Segredo de Um Coração escrita por nanypotter


Capítulo 2
Capítulo 1




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/98548/chapter/2

CAPÍTULO I

Ilha Hogsmeade, Inglaterra

A tempestade não durou mais de uma hora, mas os ventos, com sua força destrutiva, tinham arrancado várias árvores e derrubado um celeiro, o qual tombara como uma armação feita com cartas de baralho. A chuva caía ainda do céu escuro, mas o pior já passara.

James Potter andava pelos canteiros, observando as mudas, tombadas pelo temporal. Avaliava os estragos, percebendo que acabara de perder dias e dias de trabalho duro nos campos de sua propriedade. A plantação estava arruinada e teria de ser totalmente refeita se quisesse colher alguma coisa no final do verão.

Meneou a cabeça, entristecido e desanimado, voltando-se em direção à praia, para onde se encaminhou com passos pesados. Quando se aproximou mais, saindo da linha de arbustos que contornavam a orla, divisou um barco junto à arrebentação.

— Ora, se um homem não se importa em amarrar bem sua embarcação, deveria perdê-la, por castigo — murmurou, irritado, mais pelo que lhe acontecera do que por perceber a falta de responsabilidade do provável dono do barco.

E, mesmo aborrecido, resolveu aproximar-se e amarrá-lo. Ao chegar mais perto, sentiu que a respiração lhe faltava. Havia muitos corpos inertes no fundo do barco. Estavam amontoados, mas pôde contar sete com certeza. Mulheres e crianças. Estavam desfalecidos, alguns tinham cortes que ainda sangravam.

James praguejou alto, e agarrou a proa da embarcação, puxando-a para fora da água. Quando conseguiu, ouviu um gemido dolorido e, de imediato, procurou identificar o sobrevivente.

Uma moça ergueu a cabeça levemente. Seus cabelos ruivos, como o fogo, estavam colados a sua cabeça e ombros, e contrastavam com a palidez cadavérica de seu rosto, dando-lhe um aspecto quase grotesco.

— Sara! — James sussurrou, em um misto de surpresa e incredulidade. — Meu Deus! Você veio!

Ajoelhando-se a seu lado, James levou as mãos aos ombros da moça, só então percebendo seu engano. Não se tratava de Sara; e, naquele momento, pôde ter certeza de que aquela estranha nem sequer se parecia com ela. No entanto, a voz de Cal ainda era um murmúrio rouco;

— Então, você sobreviveu... Pode se sentar? — Ele a amparava, ajudando-a a sentar-se no fundo molhado do barco.

Lily sentiu como se tudo se apagasse a seu redor por alguns instantes. Logo em seguida, percebeu o rosto do homem que estava a sua frente. Sua impressão foi um tanto vaga, mas pôde notar os cabelos despenteados e os olhos escuros. Era um homem alto e forte, e tinha uma expressão severa na boca de lábios finos.

Sua primeira reação foi de afastar-se, de desvencilhar-se daqueles braços o mais rápido possível. E assim o fez.

James percebeu o medo nos olhos verdes dela. Eles brilhavam, talvez de febre, ou choque.

Com calma, ele se afastou um pouco, para não assustá-la ainda mais. Percebeu que ela baixava a guarda.

— Onde estamos? — perguntou, por fim, com voz cansada.

James notou de pronto o sotaque sulista. Aquele sotaque trazia-lhe recordações que não queria ter no momento, mas que doíam de maneira quase agradável nos ecos de seu passado. Afinal, as mulheres de sua família sempre tiveram aquele jeito suave e típico de falar.

— Esta baía é conhecida como Baía das Tormentas — respondeu, tentando ser gentil com a desconhecida. — E fica ao largo da ilha Hogsmeade, bem afastada da costa de Charleston.

— Muito afastada? — Ela parecia aflita pela resposta.

— Talvez uma hora ou pouco mais. — Com aquelas palavras, James notou que a calma voltava aos olhos verdes da moça. Continuou, procurando perceber melhor as reações dela: — No entanto, eu não aconselharia que usasse um barco tão frágil quanto este se quisesse novamente se aventurar para ir até lá. Não sei como conseguiu sobreviver à tempestade que tivemos há pouco. Pode considerar-se abençoada por isso.

Ele teve de voltar-se ao notar que muitas das outras pessoas no barco murmuravam, como se começassem a despertar de um pesadelo. Sentiu-se aliviado por sua primeira impressão ter sido errada. Estavam todos vivos, embora seu estado físico fosse precário.

— Venha, vou ajudá-los a saírem do barco — ofereceu, estendendo os braços para Lily, e fazendo-a sobressaltar-se ao perceber que ele não tinha a mão esquerda.

Respondendo a um instinto mais forte, ela afastou-se. James recolheu os braços, tendo no rosto uma nova expressão, misto de raiva e decepção.

Lily apressou-se em quebrar a tensão do momento, passando por ele e murmurando:

— Posso descer sozinha, obrigada. — Estava aborrecida consigo mesma por sua reação incontrolável, mas não havia como desculpar-se sem tornar a situação ainda pior. Procurou, então, amenizá-la: — Entretanto, se quiser ajudar os outros, eu agradeço.

Lily pulou a amurada do barco e sentiu a força que ainda restava nas ondas, devido à tempestade. James apenas a observou lutando contra elas, sem fazer qualquer menção para ajudá-la, mesmo vendo-a cair de joelhos antes de atingir a areia. Cerrou mais os olhos e jurou que nunca mais ofereceria ajuda àquela mulher. Voltou-se e pegou a primeira criança que viu e que começara a chorar. Levou-a até a praia e depois fez o mesmo com todos os outros que estavam no barco. Quando todos descansavam a salvo sobre a vegetação rasteira da costa, James voltou-se mais uma vez para Lily e avisou:

— Bem, agora vou embora.

— Como assim, vai embora? — ela protestou, tendo uma expressão de desafio no olhar.

— Vou buscar alguns cavalos e uma carroça para vocês — ele respondeu, com paciência, como se falasse com uma criança; no entanto, era patente o tom de ironia que usava.

Lily apenas assentiu, mais sossegada.

No caminho de volta à casa, James refletia se ela realmente pensara que ele a abandonaria ali... Não parecia haver surpresa alguma naquilo, depois do que devia ter passado no mar. No entanto, não deveria se envolver nos problemas daquela gente, pois sabia que deveriam estar fugindo da guerra e, como quase todo o mundo, sofrendo seus efeitos devastadores. E ele, com certeza, não poderia resolver todos os problemas ou curar todas as feridas provocadas por ela. Na verdade, não podia nem sequer curar a si mesmo.

Forçando a porta enorme do celeiro com o ombro, entrou no galpão em penumbra, sentindo de imediato o cheiro agradável do feno cortado e da terra úmida. Eram cheiros que o acompanhavam desde a infância, naquela ilha, e pareciam fazer-lhe bem ao espírito.

Foi direto aos cavalos e começou a preparar uma parelha para levar a carroça até a praia, com víveres e tudo o mais que fosse necessário.

Quando voltou lá, pouco mais tarde, encontrou Lily ajoelhada entre os demais procurando acalmar os temores e as lágrimas dos sobreviventes. Percebeu aterrorizado que os corpos de uma moça ainda muito jovem e de uma menina estavam inertes.

— Qual deles está mais ferido? — indagou, aproximando-se.

— Marlene. — Lily caminhou até ela e tocou-lhe a testa, provocando-lhe um gemido. No entanto, Marlene permanecia com os olhos fechados.

James ajoelhou-se para examiná-la melhor, ouvindo o relato de Lily.

— Uma onda enorme nos atingiu e arremessou-as contra o fundo do barco. Marlene bateu a cabeça com força e, desde aquele momento, não mais se moveu.

James ergueu a moça nos braços e colocou-a na parte de trás da carroça, na qual havia posto alguns cobertores.

— Clara também caiu no fundo do barco, e acho que perdeu muito sangue — Lily prosseguiu, referindo-se à menina.

James notou o braço ferido da garotinha e enrolou-o com um pedaço de pano, colocando-a, em seguida, ao lado de Marlene. Quando retornou, Lily mandava que as outras crianças se colocassem em pé e subissem na carroça. Eles obedeciam como se estivessem sonolentos, ainda em choque pelo que lhes acontecera.

Assim que tentou subir também, Lily escorregou em uma poça de lama, e James ajudou-a de imediato. O contato da mão dele criou mais uma vez a onda de embaraço que já haviam experimentado antes, quando ela notara sua deficiência física. Por um momento, uma sensação diferente e inexplicável apoderou-se de Lily, fazendo-a enrijecer o corpo em uma reação que não conseguia explicar, muito menos controlar.

James também parecia pouco à vontade com a situação. Tinha a mão normal colocada ao redor da cintura de Lily e aquilo provocava-lhe sensações que pensava estarem adormecidas dentro de si havia muito tempo. Esquecera-se de como um corpo de mulher podia ser suave e frágil, de como seu cheiro podia ser agradável.

Uma voz inocente de menino veio de trás, do fundo da carroça, e quebrou aquela tensão:

— Senhor, perdeu sua mão na guerra?

— Nathanael! — Lily repreendeu de imediato.

No entanto, o estrago já estava feito. Sem responder, James terminou de ajudá-la a subir e depois fez o mesmo, indo para a boléia. Colocou a carroça em movimento, por sobre a lama fofa, afastando-se da praia.

As meninas menores estavam chorando, e Lily abraçou-as, murmurando palavras de conforto.

— Olhem! — Ela apontava para o celeiro, que aparecia na distância, recortado contra o fundo cinza-escuro do céu. — Vocês logo estarão agasalhadas e quentinhas.

Os cavalos, porém, continuaram, obedecendo ao comando das rédeas, passando pelo celeiro e dirigindo-se a uma construção muito maior, de estrutura sólida, com dois andares, ambos circundados por vastas varandas sustentadas por altas colunas de estilo grego. Parte da construção estava escura, como se houvesse sido consumida por um incêndio no passado, mas o resto era ainda imponente e belo.

Aquilo era ainda melhor do que Lily poderia esperar. Teria sido suficiente se tivessem abrigo no celeiro, mas a casa, com certeza, era um sonho que não ousara ter após o que tinham passado.

James rodeou a casa e parou em um pátio, aos fundos. Assim que chegaram, a porta foi aberta, e a visão de uma grande lareira atingiu o olhar surpreso de Lily. Algumas pessoas vieram para a varanda e aproximaram-se na intenção óbvia de prestar ajuda. Quando estavam bem próximos, Lily notou que se tratava de homens ainda jovens, talvez com a mesma idade daquele que guiava a carroça. Aliás, também como ele, estavam sérios e tinham olhares severos.

Todos foram retirados da carroça e levados para uma ampla e aconchegante sala, na qual havia sobretudos de lã pendurados ao longo das paredes, bem como uma prateleira um tanto baixa, com vários pares de botas de diferentes tamanhos. Havia um pequeno corredor lateral, ao fim do qual se via um outro cômodo, que Lily percebeu estar iluminado por vários candelabros presos às paredes, garantindo o aspecto aconchegante do local.

— É melhor tirarem essas roupas molhadas! — Uma mulher alta e diligente entrara no cômodo, trazendo vários cobertores nos braços. Seu rosto era harmonioso e seus cabelos negros estavam marcados de branco em vários pontos.

— Consegue me ajudar com as crianças? — falava com Lily, percebendo que ela talvez estivesse cansada demais para poder continuar cuidando dos pequenos.

— É claro que sim. — Mesmo tendo a cabeça pesada devido ao que passara, Lily lançou-se à tarefa com determinação.

Despiram as crianças e enrolaram-nas nos cobertores. A medida que cada uma era cuidada, era depois entregue a um dos homens que aguardavam e levada à outra sala. Lá, sentadinhos diante do fogo, foram se aquecendo e os menores logo adormeceram.

— Esta está bastante ferida... — Lily murmurou quando se aproximaram de Clara.

Ambas as mulheres trabalharam com cuidado para despir a menina e enrolá-la no cobertor. Ela foi, então, entregue a James, que desapareceu prontamente, levando-a pelo corredor.

Após cuidar das crianças, Lily e a mulher aproximaram-se de Emmeline, a qual despiu-se depressa, aceitando com prazer o cobertor que lhe era oferecido, indo juntar-se aos demais.

Quando chegaram a Marlene, que ainda jazia inerte, e retiraram-lhe as roupas, a mulher diminuiu a presteza de seus movimentos ao notar as marcas enegrecidas que a moça apresentava nas costas e nos ombros, bem como as cicatrizes que lhe marcavam a pele. Sem dizer uma palavra, porém, ela enrolou o corpo da jovem em um lençol macio e depois cobriu-a com uma manta, a qual manchou-se logo do sangue que ainda vertia dos ferimentos.

Mais uma vez James apareceu na sala e levou Marlene ao outro aposento.

— Bem, agora é sua vez — comandou a mulher, em seguida.

Lily livrou-se das roupas molhadas e pesadas, aceitando o cobertor com prazer e dirigindo-se para junto das crianças. Assim que entrou na sala, dois homens voltaram-se de imediato para vê-la, percebeu que tremia violentamente.

— Somos a família Potter — explicou a mulher, em seu modo prático de lidar com as situações. — Apesar de ter chegado em um momento pouco acolhedor, saiba que temos prazer em conhecê-la. Meu nome é Elizabeth Potter, mas todos aqui me chamam de tia Bessie.

— Meu nome é Lily Evans . A moça ferida chama-se Marlene Mckinnon. E esta é Emmeline . — Lily tocou de leve no ombro da garota.

— Emmeline... É um bonito nome — tia Bessie murmurou, tentando parecer simpática.

No entanto, Emmeline voltou os olhos para a chama de uma veia próxima. Eles pareciam divagar pelas sombras de sua mente, talvez em recordações que a deixavam mais triste do que poderia estar após o que passara.

— E o rapazinho, como se chama? — tia Bessie sorria apontando em direção ao garoto mais alto.

— Nathanael — Lily respondeu por ele.

— Já tenho oito anos e meio — ele acrescentou, com orgulho.

Lily acariciou-lhe os cabelos e foi apresentando os demais, sem esperar por mais perguntas da dona da casa:

— As meninas são Belle, que tem seis anos, e Emily, que está com cinco. A garotinha ferida é Clara, e completou sete anos há algumas semanas. A propósito, para onde ela foi levada?

— Para uma cama. — Tia Bessie voltou-se e apontou dois dos homens que Lily vira na casa. — Estes são meus sobrinhos, Sirius e Remus.

— Pode me chamar de Six — disse o mais alto deles, apertando a mão de Lily com força. Seus olhos azuis tinham uma expressão quase infantil. E, apesar de sua indumentária rude e de seu jeito um tanto brusco, era como se houvesse algo de engraçado em seu modo de olhar e falar. Lily indagava-se se ele estaria achando engraçada a maneira pouco ortodoxa com que haviam chegado àquela ilha. No entanto, aquilo não lhe importava muito no momento. Estava cansada demais para pensar no que os outros poderiam estar achando a seu respeito ou a respeito de seus protegidos.

Um outro aperto de mão, mais forte do que o anterior, fez com que erguesse os olhos para Remus, que era mais baixo, mas que parecia ser mais jovem do que Sirius. Tinha cabelos muito negros acastanhados e olhos castanhos, que contrastavam com os do outro. Sua voz era forte e possante e suas maneiras, mais finas que as de Sirius.

— Estamos muito gratos por sua hospitalidade — Lily achou-se na obrigação de dizer. — Eu... gostaria de agradecer de modo apropriado ao senhor que nos resgatou na praia.

— James? — Six sorria, com certo desdém. — Ele se ofenderia com qualquer manifestação de gratidão, dona. Meu irmão mais velho sabe que estava apenas cumprindo sua obrigação.

Irmão mais velho. Lily compreendia agora a semelhança de Sirius com o homem que os encontrara semimortos no barco. O rosto de traços bem marcados, os cabelos ondulados, a voz forte. No entanto, algo contrastava demais entre eles... Enquanto aqueles dois, apesar da aparência rude, queriam parecer gentis e acolhedores, o outro, a quem chamavam de James, mostrara-se zangado, até mesmo hostil... E desaparecera sem dizer uma palavra sequer. Não permanecera na sala nem ao menos para ser apresentado, como mandavam as normas mais simples da boa educação. Definitivamente, Lily achava-o grosseiro.

— Eu... gostaria de ver como estão Clara e Marlene, se não fosse muito incômodo — sugeriu, tentando desviar os pensamentos.

— Não é necessário, estão em excelentes mãos — tia Bessie argumentou, voltando-se para o homem negro e muito alto que mantinha-se parado á porta.

Ordenou-lhe, então: — Robert, traga leite quente para as crianças e algo mais forte para as mulheres. Vinho seria ótimo, já que precisam se aquecer bastante. Ah, traga-me algo bem forte, também.

— Perfeitamente, srta. Bessie. — E, com uma deferência especial, o homem deixou a sala de imediato.

Lily ia de criança em criança, verificando se estavam com febre ou se tinham mais algum machucado que não notara. Tia Bessie seguia-a com o olhar, notando seu apreço pelos pequenos. Naquele instante, James tornou a aparecer, vindo não se sabe de onde e dirigiu-se de imediato a ela. Sua voz tinha um tom repreensivo:

— Por que ousou sair naquela tempestade?

A voz forte assustou as crianças, que olharam imediatamente para Lily, em busca de proteção. Isso não passou despercebido aos outros membros da família Potter.

— Não fizemos nada de errado! — Nathanael defendeu-se, enfrentando James, apesar do medo.

As duas menininhas puseram-se a chorar. Lily colocou uma das mãos sobre o ombro do menino, para fazê-lo acalmar-se e ajoelhou-se junto das pequenas, em uma atitude consoladora.

— Ninguém nos acusou de fazer nada errado — murmurou, para deixá-los mais tranqüilos. E, erguendo os olhos para James, acrescentou com ar desafiador: — Não é mesmo?

— Eu apenas estou indagando por que alguém seria tão louco a ponto de sair em um bote daqueles em meio a uma tempestade infernal — ele explicou, sem mudar o tom de voz.

— Eu... não sabia que a tempestade estava se formando e que iria nos atingir — ela esclareceu, de modo evasivo.

— Ora, qualquer um poderia perceber que... — James continuou argumentando, mas sua tia interferiu, fazendo-o calar-se:

— Acho que já é muito tarde para falarmos disso, James. Poderemos continuar este assunto amanhã, não acha? Acho que, neste instante, o que esta gente precisa é de descanso. — E, voltando-se mais uma vez para Lily, sorriu e apresentou: — Srta. Evans, este é meu sobrinho mais velho, James Potter.

Eles apenas se olharam por breves instantes e moveram de leve a cabeça. Havia entre ambos uma animosidade incômoda e crescente.

— Obrigada por nos resgatar — Lily forçou-se a agradecer. — Agradeço a Deus por ter guiado nosso barco até sua praia.

— Seria melhor agradecer a Ele por ter desviado a tempestade para o mar. Aquele bote velho não teria agüentado por mais tempo. Aliás, enquanto Deus a estiver ouvindo, poderia pedir-lhe que colocasse um pouco de bom senso em sua cabeça e...

— Sente-se, Srta Evans — tia Bessie interrompeu-o mais uma vez, indicando uma cadeira junto à lareira.

Robert acabara de voltar, e ela retirou uma taça de vinho de sobre a bandeja que ele trazia, oferecendo-a a Lily.

Ela aceitou e bebeu-o, sentindo o calor da bebida envolvendo seu corpo agradavelmente. A poltrona na qual se sentara parecia-lhe agora extremamente confortável e, aos poucos, foi se desligando da realidade e deixando-se envolver pelo torpor provocado pelo vinho. As vozes masculinas pareciam estar cada vez mais distantes, e faziam perguntas que ela já não compreendia, embora ouvisse vagamente a resposta das crianças. Deixava-se levar pelo cansaço e pelo efeito da bebida.

— Quando foi a última vez em que comeram? — tia Bessie perguntou a Nathanael.

— Eu não me lembro.

— Mas lembra-se de quando dormiu pela última vez, não? — ela insistiu.

— Faz muitas horas, eu acho — foi Belle quem respondeu por ele.

— E onde fica sua casa?

— Não temos.

Um silêncio pesado caiu sobre a sala, enquanto os adultos se entreolhavam.

— E nenhum de vocês notou que a tempestade estava se formando?

Houve um outro silêncio, desta vez intencional por parte das crianças.

— E estão todos com a Srta. Evans? — agora era James quem perguntava, e sua voz forte e imperiosa deixava as crianças receosas em calarem-se mais uma vez.

— Estamos — Nathanael murmurou, sem ousar enfrentar os olhos dele. — Ela toma conta de nós.

Lily ouvia as vozes cada vez mais longe. Era como se não fosse capaz de identificar as palavras, como se não pudesse, ou não tivesse mais forças para estar presente e participar daquela conversa. Na verdade, não estava muito preocupada com aquilo no momento. Sentia-se tranqüila por saber que as crianças estavam a salvo, podia deixar-se relaxar e esquecer por segundos seu papel de responsável por aquele grupo. Entreabriu os olhos e vislumbrou a graciosa escadaria que levava ao andar superior. Lá no fundo de sua mente uma idéia surgia, embora enfraquecida pelos vapores do álcool: talvez permitissem que as crianças dormissem lá em cima, em camas de verdade...

As vozes pararam de soar, e o copo vazio foi retirado de entre seus dedos amolecidos pelo sono e pela exaustão.

Quando tomou a acordar, viu que o fogo se extinguira na lareira, e as velas já não queimavam mais. No entanto, não sabia ao certo por quanto tempo dormira. Suas pálpebras estavam pesadas demais ainda e foi contra sua vontade que cerrou os olhos mais uma vez. No silêncio que se seguiu, ela sentiu que era erguida em braços robustos e amparada contra um peito forte. Sorriu de leve, ao lembrar-se de como era bom quando seu pai a levava para a cama nos braços.

— Oh, papai, está em casa, afinal... — murmurou, com um suspiro de alegria e alívio. Passou os braços pelo pescoço do homem que lhe parecia ser seu pai e sentiu-se tranqüila como não se sentia há muitos anos. Anos de luta e dor, incerteza e fome. E de medo, também. No entanto, tudo aquilo era passado... Agora estava com o pai, na segurança de seus braços.

Sentiu que era colocada sobre uma cama macia e depois coberta. Conforme ele se afastava, Lily não pôde deixar de tomar-lhe a mão e levá-la aos lábios para mais uma vez tomar-lhe a bênção. No entanto, uma expressão de desagrado escapou dos lábios daquele homem, fazendo-a abrir os olhos.

Ele era alto e forte como seu pai, mas não havia cabelos grisalhos em suas têmporas. O rosto era jovem ainda e os olhos, duros, encaravam-na com uma expressão firme e cheia de significados.

Como já acontecera antes, Lily afastou-se depressa, em um gesto de temor e rejeição, do qual, mais uma vez, arrependeu-se de imediato. No entanto, estava furiosa consigo mesma por ter feito papel de tola diante daquele homem tão frio e severo.

Sem dizer uma palavra, ele deu-lhe as costas e saiu do aposento, fechando a porta com firmeza e deixando-a sozinha com seu embaraço.

James retirou as roupas úmidas e pegou uma toalha. Conforme se enxugava, caminhou até a janela e observou o mar, onde clarões distantes denunciavam a continuidade do temporal. Somente um tolo ou um louco se aventuraria em um mar assim, em uma noite como aquela. Recostou-se ao peitoril da janela, esfregando a toalha pelo peito e pensando nas crianças que recolhera do barco. Era óbvio que estavam muito assustadas. Ele já vira aqueles mesmos olhos apavorados em centenas de sobreviventes no sul do país. No entanto, aqueles sete, em especial, pareciam mais amedrontados do que seria de se esperar. E mantinham-se calados...

No que se referia a Lily Evans, era patente que a agressividade, a rudeza dela serviam a algum propósito especial. Como se estivesse disposta a enfrentar qualquer um que se colocasse entre ela e aqueles a quem protegia.

James sabia que a guerra transformava as pessoas, e que aquela guerra em particular deixara muita gente embrutecida. E sentia raiva por aquilo. Por que a guerra repartira aquela grande nação? Por que destruíra famílias inteiras e transformara tantas pessoas?

Ele tentava, sem muito sucesso, parar de pensar na mulher que salvara. No primeiro momento em que a vira, tivera a exata impressão de que... Bem, era melhor nem se lembrar. Afinal, não havia mais lugar em sua vida para uma mulher, fosse ela quem fosse. Ainda mais uma que o fazia lembrar-se do passado!

Mas ela o chamara de pai... Estranho!... Estava adormecida e abraçara seu pescoço com suavidade. Era uma reação normal, considerando-se o estado de exaustão em que deveria se encontrar. O que o preocupava, porém, não era a reação dela, mas a sua própria. Ela o chamara de pai, mas nada houvera de paternal no que sentira ao ser abraçado.

James jogou a toalha com raiva sobre a cama. Estava sentindo-se um verdadeiro tolo. Caminhou até sua cama, mas sabia que o sono demoraria a chegar. Enquanto esperava por ele, virando-se muitas vezes entre as cobertas, a impressão daquele abraço continuava a incomodá-lo. Tinha que reconhecer, mesmo a contragosto, que aquele toque, aqueles braços finos e cansados ao redor de seu pescoço, a respiração suave e ritmada junto a sua pele, faziam-no sentir algo que há muito esquecera: desejo.

~*~J/L~*~

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

N/A : Os marotos o/

Espero que estejam gostando!

Bjos

Nany