Puxar o Seu Trenó escrita por 01


Capítulo 4
Outros Trenós




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/101197/chapter/4

Eu sempre soube que havia outros trenós naquele deserto. Você não sabe, mas o seu trenó não foi o único que puxei.

Algum tempo atrás, talvez doze meses, talvez vinte e quatro, talvez mais, talvez muito menos, algum tempo atrás, eu encontrei alguém extremamente doce e gentil. "Gosto de você", ela disse, e perguntou se eu queria viajar com ela. Todo o tempo ela foi extremamente sincera e amorosa. Eu puxei seu trenó e confiei nela. Mas eu não puxava o trenó sozinho. Às vezes essa moça se levantava e me mandava sentar. Ela então puxava o trenó por um bom tempo para que eu pudesse descançar.

Eu a amava. O bastante. Mas eu era tão mais jovem, tão mais ingênuo, tão mais desconhecido para mim mesmo! E eu nem sequer tinha um trenó. Ainda não tenho. Mas naqueles tempos, eu nem sequer era maduro o bastante para entender o que eu sentia.

Ela gostava de mim. Mas eu fui descuidado. Ela estava crescendo, mas eu não. Eu sempre fui um pouco egoísta, mas ela não... Ela era tão doce quanto você nunca vai ser.

E um dia ela me disse com um sorriso no rosto que sentia muito, mas precisava seguir em frente. "Preciso seguir minha viagem sozinha.", ela disse. Perguntei-a se não me amava mais, mas ela disse gentil que não era o caso. Ela apenas precisava seguir sozinha. E eu dramatizei, eu chorei. Queria fazê-la se sentir culpada para que não fosse embora. Eu sabia que ela estava indo por perceber o quão imaturo e egoísta eu era. Ela não me ouviu e eu não tentei impedí-la mais. Ela se foi sozinha, puxando o próprio trenó. Viagens a dois rendem mais, quando o seu parceiro não é egoísta, hipócrita ou imaturo. Eu a estava atrasando.

Eu ainda a vi uma vez mais, até a cumprimentei. Ela não parecia mais tão doce comigo, mas eu mereci. A tratei mal naquele dia.

E depois que ela se foi, por muito tempo me senti abandonado e machucado, mas eu não tinha nem idéia do que era dor. "Algumas coisas só acabam muito depois de terminar", escrevi num papel num dia de muitos pensamentos. Ela havia partido, mas algo dela continuava comigo. Talvez uma parte do sentimento, da admiração. Eu sempre pensava em como seria a reencontrar. Eu sempre pensava em dizer "Não houve um dia sequer em que eu não tenha lembrado de você", mas com o tempo isso se tornou mentira. Com o tempo o que havia terminado foi acabando. Vez ou outra ainda lembro dela como nunca vou e nem quero me lembrar de você.

Mas esse tempo todo em que me senti assim me serviu de lição. Após um bom tempo percebi ter morrido e continuado no controle de um corpo sem razão. Eu continuei a falar com outras pessoas, algumas com trenós, outras sem. Puxei alguns trenós, mas ninguém era tão doce quanto ela.

Não me sentia vivo. Me sentia gelado e abandonado por mim mesmo. Não via graça nas viagens, nem me sentia confortável com boa música. Às vezes chorava sozinho sem saber por quê. "Me sinto tão oco", eu pensava.

E aí eu te encontrei, falando com amigos, vendo outros trenós. Falei com você, gostei de você. Você não tem todo o doce da outra moça. Pelo contrário, você é rude, azeda. Mas, não sei como, é extremamente atraente. Não por fora, mas por dentro. Como se eu fosse uma criança curiosa e você uma caixa de surpresas em um embrulho bonito. Eu precisava te abrir, te ver de perto, sentir o que você tinha por dentro.

Quando nós começamos a nos falar com mais frequência e a andar juntos, você me recussitou. Eu sabia que não estava mais tão oco. Eu sentia alguma coisa.

Mas você é como uma goiaba que comi num dia divertido. Pelos dez primeiros segundos parecia deliciosa, até eu reparar em algo branco, pequeno e gosmento que rastejava por onde eu havia mordido. Entrei em pânico. Eu era criança, nunca havia visto tal coisa e achei extremamente nojento. Eu nunca mais comi nem uma goiaba sequer.

Você parece interessante, você pode seduzir qualquer um e fazê-lo dizer "ela é tudo o que quero", mas você não passa de uma goiaba podre com um bichinho dentro. E qualquer um que te prove a fundo vai passar a te achar repugnante e nojenta. Mas às vezes as pessoas tiram o bichinho e continuam a comer a goiaba, ao invés de jogá-la fora.

Eu queria tirar a sua podridão, o seu "bichinho". Não consegui.

Você continua azeda, você continua cruel. E eu continuei a acreditar em você.

Enciumado. Eu certa vez estive extremamente enciumado. Porque eu te via falando com outras pessoas, pessoas com e sem trenó. Uma pessoa em especial me magoava mais ao chegar perto de você.

Era um rapaz até simpático, ao menos pelo parecer. Nunca falei com ele, mas já havia ouvido falar dele. Eu ouvia algumas de suas conversas com outras pessoas, e o nome dele muitas vezes era citado.

Doía. Eu sabia o carinho especial que você tinha por ele. Eu sabia que você puxaria o trenó dele, e que, ainda que você fosse azeda com ele, vocês sempre se entenderiam. Eu podia perceber isso só de ver como se olhavam.

Por que não me disse "vá embora" de uma vez? Eu continuei a puxar o seu trenó, esperando que visse que eu a amava mais do que o outro rapaz. Eu sabia que você não me amava, eu sabia que para você eu era só um nada, um conhecido, um escravo talvez.

Eu tentei ir embora tantas vezes, mas você sempre dizia "Me desculpe, eu gosto de você. Não vá." e eu ficava. Eu ficava e a dor continuava vindo, você não mudava!

Eu não acredito mais em você.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!