Sorrisos de Guache escrita por IsaS


Capítulo 2
CAPÍTULO 1º




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CAPÍTULO 1º

 

         Era uma vez uma cama. Sim, uma linda e deliciosa cama que me abrigava todas as noites, todas as tardes e todos os dias. Toda vez que o medo e a angústia invadiam meu coração, lá estava Anabelle, minha linda cama. Dar um nome para cama não é tão estranho quanto você pensa. É só analisar: as crianças dão nomes aos seus bichinhos de pelúcia, aos seus bonequinhos e barbies. E automaticamente, amam esses objetos, vivem com eles e até dormem com eles. E eu me considerava uma criança afortunada, porque, além de amar minha cama de paixão, de ter dado um nome a ela, tínhamos uma relação muito forte, do tipo em que ela abria os braços para me aninhar e ser minha porta de entrada para a fuga ao mundo dos sonhos. E melhor que isso, eu não dormia com ela, eu dormia em cima dela. Anabelle era, sem dúvidas, minha paixão e adorava comprar lençóis de seda francesa para cobri-la. Era uma forma de recompensar as gentilezas que me fazia.

         Era uma vez uma cama que sentiu meu peso rolar de um lado a outro em seu espaçoso colchão. Além disso, sentiu o peso de Branca subir em sua adorável e convidativa superfície, deitando-se ao meu lado, e lambendo meu rosto.

 

– Já acordei, cadela ingrata! – reclamei. Abri os olhos e me espreguicei, joguei minhas pernas de lado e coloquei meus chinelos de lã italiana, abandonando Anabelle para colocar a comida congelada no microondas. Meu apartamento não era grande, mas era confortável, quente e aconchegante. Eu havia improvisado um novo design que havia ficado perfeito.

Possuía uma sala – que além de sala, havia virado meu quarto, meu escritório, minha sala de TV e de jantar –, uma pequena cozinha equipada com meus aparelhos preferidos – microondas e geladeira – e alguns outros mais, um banheiro – composto por uma banheira, o que para mim já bastava, e todas aquelas louças importadas –, e havia mais um quarto e outro cômodo, que eram proibidos à entrada. Ninguém entrava lá, nem mesmo eu. A única parte que eu ia além corredor era o closet.

Quase me sentia bem em estar naquele apartamento, quase.

 

– Aqui está.

 

         Coloquei a comida no chão – depois de descongelada – para que Branca pudesse tirar a barriga da miséria e sentei-me no pequeno sofá de couro preto, importado, em frente a TV. Coloquei o pote de sorvete de chocolate suíço no colo e passei a assistir “F.r.i.e.d.s.”. Branca latiu depois de uma hora de risadas fingidas, eu a olhei e gemi.

 

– Hm, o que você quer agora, hein?! – choraminguei. – Não pode me deixar em paz nem por um segundo? Já tive que deixar Anabelle por você, agora... – a cadela de pêlos impecavelmente negros pulou no sofá e ali se acomodou, colocando sua cabeça entre a patinhas, sorri. Se todos os seres humanos fossem assim, estaria feita.

 

Mas o que eu sabia de seres humanos, mesmo?! Nada, absolutamente nada, porque simplesmente, eu não me relacionava com eles. Fazia uma semana que eu não pisava no café, fazia uma semana que eu não falava com ninguém, a não ser com o entregador de pizza. Eu tinha medo dos humanos, tinha medo de tudo. E o pior: eu era humana, a piorzinha de todas, daquelas medrosas, fracassadas, fracas e choronas. Eu era uma pessoa péssima.

Levantei-me do sofá atormentada e olhei a vista da janela.

         Aquele apartamento estava lotado de lembranças, e elas me massacravam. Lembro-me dele aqui, me abraçando enquanto eu bebia café e via como as pessoas eram pequenininhas do vigésimo nono andar. Lembro-me dele, atravessando a porta e dizendo-me que eu estava linda, mesmo estando de chinelos de lã, pijama das Meninas Super Poderosas, e com o cabelo pior do que do mendigo da esquina. Lembro-me de seus olhos, me olhando quando eu resolvia comer sorvete na frente da TV vendo meus seriados – como de costume – e ele, por sua vez, queria ver futebol americano. Lembro como ele me chantageava e como tirava minha camisola nas noites de verão. Lembro-me de tantas coisas... Eu não queria lembrar.

         Voei para cozinha, precisava ter alguma bebida ali. Nada, nos armários e na geladeira.

 

– Merda! – amaldiçoei e Branca se encolheu ainda mais. Coitadinha, não merecia uma dona como eu. Arranquei o pijama correndo e me enfiei numa calça jeans que eu havia usado na ultima semana. Corri para o closet – evitando olhar para as portas que apareciam no corredor – e vesti uma camiseta branca. Coloquei as luvas e peguei meu casaco de couro importado, capaz de me esquentar no Alasca. – Estou de saída, meu bem! – gritei a Branca e lhe mandei um beijinho, arrumando apressadamente meu all stars nos pés.

 

         No elevador, parecia que estava voltando à minha consciência sã. Onde eu estava indo? Para a rua? Para o amontoado bagunçado de humanos irritantes e horríveis? No desespero, comecei a apertar todos os botões do elevador, tentando pará-lo. Nada feito, já era tarde demais e quando dei por mim, mais vizinhos entravam a fim de descer ao térreo e eu estava encurralada. Respirei fundo muitas vezes, e dei um sorriso amarelo ao japonês que morava embaixo do meu apartamento para disfarçar o nervosismo.

 

– Agora que já estou aqui... – resmunguei para mim mesma e assenti para o japonês, que ainda me olhava com uma expressão estranha. Eu realmente não queria saber no que ele estaria pensando. – Que demora, né?! – tentei disfarçar.

 

– Garota estranha... – murmurou ele com sotaque, mexendo a cabeça de um lado para o outro.

 

– Ah, tá. – não pude responder nada a mais. Já estava no térreo. Acompanhei as outras pessoas que saíam do elevador. Senti-me confusa, atormentada, e, mais do que nunca, com medo.

 

         Por fim, fui levada – contra meus pés – até a rua. Estava cheia de gente que ia e vinha. Respirei fundo. Só quero uma bebida, pensei. Tomei rumo ao supermercado que tinha ali por perto. Continha ótimos vinhos, apinhado de garrafas. Era pra lá que eu ia. Entrei no estabelecimento, andando apressadamente entre os corredores, tendo o cuidado de sempre manter minha cabeça baixa. Peguei duas garrafas de vinho do Porto caminhei pelo corredor dos sorvetes.

 

– Chocolate ou nozes? – resmunguei a mim mesma, comparando os sabores de uma marca importada da Alemanha, sem – nunca – ao menos olhar o preço.

 

– Isabella? – virei-me cautelosa ou ouvir meu nome, e torci para que estivessem chamando outra pessoa. – Bella, é você mesmo?!

 

         Uma menina de cabelos curtos e espetados me sorria, como se não me visse há muito tempo. Talvez, não visse mesmo, então tentei analisa-la do melhor jeito possível. Vestia-se bem, estava evidente; maquiava-se impecavelmente, como havia percebido. Usava saltos Prada. Talvez fosse alguma assessora do café, ou até mesmo, alguma publicitária que eu havia contratado. Mas era muito improvável que eu tivesse laços afetivos com alguém que trabalhasse para mim, considerando que eu evitava esse tipo de contato.

 

– Pois não? – franzi o cenho.

 

– Bella, sou eu! – ela esperou que eu reconhecesse. – Alice Cullen, de Oxford!

 

         Alice Cullen, Alice Cullen... Lembrei-me de duas meninas – sendo uma, eu – estudando desesperadamente para as ultimas provas, de algumas promessas esquecidas, de alguns pactos já quebrados. Mas para falar a verdade, eu não tinha beijado Carl Madinson. Espero que da parte dela, isso também estivesse intacto.

 

– Ah! – lhe apontei um dedo com a mão livre enquanto ela sorria, esperançosa. – Não beijou Carl, beijou?!

 

– Não! – ela me abraçou, e eu sem saber o que fazer, correspondi seu abraço.

 

 

– Deixe-me ver se entendi. – pediu-me e revirei os olhos. Havia me esquecido de como ela era, mas para falar a verdade, Alice ainda era a mesma de sempre, não havia mudado nada, além do estilo de se vestir. Já eu, continuava a mesma curtidora de muito álcool e rock. Velhos hábitos nunca mudam, afinal. Estávamos em seu carro, depois de insistir em me levar para casa e praticamente se convidar para entrar, mas é claro que eu disse que Branca era uma cadela feroz e tudo mais; e assim, ela desistiu, deixando-me grata à imagem de minha companheira. – Você se casou, está viúva agora. – assenti de má vontade – É dona do café mais famoso e delicioso da cidade, e agora, faz uma semana que não sai de casa? – continuou incrédula. – Porque tem medo de gente?!

 

– Isso. – concordei com uma felicidade fingida. Felicidade de verdade, eu nem sabia mais o que era.

 

– Ave Maria, Bella! Economize minha beleza! – ela estava brava? Comigo? – Por que não sai? Não vai se divertir?

 

– Que tal, porque não quero...? – arrisquei uma resposta, mal humorada.

 

– E que tal... é porque você tem medo do desconhecido...? – arriscou também, com um tom sarcástico desprezível.

 

– O que quer que eu faça, hum?! – perguntei irritada. – Estou deprimida, e admito isso! Com orgulho! Cansei de me importar com pensamentos alheios, e cansei de fingir estar feliz pelos outros! E já que todo mundo começou a sofrer pela minha dor, pela minha perda... – soltei tudo, curta, grossa e rapidamente. – Resolvi me isolar. Ninguém se machuca, e eu vivo como eu quero! Ponto!

 

– Resolve alguma coisa? – ela me olhou.

 

– Não. – admiti. Minha família ainda sofria pelo meu afastamento, assim como a família de meu falecido marido, que eu tentava esquecer que os conheci. Não tinha mais amigos, nada me restou. Apenas Branca. E agora, talvez, Alice.

 

– Então mude. Se você não mudar, não reagir, vai ser pior e nunca vai conseguir, de fato, viver. – ela suspirou. – Já pensou que está sobrevivendo, não, vivendo?

 

– Já pensou que você está se metendo onde não é chamada? – perguntei irritada com tantas verdades esfregadas na minha cara. Ficamos em silêncio por alguns instantes. A verdade era que ela estava certa, mas eu não podia dar o braço a torcer assim, tão facilmente. Já estava me arrependendo, afinal, mesmo depois de tanto anos, Alice ainda estava sendo minha amiga. Ela era minha amiga.

 

– Você tem razão. – ela suspirou derrotada e olhou nos meus olhos. – Desculpe-me, Bella. Você tem toda razão. Cada um é cada um. – eu respirei fundo, querendo dizer que quem tinha razão era ela, mas eu era orgulhosa demais para isso. – Agora, sei onde você mora e tenho seu número de casa, celular, e-mail e qualquer joça que me faça entrar em contato com você.

 

– Obrigada. – sorri. – Por tudo. – ela sorriu e eu saí de seu carro que já estava parado no meio fio da calçada. Entrei no prédio já bebendo da garrafa meu vinho. Observei o mesmo japonês de mais cedo entrar no elevador, e quebrei o silêncio enquanto não chegava ao seu andar. – Gosta de vinho do Porto?

 

         Ele me olhou assustado e balançou a cabeça rapidamente, negando veemente sua afirmação muda. Mordi os lábios reprimindo um risada.

 

– Sou estranha, né?

 

– Você nem imagina, garota. – disse ele, cauteloso, segurando suas sacolas de papelão nas mãos, e tentando se esconder atrás delas.

 

– Ah, imagino sim. Mais do que o senhor pensa. Mas só um aviso, - inventei de ultima hora. – Se me procurarem, diga que fui para o Afeganistão, okay?! – ele assentiu, saindo correndo do elevador quando chegou seu andar. – Boa noite, e lembre-se do que eu disse, senão... – gritei e sorri quando as portas metálicas voltaram a se fechar.

 

 

         Era uma vez uma cama, que voltou a ser amassada pelo meu corpo inerte, e atolado de vinho. Anabelle voltou a sentir o peso de Branca ao meu lado, e deve ter suspirado de alívio a me ver ali, a salvo em seus braços acolhedores cobertos por um edredom sedoso e importado – claro –, e deve ter sorrido quando adormeci logo, sem ao menos ter dúvidas de minha escolha de fuga. Essa cama nem imaginava, mas por baixo de minhas pálpebras, escondia-se uma decisão, que mesmo sendo arriscada, já havia sido tomada. E assim como eu senti, Anabelle sentiria a fria solidão invadir os lençóis que a cobriam logo pela manhã, pois eu não estaria aqui.

 



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Notas finais do capítulo

Gente, posso postar mais? Tá legal?! Me avisem, hein?! Valeu!