Donna Koe De, Donna Kotoba De? escrita por Anna H


Capítulo 8
Cold-and-Warm-Hands




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/9197/chapter/8



– Meu deus.

Foi tudo o que consegui dizer ao olhar a janela. Era menos de cinco da tarde, mas podia ser meia noite, estava escuro do mesmo jeito. Aquela seria a pior tempestade em anos e Shinya não estava em casa.

“Me espere para jantar”. Era tudo o que eu tinha dele: um papel com um recado ridículo. Me espere para jantar. Ooi, eu agradeceria se, da próxima vez que o jornal previsse uma tempestade repentina, você pudesse me deixar algo mais explicativo ao menos dizendo aonde diabos você vai!

Ah, e aí estava ela. Não era exatamente uma tempestade, seria um insulto chamar assim. Estava mais para um dilúvio enfurecido criado por um deus irado com o objetivo de destruir o mundo carregando tudo que não conseguisse resistir. Eu mal conseguia enxergar um palmo para fora da janela e tinha que esperar Shinya para o jantar.

Nas duas hora que se seguiram, eu devia ter mandado no mínimo umas mil mensagens de texto e voz para o número dele, sem contar as vezes que liguei esperando que ele atendesse e eu pudesse gritar um “volte pra casa agora”.

Eu estava ficando realmente muito preocupado. Lá se tinha ido meu último cigarro e eu estava considerando a idéia de ligar para a polícia e reportar um desaparecimento. Às vezes eu me perguntava se ele percebia essa minha obsessão exagerada por ele. Digo, se alguém fosse assim comigo, eu sairia correndo com medo. Mas eu não conseguia evitar que minha mente voasse para o rosto dele sempre que não estivesse pensando em outra coisa.

Embora pensar em Shinya fosse reconfortante, eu não conseguia me acalmar mesmo estando cercado dos objetos e móveis dele. Tudo era apenas um lembrete de que de algum modo, ele poderia acabar não voltando. Eu não estava exagerando. O temporal estava derrubando árvores e postes, imagine o que faria com um ser humano frágil como ele?

Eu suspirei e joguei uma das almofadas do sofá na poltrona do outro lado da mesa de centro. Pela milésima vez, chequei a caixa de mensagens. Ela continuava vazia, como estivera nas ultimas três horas, e o aparelho foi parar na poltrona também.

Levantei e me deixei refazer o caminho das escadas pela décima vez. O quarto dele era o menor, mais próximo da escada. Estava no último degrau quando ouvi a porta ser aberta e o som da chuva ficar mais alto. Meu coração pareceu não bater até que eu estivesse apertando o corpo encharcado de Shinya contra o meu. Ele tremia como um louco, tão pálido que parecia cinza e os lábios estavam azuis.

Apressei-me em despi-lo do casaco ensopado e das duas blusas extras e o levei ao banheiro do segundo andar. Abri toda a torneira de água quente da banheira e só então lhe tirei o resto da roupa. Ele sentou-se na água fumegante e eu me ajoelhei ao seu lado, acariciando seu rosto gelado. Ao me olhar, Shinya pareceu infinitamente cansado.

“Eu volto já”, eu disse antes de levantar e ir à cozinha fazê-lo um chá quente. Quando retornei, a torneira já havia sido fechada e ele brincava com os dedos na água, que quase cobria seus joelhos dobrados no peito. A caneca foi recebida com um sorriso vago e o chá bebericado devagar. O tempo inteiro, fiquei sentado no chão frio do banheiro, observando-o. Eu estava louco para berrar, mas não podia fazê-lo quando Shinya parecia tão abatido.

Quando a água esfriou, tirei-o de lá e ele entrou debaixo do chuveiro para lavar o cabelo enquanto eu voltava à cozinha. Pus as roupas ensopadas no cesto de roupas sujas e levei-o um conjunto de pijamas e meias. Depois, quando subi com o lamén instantâneo que havia preparado, encontrei-o sentado na cama, assistindo à televisão sem muito interesse.

Sentei-me ao seu lado e ofereci o jantar improvisado. Ele aceitou e comeu um pouco, mas logo deixou-o no criado mudo. Eu tentei fazer com que comesse mais, mas ele apenas sorriu e sentou-se em meu colo, encolhido, como uma criança faria.

Desisti e o abracei com força, sentindo sua respiração acariciar meu pescoço. Não demorou muito e ele dormiu. Com um pouco de dificuldade, desliguei o televisor, arrumei os travesseiros atrás de mim e nos cobri. Dormi ali mesmo, sentado, apertando Shinya contra meu peito.



Acordei sozinho, deitado do outro lado da cama. A cortina estava entreaberta e o céu azul brilhante que eu via através dela me fez duvidar se na noite anterior havia mesmo acontecido um dilúvio que me trouxera Shinya encharcado até os ossos. ...Shinya?

– Shinya?

O cheiro de algo doce sendo assado alcançava a escada desde o topo, fazendo meu estômago roncar. Nada como cupcakes feitos por Shinya para quebrar um jejum amargo. Chamei seu apelido ao vê-lo sentado na mesa voltado para a janela, ainda de pijamas, mas ele não se virou ou deu sinal de ter me ouvido. ... Ele não podia estar me ignorando outra vez, principalmente depois de ontem. Bem, era uma oportunidade para dá-lo um belo susto, não era? Então, aproveitemos.

Pisei mais leve ao entrar na cozinha e rodeei a mesa por trás, mas quando eu estava a poucos centímetros dele, ele se virou e, apesar de não estar esperando me encontrar ali, não pareceu muito surpreso. Minha cara era provavelmente de desgosto, mas ele apenas sorriu e enlaçou meu pescoço com os braços finos. Os lábios dele estavam quentes e a boca tinha gosto de massa de chocolate.

Ele parecia brilhar quando se afastou em direção ao forno e eu fiquei plantado em meu canto, sentindo-me embriagado por seu sorriso.

Nem de longe se parecia com o homem da noite anterior, com olhos tão cansados e a derrota se destilando em sua pele. Vendo-o agora tão radiante, eu não queria perguntar o que acontecera, apesar da vontade de saber me correr por dentro. Ele não queria falar sobre aquilo comigo, visivelmente. Bem, ele falaria quando achar que deveria.

Shinya estava desenformando os bolinhos e os arrumando sobre um papel posto sobre o mármore da pia. Chegando mais perto, vi cremes coloridos e confeitos separados em vasilhinhas decoradas com desenhos manuais. Cobertura. Ele deve ter me visto espiando por cima de seu ombro e me sorriu, indicando com a cabeça a mesa. Eu devia prepará-la. Abracei-o pela cintura e continuei espiando.

– Eu não posso só ficar olhando?

Ele fez o sorriso de lábios apertados que eu adorava e balançou a cabeça, começando a decorar um cupcake. Dei uma última olhada e avisei-o para tomar cuidado com o que estivesse quente. Ele sorriu outra vez, acenando com a cabeça. Eu fui empurrar o vasinho de flores que ficava no centro da mesa e arrumá-la com pratos, xícaras e talheres. A cozinha estava clara, uma raridade - a casa baixa era cercada de prédios altos que mal deixavam o sol passar. Tudo parecia brilhar, inclusive Shinya.

Quando ele veio à mesa trazendo os cupcakes numa bandejinha, as palmas das mãos dele estavam estranhas, meio vermelhas demais. Não estavam assim minutos atrás. Olhei ao redor, procurando algo que soltasse tinta ou algo assim, mas não havia nada.

– Você queimou as mãos..? – ele me olhou como se não tivesse entendido, mas eu sabia que sim. No segundo seguinte, eu estava segurando os pulsos dele debaixo da torneira da pia. – Você não sentiu? Não está doendo?

Shinya olhava atônito para as mãos machucadas. Ele realmente não havia percebido que tinha metade das duas mãos ardendo?

Ficamos os dois parados, olhando a água correr pelos dedos dele, em silêncio. Chamei seu nome, mas ele ignorou. Ele estava me ignorando muito nos últimos dias. Às vezes, era necessário que eu repetisse até quatro vezes para que ele se dignasse a sequer me olhar. Chamei-o de novo e desta vez ele virou-se para mim. Disse-lhe para ficar com as mãos debaixo da água enquanto eu ia buscar uma pomada e gaze para fazer um curativo. Ele acenou com a cabeça e eu o deixei só.

Numa das gavetas do banheiro havia uma caixa de primeiros socorros que eu sempre me perguntava para que diabos servia; Shinya não parecia o tipo de pessoa que se acidentava com freqüência. Mas agora eu estava agradecendo por ela. Quando voltei, ele estava encolhido frente a pia com o rosto vermelho e mordendo os lábios. Agora ele estava sentindo.

Sentados na mesa, derramei uma quantidade um pouco exagerada de pomada nas mãos  dele e espalhei com o máximo de cuidado que consegui por cima das partes mais avermelhadas e mais ao redor. Quando tentei enfaixar, tive certeza que as caretas que Shinya fazia eram mais pela minha perícia com a gaze que pela dor. Ao terminar, era como se ele tivesse esquecido as mãos dentro de uma forma redonda de gesso.

Obviamente, bastou que eu virasse as costas por um minuto e as bolas de gaze se tornaram um curativo prático e profissional, como era de se esperar dele. Quando perguntei como diabos ele havia feito aquilo, fez cara de desentendido e riu. Ele tentou pegar um dos cupcakes, mas não funcionou.

Sorri, e ele sorriu de volta. Aquela manhã estava quente.


 Já ia pouco mais de um mês que eu estava na casa dele, meu apartamento, alugado. Incrível como aquele lugar ficou... aconchegante depois que Shinya passou por lá. Quando eu morava lá, qualquer um mandaria queimar e exorcizar o andar inteiro. Ele também tinha jogado fora metade das minhas roupas e me arrastado para comprar novas. O maior quarto daquela casa era um armário. A metade só de casacos. Segundo ele, nunca havia me mostrado porque tinha medo que eu o achasse maluco. ... Eu já o achava louco desde a primeira vez que o vi, sendo arrastado por dez cachorros alheios e salvando vidas a troco de nada. Às vezes eu tremia pensando que, se fosse ao contrário, ele estaria morto agora. Sei que não faria falta a mim, uma vez que jamais o teria conhecido, mas era um crime à humanidade privá-la da existência dele. Talvez fosse por ele que existiam belezas no mundo. Ou talvez fosse por ele que o mundo ao menos parecia bonito. ... É, era isso.

Mesmo que a casa fosse quase tão silenciosa quanto um cemitério e cheia de sombras projetadas, ela ainda parecia brilhar. Apenas quando Shinya estava lá, mas brilhava. Nas últimas semanas ele vinha tentando me ensinar a linguagem de sinais, mas eu geralmente acabava dormindo na cadeira, exausto de agüentar Niikura e Toshimasa pegando no meu pé o dia inteiro. Quando isso acontecia, qualquer objeto mais ou menos pesado estava sujeito a acertar qualquer parte do meu corpo que Shinya conseguisse mirar, mas no fim ele acabava desistindo. Um dia, dou minha palavra, um dia eu aprenderia a me comunicar com ele pelas mãos.

Shinya também andava meio... desastrado. Em um mesmo dia, foi capaz de bater a testa duas vezes no mesmo armário, e depois apareceu com um hematoma no ombro que ele jura não ter idéia de onde saiu. Coisas assim vinham se repetindo com freqüência, o que me deixava preocupado. Talvez ele fosse do tipo desastrado e, de alguma forma, com uma força superior, havia conseguindo esconder isso de mim, o que explicava a caixa de primeiros socorros enormemente suprida. Não era nada demais, talvez até engraçado, vê-lo bater a cara na porta por achar que estava aberta. Só era um pouco preocupante.


– ... O que foi aquilo?

Ele me olhou sem entender.

– No dia do temporal, onde você foi? Achei que tinha sido levado pela chuva, juro.

“Tinha uma consulta marcada.”

– Por que não me avisou? - estiquei meus braços através da mesa de centro e toquei a mão fria dele. – Não é que eu esteja... brigando, mas fiquei preocupado, ainda mais quando você me apareceu daquele modo.

“Lembrei depois que você saiu de casa, e ainda estava ensolarado quando saí.”

– Não tinha como ter me avisado? E você voltou a pé no meio daquela chuva toda, Shin... Devia ter esperado em um lugar seguro... Estou aliviado que não tenha pegado uma pneumonia... – ele apertou minha mão com os últimos dedos; metade de sua palma ainda estava sensível.

“Sinto muito”

– Foi fazer o quê no médico? Só por curiosidade...

“Garganta. Tenho que ir lá de tempos em tempos, só para me certificar se não vou acabar perdendo outra coisa além da voz também.”

Levantei e passei por cima da mesa baixa, ignorando o desespero de Shinya, e me sentei ao lado dele, abraçando-o.

– Você não vai perder mais nada.




Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!