Dançai, Irmão escrita por Joker Joji


Capítulo 1
unique




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"Onde a alma possa descrever

suas mais divinas parábolas

sem fugir à forma do ser,

por sobre o mistério das fábulas."

 

(Carlos Drummond de Andrade, “A dança e a alma”)

 

A primeira coisa que fiz foi olhar para cima. Porque, tecnicamente, eu já estava no topo - o que haveria depois disso? Dizemos que o céu é o limite, mas eu havia ultrapassado esse reles conceito mortal. Agora, eu estava numa forma espectral, enquanto meu corpo terreno era digerido por bactérias e fungos, e eu até ficava feliz quando imaginava isso. Sei que é um "pós mortem" muito capenga, todos têm planos magnânimos para depois de mortos, de viverem na eternidade; no entanto, eu estava muito feliz de saber que fui útil para, pelo menos, pequeninos seres decompositores.

 

Era bom pensar assim, apesar de eu não mais sentir aquele calorzinho na barriga de quando fazemos algo bom.

 

Não havia nuvens douradas no chão nem um céu azul lá em cima. Se fosse para comparar com alguma realidade terrena e celeste, eu diria que estava mais para um dia nublado. Havia também várias almas carregadas ao meu redor, como nuvens cheias de chuva, rostos cinzas, mãos para baixo. Imaginei que fosse porque também soubessem aonde estávamos indo. A nossa frente, um arco meio grego separava aquele "hall" de uma saleta amorfa, na qual se formava uma fila gigante de outras tantas entidades.

 

É. Era o próprio juízo final.

 

Pessoalmente, estava excitada com a ideia de ver Deus. Sorria, talvez porque não tivesse muito com o que me preocupar... Sabia que não havia sido uma má pessoa. Claro, uns mal-entendidos me martelaram a mente por um tempo, mas ele próprio - seus segundos, minutos, dias - fizeram questão de apagá-los de minha mente. Gosto de ver como isso tudo virou tão etéreo agora. Tão sem valor, sem sentido. Provavelmente, a eternidade agora me amarrava com suas cordas de títere. Ou eu reencarnaria, quem sabe. Pus-me a pensar se me tornaria igual àqueles presidiários que tracejam a parede aguardando o dia de serem libertos.

 

Depois, olhei para baixo. Sabe aquilo de "fulaninho vai estar olhando e zelando por você"? Bem, senti uma pontada forte de decepção - linguagem puramente metafórica - quando vi uma superfície opaca e muito lisa aos meus pés. Não havia modo algum de enxergar através dela. Na verdade, mal havia modo de andar por cima dela, tal era sua falta de atrito, de maneira que parecíamos todos flutuarmos.

 

Sendo sincera, eu já começava a ficar entediada. Porque, para falar a verdade, aquela recepção do Céu não era nada grandiosa; não havia o glitter, o áureo, o luxo, só havia o infinito a nossa frente. Infinito esse que, cá entre nós, depois de visto fica tão sem graça quanto o finito. O segredo só nos atiça a curiosidade enquanto nos é secreto, assim como o conto perde sua mágica se relido.

 

Notem vocês que não sou - nem nunca fui - um espírito muito paciente. E aquela fila começava a me incomodar. Caso eu ficasse lá por Cima mesmo, tinha certeza de que procuraria um Atendimento ao Cliente em breve... Quem seria o atendente? Gabriel?

 

Ok, chega de blasfêmias.

 

Procurando evitar o tédio que se cristalizava dentro de mim, foquei-me nas pessoas (denominação que mais se assemelhava a seus estados no momento) e a analisá-las. Várias conversavam, mas também várias mantinham o olhar fixo no chão, cabisbaixas. Uns procuravam fazer amizades, e, pasmem, havia uns (e umas) flertando com outras almas. A imagem me jogou uma careta no rosto, porque era realmente esquisito e nada convencional. Embora não houvesse quaisquer avisos sobre o que fazer ou não lá. Além do mais, nunca nos fora ensinado "como comportar-se no Céu", as religiões simplesmente dizem que você vai para lá e pá. Se vira, malandro.

 

Peguei-me imaginando se essa nossa passagem não seria igual a um sonho. Sabe, como quando sonhamos com encontros, com amizades, às vezes até pegamos o telefone do outro, mas daí acordamos. E não resta sequer o farelo de toda aquela vida que nossa mente fez questão de construir, tão bem feitinha! Somos tão Deus de vez em quando.

 

Falando n'Ele, uma grande leva de almas foi chamada - enfim! - para ultrapassarem o umbral que separava infinito de infinito. Eu fora uma das últimas, mas não me sentia empolgada ou amedrontada, pois nada me aparecia após aquelas pedras entalhadas (muito divinamente, por sinal). Qual não foi minha surpresa quando as deixei para trás, porque a saleta amorfa, que para mim parecia apenas uma massa de ar embolotada e desenhada, jogou um vento para cima de mim, obrigando-me a fechar os olhos. E quando os abri...

 

Não, nada de dourado, nada de grandioso. Havia apenas azul, muito azul, azul petróleo (era moda) numas paredes que não estavam nem próximas, nem distantes. Apenas estavam ali, inalcançáveis, tão ilusórias quanto o céu. Umas labaredas iluminavam bem a sala, fogo branco que se espalhava pelo teto todo, e fazia o lugar mais parecer um salão de festas muito bem decorado.

 

E uma mesa, uma longa mesa, tal e qual aquela d'A Última Ceia. E pessoas, ou pelo menos seres com formato humanoide. Talvez "pessoas" fosse um insulto ousado para eles. Desculpei-me mentalmente enquanto procurava por Ele, espichava o pescoço, curiosíssima. Havia apenas outros, ninguém tão majestoso, ninguém tão flamejante quanto Deus.

 

Mas... De fato, havia alguém que não emanava o calor de uma enorme fogueira, mas alguém com temperatura agradável, um sorriso angelical, e dois olhos muito, muito límpidos. Não brilhava, pelo contrário, parecia-me estranhamente adoentado. Cansado. Os cabelos eram mais curtos do que eu esperava, pois nesse momento já havia me dado conta de quem Ele era verdadeiramente. Só podia. Aqueles olhos, pulsantes em bondade, só poderiam ser divinos.

 

Deus sorria.

 

Essa foi a primeira grande observação que fiz, o primeiro contato real que tive com Ele. Deus sorria. Repeti a frase algumas vezes, até me tocar que eu também sorria. Eu e todos os outros, ou quase todos. Talvez aquele fosse o processo de seleção, quem não sorrisse, caía. No entanto, decepcionei-me profundamente ao ver o primeiro ser chamado, e daí a começar um processo tão burocratizado quanto aqueles aos quais estamos acostumados, quando vivos. Deus parecia cercado por um bando de idiotas. Não porque fossem burros, mas pela postura - empinados, emprumados, ensebados. Aquilo era muito esquisito.

 

E, quando Deus abria a boca para falar, todos imediatamente se calavam. Se pudessem, estou certa de que também se afastariam, por dois motivos: para deixar Sua voz ecoar melhor e para evitar que Suas palavras sagradas os atingissem. Não que fossem profanos... Tampouco tão puros.

 

Olhei ao redor. Os sorrisos murcharam ao clamar do primeiro da fila, os olhos estavam arregalados, todos mantinham suas bocas perfeitamente lacradas. O que será que achavam? Que Deus brigaria com elas? Que Deus levantaria Sua voz? Pelo amor de Deus! Olhem aquele ser, nem homem, nem mulher, tão original em suas formas, tão sem defeitos! A verdade é que não podíamos, era muito pouco tempo para deixar seus conceitos sem sentido voltarem à Terra. Ainda andavam agarrados a eles, porque talvez lhes fossem a última sobra.

 

E, a cada alma, via os olhos de Deus reduzirem-se, esmigalharem-se. E, a cada nova alma, via os olhos de Deus acenderem-se mais uma vez. Uma esperança renascia com o andar da fila, e a decepção novamente a apagava, e num ciclo permaneciam Seus poços cristalinos. O que será que Ele tanto procurava? Ah, era tão claro que eu sabia a verdade. O que mais Ele poderia querer?

 

Ser uma celebridade não era com ele, fala sério.

 

Logo que esse pensamento invadiu-me as ideias, uma estranha música, paradisíaca, dedilhada e assoprada ao mesmo tempo, também surrupiou-me a atenção. Não era estática, possuía uma harmonia empolgante e emocionante. Por um momento, comovi-me. Ela vinha de dentro. Ela era como o coração que deveria bater em meu peito. Viva.

 

Meus olhos estranhamente caminharam de encontro aos d'Ele. Talvez lá dentro eu quisesse Sua benção, porque esse meu último gesto fora totalmente inconsciente. E, a partir dele, todos foram impensados, com suas devidas consequências incalculadas.

 

Fi-Lo levantar-Se da sagrada cadeira, contornar a sagrada távola e postar-Se diante de mim, sem palavras. Estávamos ambos sem sorrisos, mas conectados por alguma outra expressão íntima. Estendemos nossas mãos, nossos pés, e começamos uma valsa calma e ritmada. Senti aquela música escorrer de dentro de mim, rasgando qualquer resto de barreira corporal que poderia me enclausurar. As notas vazavam pela minha boca e também pela dele. Virávamos melodia. Nem eu nem ele possuíamos olhares lúcidos.

 

Muito pelo contrário, eu virava tão humana como nunca o fora em vida. E ele também, via em seu recente sorriso a retomada de uma sinceridade que há muito ele não demonstrava. Que os outros faziam questão de esconder sob máscaras poderosas, porque não sabiam, não queriam ver a igualdade nos olhos de deus.

 

Igualdade? Só mais uma palavra construída há muito, muito tempo, talvez nem por mentes humanas. Quem realmente opta por ser igual? Não, igual nunca. Superior, na maior parte das vezes. Inferior, para ter a desculpa da incapacidade. Igual? Igual é humano demais...

 

Enquanto dançávamos, mantive meus olhos fechados. Recusava-me a olhar para o lado e ver todos dançando, ou ninguém. Aquela valsa já me satisfazia. Toda uma quantidade de medos acalentavam minhas pálpebras... Medo dos olhares desconfiados, dos castigos, do desprezo, do inferno.

 

Mas havia duas mãos que conduziam as minhas – mãos experientes, que já passaram por aquilo.

 

Respirei fundo. Pensei um pouquinho.

 

E então abri os olhos.

 

O céu azul fez minha cabeça rodar, a grama verde entrou no meu nariz quando virei pelo eixo de meu corpo. Uma montoeira de gente vivia ao meu redor. A tarde dourada esquentava meu corpo.

 

E uma vontade me gelava por dentro, esquisita. Era meu coração, que bombeava algumas gotas de um sentimento muito desconhecido para minhas células.

 

Peguei uma florzinha no caminho e coloquei-a nos cabelos, tão humana quanto eu.


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