxime... O que é você?


Sou algo que não devia existir – ponderou calmo. – Deve esquecer o que viu... Meath. – Ele arriscou o nome.


Os cabelos castanhos sob a brisa.


Como sabe meu nome?


Há muitos anos, eu conheci uma mulher com esse sobrenome... Muito parecida com você – segredou com cuidado. Aquela não era realmente Petronella, mas havia vestígios de magia em seu sangue, ele podia assegurar com todos seus sentidos estando em alerta.


Dizem que sou parecida com minha tia-avó. – Ela se virou deixando seus castanhos nos olhos cor de mel dele. Desenhando o rosto do homem alto diante dela, em sua camisa branca rasgada e traços finos. – Ela era uma bruxa.


Os olhos dela que baixaram ao chão de folhas secas, aturdida por sua confissão.


Você acredita nisso? – Era uma voz suave, melodiosa, mas ainda assim urgente, que invadia-lhe os sentidos. – Acredita em magia?


Não falamos sobre esse tipo de coisa... – Ela contorceu o tecido entre seus dedos, apertados.


Ele levou a mão ao pescoço e revelou a corrente de couro de onde pendia uma ametista ovalada, retirando-a dali.


Isso pertenceu a sua tia-avó. – Tomou a mão dela na sua, deixando que a corrente corresse de seus dedos para a palma dela. – É seu por direito. – Fechou os dedos dela delicadamente ao redor da pedra.


Isso é um amuleto de bruxa... – ela disse baixo, ele sorriu. – Mas eu não tenho nenhum dom...


Os castanhos dela nos mels dele.


Mesmo assim, é com os descendentes dela que a pedra deve ficar... – Suspirou, desviando os olhar para as copas da árvore que vertiam com o vento. – Não comigo.


Você a conheceu?


Houve um longo assobio entre as folhas, antes que ele a respondesse:


Acha isso possível? – Encarou-a sério. – Se me diz que não possui nenhum talento para magia... – Deu alguns passos em sua direção, que a fez recuar outros mais, em olhos presos aos dele. – Se mão lhe é permitido falar sobre ela, porque deveria acreditar naquilo que nunca vivenciou?


A magia, ás vezes, pula algumas gerações – revelou com cuidado, tateando o tronco decrépito as suas costas. – Isso não quer dizer, que tenha abandonado a família de todo.


Então houve outros antes dela – determinou com cuidado, preso ao semblante receoso da jovem.


E haverá outros, depois... – Ela sustentou seu olhar no dele, por algum motivo, sentia-se ligada aquele homem. Sentia pena dele.


Gostaria de acreditar que não teria que esperar muito por isso.


O espírito de uma bruxa é livre. – Fitou-o com carinho.


No meu caso... – O vento bateu em seu rosto com força enquanto ele fechava os olhos e prosseguia: – Estou preso a esse corpo pela eternidade.


Eu sinto muito...


Não sinta. – Ele se aproximou e tocou-lhe a face. – Sou agradecido á ela por salvar minha vida; infelizmente, não pude retribuir-lhe o gesto.


Conheço as lendas de homens-lobos, mas achava que eles só surgiam no calor da batalha. Não por feitiço.


Para o seu bem... Esquecerá tudo o que viu.


Mas... – Os castanhos alargados nos mel dele.


Sh... – Aproximou seus lábios dos dela conforme pousava o indicador sobre eles e exigia-lhe silêncio.


As mãos nos cabelos castanhos, tomando-a aos poucos. A boca, o gosto... a pressão certa na base do pescoço e tudo se evanesceu por completo enquanto o corpo jovem caía ao solo, adormecido. A lua que surgiu no céu brilhante e ele precisava sair dali, precisava tirar o conde daquela casa ou iriam atrás da Meath. Ele queria vingança contra aqueles que o fizeram sofrer, mas tudo que conseguiria, caso insistisse nisso, era colocar a família dela em perigo uma vez mais.


Nada o traria de volta...


Ela não estava mais ali.


Com um uivo abafado, ele rasgou a noite com suas patas, sumindo na escuridão da floresta.


...xxx...


1905, Londres – Inglaterra.


O relógio que acabara de retirar de seu bolso marcava cinco e meia da tarde, já perdera a conta de quantos pôr-do-sol assistira... Entretanto, seus olhos registravam apenas os pingos incessantes de chuva que caía sobre uma Londres cinzenta. Os pés, sempre bem treinados, o levaram à porta da casa de belos jardins cuidados, estava ao ponto de adentrá-la quando uma mão enluvada tocou-lhe o braço e o deteve por instantes. O rosto encoberto momentaneamente pelo guarda-chuva ao mesmo tempo que as palavras saíam de seus lábios, estreitando suas sobrancelhas sobre a figura num vestido verde musgo.


Joseph Buttler... – A tensão naqueles dedos tão aguçada quanto sua curiosidade ao ouvir um nome há muito não usado por ele. – É um homem difícil de achar, Sir...


Isso depende de quem me procura. – Ele manteve seu semblante inabalável. – A senhora não parece ter encontrado muito obstáculos em relação a isso.


Os desenhos e a renda do guarda-chuva afastados de seu rosto, revelando aos mels, o rosto delicado da moça. Seus cabelos ruivos caindo por seus ombros em cascatas, os olhos de um verde intenso ardendo em veios dourados, mesmo que a sombra daquele dia horrendo pairasse sobre eles.


Chá? – Ele ofereceu-lhe o braço, como cavalheiro que era, atentando para a ametista que cingia em seu colo sob a forma de colar.


Adoraria... – Ela aceitou, ciente de que não era uma desconhecida para ele.


A casa no centro de uma Londres em ebulição não passava desapercebida, mas ainda assim, seus dois ocupantes não eram pessoas comuns. Nem por seu talento nos empreendimentos que faziam, nem por suas condições, que poucos sabiam, não humanas. Ela se sentou no luxuoso sofá de dois lugares, indicado por ele, após terem sido recepcionados por um mordomo exemplarmente vestido e deixado a sós em seguida, sob portas fechadas. O fogo atiçado na lareira enquanto ele tomava o lugar a sua frente, em dedos cruzados sob o queixo, analisando-a. Era uma cópia de Meath.

Vejo que sua vida não tem sido monótona... nem por um mero segundo...


Se leva em conta o dinheiro, o status... a elegância. – Sorriu-lhe torto. – Certamente não tenho do que reclamar.


Ela se ergueu sem cerimônias, passeando sua figura esbelta por todo o lugar, delineando em dedos, os adornos da sala.


É um homem de bom gosto, Sir – enfatizou, apenas por princípios. – Mas sua busca, nunca foi por isso. Reconhecimento social, jogos políticos... Eles apenas o mantiveram em evidência.


Foi assim que me achou tão facilmente? – sentenciou sem fitá-la. Não era preciso.


De uma certa forma, sim – assentiu sem rodeios, era necessário.


Seu nome...


Nathalie, sou francesa por parte de pai – anuiu enquanto eram interrompidos pelo chá, num serviço de prata e mesuras educadas.


Os torrões de açúcar, o leite e o sabor indiano tomando-lhes o gosto quando pela segunda vez a porta se abriu, agora num lufada fria, sem cortesia. Os azuis nos verdes por segundos infinitos, e os lábios rubros dela que formaram um sorriso à beira da porcelana frágil.


O que é isso? – ele despejou, assim como fizera com o frio, sobre eles.


Edgar – tomou a palavra o moreno. – Esta é Nathalie, francesa por pai...


E bruxa por mãe – completou sem se importar se causava desconforto aos dois homens.


Ela sorvia o chá calmamente enquanto Joseph se pôs de pé, e não apenas os azuis de Edgar se firmavam sobre sua figura.


Não devia ter vindo – entabulou os limites dela quando seu receio se viu concretizado. – Já faz muitos anos que nossa busca terminou... – Por mais que parecesse com Meath, havia algo que aqueles verdes traziam em seu brilho muito diferentes dos azuis e os castanhos de outrora. Havia algo corrompido no propósito daquela mulher.


Os azuis que vagaram dos verdes aos mels, atônitos, sem entender a nova posição do amigo, após séculos de jornada e busca infrutíferas.


Joseph... – foi um sopro contestador, que apenas fez os lábios rubros se alargarem contra a xícara.


Acho que seu amigo conde não concorda com você, Joseph – ela deixou no ar de forma ardilosa. – O peso de um feitiço como esse, tanto tempo sobre seus ombros... escondido e manifestado em pequenos delitos, devem aos poucos consumir uma alma como a sua em escuridão.


O que veio fazer aqui? – Manteve o foco nela, esquecendo o protesto que fatalmente partiria do azul do louro ao seu lado.


Ela convenientemente andou até a bandeja, sobre a mesa junto ao moreno, depositando porcelana na prata.


Pensei em dar-lhes o que procuram... – Os veios dourados em seus verdes quase sufocando-os. – Em troca de um pequeno presente.


Presente? – a pergunta veio do louro.


Os verdes voltados aos azuis.


Sim... – continuou num murmúrio sedutor. – Eu quero uma troca, legarei aos dois uma vida medíocre de um reles mortal, e me farão eterna, como cada célula sua neste momento. – E os dedos dela deslizavam sobre sua casaca bege, atordoando-o.

As mãos dela detidas por uma do moreno e a ordem ríspida que saiu seus lábios:

Saia antes que eu ponha fim até mesmo a sua existência mortal e imunda. – Os mels que por frações de segundos se perderam nos verdes, desviando-o em seguida. – Não fazemos trocas, uma maldição não é uma benção que se queira partilhar com alguém.


O braço alvo que pendeu ao lado de seu corpo após ser solto pelos dedos dele e seus passos indo ao encontro da porta enquanto o louro saía de seu devaneio e Joseph concluía:


Edgar, jamais aproxime-se dela de novo.


Ele concordou com a cabeça quando ela não estava mais ali. Afinal, sempre o obedeceu, por que seria diferente agora?


...xxx...


As cortinas enfurnavam no quarto vazio, deixando apenas o uivo da brisa fria da noite sibilar entre a sólida mobília. Seu ocupante há muito descera as escadas, percorrera os corredores e deixara os portões de ferro duplos para trás, ganhando a noite. Atravessando ruas ermas, molhadas e enlameadas... Ruas que pareciam não possuir habitantes nem mesmo de dia. Almas que ele encontrava no caminho, abandonadas por Deus... por sua escolha. Entregue aos vícios e vicissitudes da vida. Ele não pudera dizer não ao que lhe fora feito, nem se negar a aceitá-lo. As grades oxidadas pelo tempo rangeram sob as correntes, que a ninguém impediam de entrar no local.


Se somente houvessem grades e portões para transpor em sua vida... Vida? Ele sorriu antes de entrar no cemitério atrás do doce chamado que estava somente em sua mente, que apesar de lutar contra, o importunava desde aquela tarde. As nuvens corriam sobre sua cabeça, mesmo não se desfazendo em chuva, pareciam ávidas em trocar de lugar num céu escuro, como se isso pudesse modificar a fatalidade de que aquela era a primeira noite do ciclo. A noite da lua negra.


O terreno, ainda mais úmido, misturava-se ao seu sapato com facilidade, tornava ainda mais penosa a noite... O sussurro que nunca tinha fim em sua mente. Passando por lápides, escrituras, árvores... Em círculos intermitentes diante de seus olhos treinados para detectar o mínimo movimento, a mínima mudança de cor... mas tudo era igual. Igual através do séculos, das horas, dos minutos, mesmo que os gastasse a esmo. Então ele a viu no centro do grande pentagrama inscrito no círculo, que por sua essência mágica, a fazia brilhar sob seus raios prateados que não advinham da lua inexistente. A penugem ruiva esmaecendo ao seu próprio toque, desvendada sob suas mãos delicadas. Os verdes voltados a ele, ciente de sua presença, nos lábios rubros que precederam o sorriso.


Vieste... – soprou contra ele seu encanto hediondo. Encanto de beleza, de fascínio... estendendo-lhe o braço numa imagem etérea. – Aproxime-se.


E com a permissão dela, a bruxa, ele entrou no círculo. Os cabelos louros sob a brisa, consumido pelo brilho dos verdes, que lhe tiravam a roupa sem sentir... que incendiavam seu sangue ao ponto de não temer a si mesmo e desejar mais que qualquer coisa o efeito do que era sob sua pele. Os elementos em harmonia, conforme o luar pingava sobre seus corpos unidos no centro do pentagrama. Embalados pelas palavras dela, hipnóticas, ritmadas, derretidas na ponta de sua língua que cobria o corpo claro... tornando seus azuis em dourados.


O sibilo cada vez mais alto dela, cadenciado a maldição que corria suas veias pronta para despertá-lo por completo... O corpo cobrindo-se de pelo, envergando suas pernas, dobrando de tamanho. Queria apenas matá-la quando abriu sua boca, em mandíbulas de fera.


Edgar!


E o chamado e a consciência o fez voltar o focinho ao comando daquela voz, a única capaz de quebrar aquele encanto maldito e trazê-lo à realidade do que era, sempre fora... Um servo seu. E ela segredou isso a sua mente, e o lobo entre seus braços hesitou.


Edgar... – e uma outra vez, ele não o chamaria.


A pata da fera que tentou romper círculo, profaná-lo, impedir o feitiço da bruxa... sem que ela o deixasse.


Nathalie, deixe-o ir – sentenciou firme o moreno, aproximando-se da beira do círculo. – Não é ele quem você quer, precisa de mim.


Só porque foi o primeiro que portou a maldição, não o faz melhor que Edgar...


Joseph sorriu e circundou o pentagrama lentamente, livrando-se da casaca e da camisa branca, sentindo em si o efeito da lua negra.


Não conhece muito bem os feitiços, não é? – Parou na parte do círculo que o deixava mais próximo dela.


É inútil tentar tirar Edgar de mim – protestou, tomando o athame de prata entre os dedos. – Você não confia em mim.


O dorso desnudo e os braços cruzados sobre o peito, os mels firmes contra os verdes dela.


E você... Confia em mim?


O lobo agora totalmente transformado, arranhava em garras o chão ao redor dela, enchendo-as de terra batida.


Eu sou o espírito – ela soprou à brisa que a rodeou. – E não devo ser traído... – completou quando o deixou entrar no círculo.


Só eu posso transformá-la, Edgar apenas se alimentaria de você... – Tocou-lhe em dedos a face alva. – Deixe-o livre dessa maldição. Esse é o meu preço.


Eu o farei no mesmo instante em que me der o que quero. – O athame luziu em sua mão. – Eu darei meu sangue à Volkodlák e o encerrarei e mim.


Dourados correndo verdes, os dedos grossos comprimindo suas bochechas... embrenhando em seu cabelos ruivos.


Não sabe o que diz, Meath... – As imagens dela na fogueira queimando sua mente como brasas. – É pior do que a morte, é frio e doloroso... É uma existência vazia.


Eu não sou Meath... – ela sibilou contra o rosto sobre o dele, respirando o ar quente.


Você é – afirmou enquanto delineava seus traços. – Ainda que não saiba, e sua realidade lute contra seu espírito.

E os verdes estavam atônitos sobre ele, fraquejando os dedos ao redor do punhal.


Por que ainda é humano?


Essa é a vantagem de ser o primeiro, com o tempo, se aprende a controlar a fera. – Sorriu sobre ela. – Se quer vê-la, vai liberar Edgar da maldição primeiro.


Eu não sou tão burra para cair nesse jogo...


Ele apenas tomou o punhal de seus dedos e cortou-lhe uma das palmas da mão. O sangue de bruxa gotejando na terra, que a absorvia ferozmente.


Diga as palavras! – exigiu, posicionando a mão dela no centro do pentagrama.


Não sem minha recompensa – golfou.


Quer tanto isso assim?


O lobo grunhiu aos seus pés, sob a poça de sangue, seria agora ou nunca. A pele cobrindo-se de pelo, o corpo junto ao dela tornado-se ainda maior, seu peso envergando costelas, coluna... Os dourados.


Vamos, bruxa, faça... – era mistura de uivo com palavras, era abafado e grave.


As palavras feiticeiras dela, e o lobo menor ao chão, contorcendo-se.


Agora, sua vez... – Verdes nos dourados.


Os dentes pingando saliva sobre seus ombros, em boca aberta.


Meath... perdoe-me... – resfolegou. – Edgar... minha promessa foi cumprida.


O corpo frágil que tomou nos braços, afundando as presas na carne tenra, desfiando-a aos poucos enquanto mantinha firme o punhal de prata entre os dedos dela, direcionado ao seu coração. O metal perfurando seu corpo e o fim de sua existência levando consigo mulher e maldição:


Isso termina aqui, Nathalie... Ninguém jamais saberá de nós.


Seu nariz entre os cabelos ruivos dela, nos corpos que se banhavam do sangue proscrito, na última nota de jasmim.

Merry meet, merry part, merry meet outra vez!

In the end...


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Notas finais do capítulo

Notas da Autora:

Essa história contém fatos verídicos entrelaçados á trama fictícia. Datas e nomes foram mantidos no intuito de transmitir mais autenticidade ao leitor.

Lady Alice Le Kyteler foi realmente acusada de ser bruxa, mas fugiu para Inglaterra, salvando-se das chamas; Petronella de Meath era sua criada e foi a primeira bruxa irlandesa a ser queimada na fogueira em 1324. Earl Pemboke era dono do castelo de Kilkenny em 1192, que conheceu seu auge pelas mãos do Clã Buttler, muitos anos depois. Robin MacArt foi o demônio acusado de ter se deitado com Lady Alice. O romance, entretanto, entre esses quatro personagens foi criado pela autora como entretenimento para os leitores. Dificilmente suas vidas reais se refletem nessas linhas. Nove milhões de pessoas morreram na Inquisição, e isso não há como ser romanceado. Foi uma barbárie...

Volkodlák é lobisomem em eslovaco.

Boa leitura.