Puxar o Seu Trenó escrita por 01


Capítulo 1
Deserto Gelado




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Não nos conhecemos quando crianças. Não crescemos juntos. Aliás, nossa relação só "nasceu" graças à minha (extremamente estúpida) insistência. Eu adorava te irritar. Puxar e morder suas bochechas e falar coisas ridículas só para te ouvir me mandando para o Inferno. Porque, naqueles tempos, eu iria ao Inferno por você. Sem hesitar.

Era um doze de outubro quando você pela primeira vez me abraçou. Porque eu te forcei à isso. Eu inventava brincadeiras ridiculas que te obrigavam, de certo modo, à retribuir afagos. Te molhava com a mangueira, para que você me molhasse também, através de um abraço.

Era patético. Eu era perdidamente apaixonado por você. Eu sabia que era. E que não era recíproco.

Eu não ligava. "Eu a amo, vou amá-la por toda a eternidade. Eu não ligo para faculdade. Eu vou morar com ela. Logo. E vamos brigar e rir juntos todos os dias. Eu não ligo para quando ela me trata mal, quando me ignora, quando me machuca, quando mente. Tudo parece tão real... Tão bom. E eu me sinto bem com ela.". Eu poderia casar com você e desistir de uma pilha de outros sonhos, porque eu tinha uma gratidão enorme e um carinho enorme por você. Minha mente, meu corpo... Você era tudo o que passava por cada célula minha, e eu não ligava. "Eu estou feliz".

Eu estava cegamente iludido. Apaixonado. "Ela te trata tão mal!", "Vocês sempre brigam...", algumas pessoas me diziam. "Então, se acertaram de novo?", perguntavam algum tempo depois. Sempre nos perdoávamos. Nossas brigas eram estúpidas. Eu dizia algo, você discordava, eu insistia e você jogava na minha cara coisas que não eram verdade, e me machucava, porque me iludia.

Eu queria te "consertar". E você nem sequer estava quebrada. Você estava inteira, com todos os seus pecados, com todos os seus maus hábitos, com todo o seu jeito cruel. Com todo o sarcasmo, maldade e sedução pelos quais me apaixonei. Não havia nada para ser consertado, nada para ser salvo. Mas eu queria te salvar.

Às vezes você parecia vazia, sozinha. De fato estava. Fomos confidentes. Eu te contava tudo, e você me contava uma pequena parcela. Eu acreditava em tudo. E eu via alguma tristeza nos seus olhos. Uma tristeza com a qual eu queria acabar. Mas eu nunca poderia.

"Eu a amo". Eu acreditava nisso como em poucas coisas acreditei. Porque eu me sentia bem com você, como não me sentia com ninguém.

Eu estive morto por um bom tempo, sozinho, num deserto gelado. Meu coração era uma pedra de gelo em cacos. Eu precisava que alguém colasse os cacos e derretesse o gelo. Eu precisava sentir as batidas de novo, precisava sentir o ar entrar e sair do meu corpo gelado. Você me curou. Eu não sei como, se me feria tanto, mas você me curou.

"Eu sou um demônio...", você disse num dia ruim. Eu precisei pensar para responder da forma correta. E eu respondi, mais tarde, sozinho. Mas eu nunca te contei a resposta. Num caderno meu, tenho rabiscado um pequeno parágrafo que diz:

"Você não é um demônio. Demônios não curam almas, demônios não colam cacos. Demônios não fazem pessoas felizes. Você me fez feliz. E não como dinheiro e luxúria fazem. Você me fez feliz de verdade, por dentro, com palavras.".

E eu tinha razão. Você nunca foi um demônio. Mas você nunca foi feita para mim. Porque para cada caco meu que você juntava e colava, você deixava um arranhão profundo no meu coração. Cicatrizes ficaram, e eu não sei como fazê-las sumir.

Mas ainda assim, eu persistia. Estavamos perdidos, juntos num deserto gelado. Você me guiava, sentada num trenó. Eu te puxava e acreditava em tudo o que você dizia. Minhas pernas doíam e o frio me torturava. Mas eu te amava o bastante para continuar naquele deserto gelado por toda a eternidade. Eu acreditava que você era uma tocha acesa que nunca apagaria, que iria me aquecer para sempre. Eu acreditava que todo o frio que eu sentia iria passar. Eu acreditava nele como apenas uma geladeira aberta. Eu não enxergava o verdadeiro oceano de gelo que ele era. Eu não conseguia enxergar que, se eu caísse nele, morreria. Porque eu estava cego e iludido. A tocha me aqueceria e eu nunca cairia.


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