Cripta - o Silêncio das Gárgulas escrita por Pedro_Almada


Capítulo 5
Capítulo 5




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Capítulo 5

 

3416 d.C.

 -um cripto em meio à milhões-

 

            Eles estavam atrás de mim. Agora eu sabia, tinha cometido o maior erro que um Cripto poderia ter cometido. Eu nem era tão importante nem nada para merecer toda aquela atenção. Mas, agora, tudo o que eles queriam era a minha cabeça em uma bandeja, exibida para toda a Comunidade do Oeste. Miseráveis, não faziam idéia do quanto precisei correr para escapar daquela coisa.

Ouvi, em histórias que nos contavam quando crianças, que, no passado, os homens sonhavam com um mundo futurista, com a tecnologia em seu ápice, onde tudo seria digital. As pessoas não teriam esforço algum, apenas a energia nuclear e elétrica em favor delas, realizando todas as suas vontades... Hah! Eu queria ver a cara deles se descobrissem que o futuro não era nada disso.

As casas eram tendas velhas, surradas, construídas sobre a densa camada de neve que nunca secava, em camadas que ultrapassavam qualquer expectativa do passado, cobrindo a terra até os olhos da Estátua da Liberdade, o monumento que os Criptos passaram a usar como referência. Grandes arranhas céus, monumentos de concreto e metal, restos de fiações elétricas e toda a sorte de invenções do passado, eram apenas monumentos, ruínas desse nosso mundo nada futurista.

Ouvi dizer que, no passado, costumavam andar sobre carros turbinados, apenas por prazer, para passeios, despreocupados com a escassez que sofreríamos no futuro. Como as coisas mudam! O combustível era escasso e ninguém, a não ser o governo, tinha permissão de usar veículos.

            Tanques de guerra adaptados para a neve e poucos jipes equipados com metralhadores serviam para reprimir os surtos que, vez ou outra, levava toda a população a saquear o pouco estoque de alimentos. Não havia muita terra cultivável num raio de dois mil quilômetros. A maior parte dos oceanos havia secado, a fauna estava aos tropeços. Não tínhamos muito o que fazer. A não ser orar. Pedir para que o ar continuasse quente e úmido o suficiente para correr em nossos pulmões.

            As drásticas mudanças no sistema planetário causaram mudanças também em nosso corpo. Com o tempo, o corpo humano passou a ser mais resistente ao frio, quedas, choques e impactos, dos mais variados tipos. Alguns tinham a pele tão rígida que nem mesmo a bala de um fuzil seria capaz de atravessá-los. Também haviam aquelas habilidades fora do comum, além da minha própria compreensão. E olha que eu tinha visto de tudo.

            Eu não tinha nada disso. No meu caso, tinha as pernas mais rápidas do oeste. Estranho, devo ter lido essa expressão em algum livro da velha biblioteca. Sim, eles nos permitiam ler. Diziam que era o nosso meio de sobrevivência, estimular cérebros. Eu lia muito e, através das informações que tive, descobri que o nosso fim estava próximo.

Mas elas... Elas continuariam lá, sobrevoando nossas cabeças, com aquele corpo cinza humanóide, cuspindo fogo como os dragões das fábulas. As gárgulas!

Tudo o que eu me lembro era de estar sendo perseguido. Avisei um grande arranha-céu, onde enormes tubulações de metal envolviam a construção, a fim de escoar o excesso de neve quando a tempestade aumentava. Naquele dia, no entanto, o céu estava lindo e cinza, promissor. Isso é, se não fosse o fato de estar sendo perseguido por uma daquelas coisas miseravelmente astutas.

            Corri como se minha vida dependesse disso. E dependia. Meus pés alcançaram o tapete branco que se estendia, em direção à tubulação. Senti os jorros ardentes em minha direção. Esquivei com facilidade, mas eu sabia que aquela coisa também não estava se esforçando. Senti as garras compridas alcançarem meu casaco, mas esquivei com a mesma maestria.

- Vai ter que fazer melhor do que isso, saco de ossos! – gritei, debochado.

Normalmente eu não faria esse tipo de coisa mas, naquele momento, a adrenalina era minha melhor amiga. O perigo estimulava meu corpo a correr cada vez mais rápido.

A gárgula guinchou loucamente, sentindo-se, provavelmente, humilhada por estar sendo passada para trás por um simples humano.

Saltei para dentro da tubulação. Meus pés deslizaram pelo gelo como um perito patinador. Ouvi o farfalhar de asas da gárgula passando por cima, sobrevoando o arranha-céu. Ela sabia que eu sairia na outra extremidade. Precisava pensar em algo. Inclinei meu corpo, colando minhas mãos na coxa, diminuindo o atrito com o ar que, por sorte, estava rarefeito naquele dia. Atingi uma velocidade surpreendente.

Meu corpo passou rasante. Lá estava a fera do outro lado, com a bocarra aberta. Encolhi meu corpo da melhor forma, enchi uma das mãos com neve e atirei, atingindo em cheio a garganta da criatura, que engasgou com a própria bola de fogo que estava prestes a cuspir.

Como uma bola de canhão, passei por cima da gárgula, preocupada em tirar a neve da boca. No ar, por um breve segundo, cheguei a admirar a figura do animal. Era cinza, como o corpo nu, sem diferenciação de sexo. Seu rosto era fino e imparcial, onde apenas sua boca e seus grunhidos expressavam fúria, alegria ou sarcasmo. Seus olhos minúsculos eram o que me dava mais pavor. As asas pareciam ser pesadas demais para voarem, mas todas as gárgulas eram um mistério para mim, e eu não estava a fim de ficar para descobrir.

Pousei na neve fofa, no próximo arranha-céu. Corri, novamente, em direção ao som do mar, um dos poucos que ainda não tinham sido congelados.

Antes que eu pudesse sequer sorrir pela vitória, ouvi outro chiado monstruoso. Outras gárgulas haviam acabado de surgir do nada, tomando o céu como uma peste de gafanhotos crescidos.

Eu sabia que estava para perder, mas não havia graça alguma em desistir. Se queriam minha cabeça, tudo por causa de um segredo valioso, diga-se de passagem, não teriam isso de graça. Precisariam suar um pouco mais.

Avistei a coroa da Estátua da Liberdade. Naquele momento, mesmo perseguido pelas dezenas de gárgulas, pude apreciar, com certo prazer, o pôr-do-sol, pintava o céu com um tímido alaranjado, perdendo covardemente para o cinza absoluto.

Senti o vento se tornar levemente quente, meus cabelos começaram a pingar, gotas começaram a se formar em minha testa. Era o calor. Não o do sol. Vislumbrei, por um breve segundo, o segundo sol que se formava atrás de mim.

Ah, como aquelas coisas com asas eram espertas! Tinham se reagrupado para formar uma bola de fogo, grande o suficiente, de forma que nem mesmo minha velocidade poderia me tirar daquele lugar.

Saltei alto o suficiente para cair sobre a estátua da liberdade. Não parei de correr em momento nenhum.

Então era isso. Morrer congelado num oceano frio e turvo, ou ser chamuscado até a morte por aquelas monstruosidades. Não era o tipo de opções que eu gostaria de ter, mas morrer dignamente era a menos ruim.

Meu corpo iria ruir no mar gelado, eu sentiria meus dedos se quebrarem, meus nervos ficariam estagnados, o ar iria faltar nos pulmões, até que eu fosse nada além de um cubo de gelo. Era melhor do que morrer ali, a mercê das gárgulas. Elas passariam os restos de suas vidas eternas frustradas, por não terem sido capazes de matar um simples humano.

Sorri, vitorioso. Ainda sobre a cabeça da Estátua, ouvi a esfera de fogo gigante rasgar o céu, em minha direção. Eu estava para morrer.

Então eu saltei.

Havia um problema. As chamas estavam perto demais. Antes que eu pudesse virar cubo de gelo, eu seria um espeto grelhado à La Gárgule... Meu corpo estava no ar, minhas costas já sentiam o calor. Foi quando aconteceu.

A chama simplesmente retrocedeu. Era como se uma barreira oval fosse projetava à minha volta, uma espécie de escudo translúcido, com linhas finas prateadas. Era quente ali dentro, mas quente de um jeito bom. De um jeito vivo.

Lancei um último olhar para a grande bola de fogo, contida por alguma coisa. Antes de cair no mar e perder a consciência, pude vislumbrar um sorriso feminino, belo, em perfeita sintonia com os últimos feixes do pôr-do-sol. Um mulher segurava firmemente as chamas com as próprias mãos, de onde emanava a cúpula de proteção. Era um anjo. E tinha me salvado. Ou melhor, tinha me deixado morrer à minha maneira.

Obrigado, anjo do belo sorriso.    


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