Dias sem Sol escrita por M4r1-ch4n


Capítulo 6
Capítulo 5




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          Orpherus havia aprendido a lição do dia anterior: sobre a sua cama arrumada, um bilhete na caligrafia elegante do herdeiro dos Görz explicitava a sua localização dentro da mansão, evitando uma nova longa caminhada angustiada por parte do seu anfitrião.
          Colocando o pedaço de papel dentro de um dos bolsos da sua calça, Ludwig foi ao encontro do outro jovem candidato ao Strahl; curiosamente, o loiro havia escolhido justamente o lugar favorito do futuro duque dentro da casa: a biblioteca.
          Abrindo a porta sem fazer barulho, o adolescente de cabelos longos gastou alguns momentos se acostumando à diferença de claridade no local. Ele próprio preferia ler quando o sol estava mais baixo ou então à sombra, de modo que a biblioteca sempre fora um local mais escuro para se ajustar de acordo com as suas preferências, principal freqüentador dali. No entanto, assim que ele entrou no recinto, Ludwig notou que as amplas janelas do cômodo haviam sido todas abertas, as cortinas de veludo verde amarradas nos cantos com puxadores dourados e inundando livros e estantes com a luz do sol.
          Debruçado sobre uma mesa de mogno estava Orpherus, aparentemente imerso na leitura de um grande volume que se encontrava aberto na sua frente. Em uma poltrona estofada e que era uma das favoritas do outro nobre, encontravam-se alguns volumes de coleções da biblioteca fechados, esperando para serem lidos ou então já utilizados pelo estudante.
          Ludwig avançou em silêncio na direção do outro candidato ao Strahl, os tapetes do lugar abafando o som de seus passos e permitindo que ele chegasse em silêncio ao outro homem. O objeto da atenção do loiro era um grande livro de arte, aberto em gravuras feitas por Paul Cézanne e cujas cores brilhantes adquiriam uma nova energia quando banhadas pela luz do sol.
          - Vejo que aprendeu com a lição de ontem, Orpherus. - o mais velho dos adolescentes comentou com o fantasma de um sorriso nos lábios ao ver o modo como o outro se assustou, dando a volta na mesa e ficando frente a frente com o loiro.
          - Madaleine recomendou que eu deixasse um aviso depois do que aconteceu. - o jovem de olhos azuis sorriu, deixando se apoiar na mesa para se espreguiçar lentamente; o gesto, aparentemente, não lhe causou nenhum desconforto físico - Ela disse que todos os criados sabiam que você havia ficado extremamente irritado.
          - Justificadamente. - o outro replicou com um tom mínimo de provocação, em seguida dando alguns passos para a esquerda e encontrando a seção de ciência política, deixando seus olhos escuros percorrerem as lombadas dos vários títulos disponíveis enquanto se decidia por algum volume - De qualquer forma, saber que você está ouvindo o que outras pessoas dizem ao invés de simplesmente fazer o que acha ser mais correto é um pequeno avanço.
          - Ludwig! - veio a resposta em um tom ligeiramente ofendido - Você, mais do que ninguém, sabe da importância de agir no momento certo, independentemente do que outras pessoas possam dizer...
          O futuro duque arregalou os olhos ligeiramente, mas estes já haviam retornado ao seu tamanho normal quando o jovem estudante retornou para perto da mesa ocupada pelo seu hóspede, seus dedos livres das luvas brancas de costume segurando "A Monarquia", de Dante Alighieri. O livro, porém, foi colocado de lado em um canto vago na mesa enquanto o herdeiro dos Liechtenstein observava seu colega.
          - Orpherus... Seu maior problema não é ouvir os outros, mas lembrar de ouvi-los. Suas emoções controlam-no tão facilmente que qualquer opinião exterior que possa ajudar a desanuviar seu julgamento obscurecido por tantos sentimentos acaba sendo ignorada. Agir no momento certo não adianta de muita coisa se não houver um planejamento anterior... Planejamento esse que raramente estará correto sem a colaboração de terceiros.
          Durante todo aquele pequeno discurso, os olhos dos dois adolescentes haviam permanecido grudados, presos um ao outro como numa espécie de transe. O primeiro a piscar e a recobrar os movimentos foi Orpherus, que sacudiu a cabeça lentamente enquanto procurava colocar os pensamentos em ordem. Ludwig, por outro lado, ocupou-se em arrastar uma outra poltrona para perto de uma das janelas a fim de ler com a paisagem das terras do ducado ao fundo, como era de sua preferência.
          - Quer dizer que você... Sabia que eu havia deixado a Academia naquele dia?
          - Certamente. Embora a identidade da pessoa com a qual você tivesse decidido se encontrar me fosse desconhecida até pouco tempo atrás.
          - Mas...
          A discussão sobre as circunstâncias que antecederam o atentado contra o loiro foi interrompida por uma série de batidas na porta. Colocando seu livro no amplo parapeito interno da janela, Ludwig permitiu a entrada de quem quer que estivesse do lado de fora, uma expressão peculiar de interesse surgindo no seu rosto conforme o mordomo dos Liechtenstein surgiu pelo vão aberto na pesada porta de madeira, sua mão enluvada segurando uma bandeja prateada sobre a qual um envelope se encontrava.
          - Mestre Ludwig, acaba de chegar para o senhor. O mensageiro está esperando pela resposta na entrada.
          - Entendo. - o moreno se levantou e apanhou o envelope, seu rosto imediatamente assumindo uma expressão de exasperação conforme ele quebrou o selo que mantinha a correspondência fechada e correu os olhos pelo conteúdo da carta. Sem se permitir qualquer gesto exterior que pudesse trair seus pensamentos, o futuro duque voltou até a mesa, abrindo uma das gavetas ali e retirando papel para responder a mensagem.
          Orpherus observou o modo eficiente e ágil do colega até mesmo em uma tarefa cotidiana; o jovem de cabelos longos não havia gastado mais do que cinco minutos entre as batidas na porta e a colocação do brasão dos Liechtenstein no envelope de resposta, sendo que a carta que ele havia escrito então pouco tempo compreendia uma quantidade de texto respeitável sem nenhum erro e na caligrafia impecável que ele possuía.
          Somente quando o mordomo havia se retirado é que o candidato ao Strahl mais velho suspirou, levando uma das mãos à têmpora e massageando rapidamente aquela região com seus dedos longos e elegantes. Erguendo o rosto para fitar o estudante loiro que ainda parecia impressionado e um pouco perdido com toda a situação que havia acabado de se desenrolar, Ludwig comentou:
          - Com companhia como Eduard, não estou surpreso que você tenha desenvolvido essa dificuldade em seguir conselhos.
          - Ed? A carta era de Ed? - olhos turquesa se animaram naquele momento, fazendo com que o mais novo dos dois adolescentes rodeasse a mesa e fosse terminar em pé, ao lado do seu colega - O que dizia na carta?
          - Sem dúvida você conhece as regras de etiqueta que dizem ser o conteúdo de uma carta privativo para o seu destinatário. - o futuro duque falou, sentindo um prazer velado em ver o modo como o rosto do loiro corou por rápidos momentos antes do embaraço ser substituído por irritação e impaciência. Sorrindo de forma quase imperceptível, Ludwig continuou - Era sobre você. Ou melhor, especulações sobre o seu paradeiro e estado de saúde.
          O olhar de Orpherus ficou imediatamente iluminado por um sentimento que o outro estudante não conseguiu nomear, mas que causou uma sensação desconfortável no seu peito, semelhante a um sufocamento, mas tal ocorrência foi rápida. O mais novo dos dois estudantes acirrou os olhos, encarando firmemente o seu anfitrião:
          - Ed é um grande amigo e está apenas preocupado por não saber o que está acontecendo.
          - Eduard é, antes de mais nada, um candidato ao Strahl e que precisa agir de acordo com as suas responsabilidades. - a réplica veio no tom normalmente pausado e racional de Ludwig, mas o loiro estava habituado ao seu colega para conseguir detectar uma certa irritação por detrás da calma aparente do moreno - Ele precisa entender que a vida de uma pessoa é menos importante do que a situação que estamos enfrentando no momento.
          Os olhos azuis de Orpherus se arregalaram imediatamente, sua postura corporal mudando por completo conforme ele se inclinou para frente, aproximando seu rosto da face do seu colega conforme sua voz se modificou, indignação transpirando em cada palavra que ele pronunciava:
          - A vida de uma pessoa sempre é importante, Ludwig. Estivesse você desaparecido como Ed pensa que eu estou, eu também me preocuparia o suficiente ao ponto de não pensar em outra coisa a não ser em encontrá-lo e...
          - Orpherus. - o anfitrião ergueu a voz, calando o loiro e fazendo com que ele desse alguns passos para trás conforme ele mesmo avançou, parando quando o estudante loiro estava impedido de escapar pela madeira da mesa atrás dele - Não cometa o erro de pensar que uma pessoa é mais importante do que todo um país. Vivemos em uma sociedade e sacrifícios individuais precisam ser feitos em nome do bem-estar da coletividade. Em três dias, Sua Majestade vai visitar a Academia e muito provavelmente será alvo de um atentado de quem tentou lhe matar também e eu lhe digo que impedir esse fato é a coisa mais importante nesse momento... Porque se Sua Majestade morrer, teremos nada a não ser caos dentro de Küchen e estaremos vulneráveis a ataques estrangeiros, colocando simplesmente todas as pessoas de nosso reino em perigo.
          O moreno fez uma pequena pausa, notando que o silêncio e a estupefação de Orpherus eram tão grandes que o outro garoto parecia ter esquecido de respirar.
          - Portanto, é vital que Eduard siga as instruções que escrevi para Naoji e desempenhe seu papel nessa situação ao invés de tentar sair da Academia para procurá-lo. Falhar não é uma opção, Orpherus. - Ludwig continuou em uma voz mais baixa, afastando-se do outro estudante de forma que seu longo cabelo não mais fazia leves carícias na pele do loiro.
          Uma sineta familiar encheu o ar de repente, anunciando que o almoço estava pronto e que todos deveriam se dirigir à sala de jantar. Jogando seu cabelo para o lado esquerdo do corpo e apanhando o livro que havia ficado sobre o parapeito da janela antes de caminhar em direção à saída da biblioteca, seu hóspede ainda parado contra a mesa e sem ação. Antes de sair, porém, o moreno se virou na direção do outro estudante.
          - Não cometa o erro de pensar que eu não valorizo a vida humana, Orpherus. Se eu pensasse dessa forma, você certamente não estaria aqui.
          Somente quando a porta se fechou, indicando a saída do futuro duque, é que Orpherus desabou no chão, os protestos do seu corpo contra a posição desconfortável em que ele se encontrava ignorados pelo seu cérebro enquanto ele repassava as palavras de Ludwig na sua mente sem cessar.

          Ludwig não comeu muito no jantar; apesar dos olhares preocupados de sua mãe, ele conseguiu assegurá-la de que estava bem e que os preparativos para o retorno à Academia é que estavam lhe fatigando um pouco. Orpherus, em um silêncio respeitoso a respeito das estratégias que o colega estava conduzindo com o resto dos candidatos ao Strahl, se absteve de fazer qualquer comentário.
          O seu estado de espírito, no entanto, era irrequieto. Nem mesmo o chá que havia pedido para lhe trazerem ou o livro que havia retirado mais cedo da biblioteca conseguiam prender sua atenção da forma que deveriam. Sua mente voltava sozinha para aquele momento durante a manhã onde havia confrontado seu hóspede e, sobretudo, quando havia tido uma sensação desagradável causada pela expressão terna do loiro diante da menção do nome de seu melhor amigo.
          Levantando-se da sua cama, o moreno apenas amarrou um roupão pesado de veludo violeta bem escuro sobre seu pijama de cetim preto, calçando seus chinelos e rumando para o seu lugar favorito da casa e também o cenário das cenas que estavam se repetindo na cabeça. A única coisa que Ludwig não esperava, porém, era que fosse encontrar Orpherus sentado exatamente na posição que ele ocupara mais cedo, quando havia tentado, em vão, recomeçar a leitura de "A Monarquia".
          Àquela hora da noite qualquer barulho na casa era amplificado, de forma que o ranger da porta foi captado pelo loiro que tinha agora suas bonitas feições iluminadas pela luz da lua. Se durante a manhã os olhos do outro candidato ao Strahl pareciam mais brilhantes que o próprio céu, durante a noite eles ficavam mais escuros, mantendo, porém, luminosidade suficiente para não absorver e sim refletir o brilho das estrelas.
          - Lui. - veio a voz do mais novo dos adolescentes, seu sussurro sendo suficiente para alcançar os ouvidos do seu anfitrião graças ao silêncio noturno - Também não consegue dormir?
          A pergunta de Orpherus acabou servindo de resposta para o que o moreno estava se indagando até então; satisfeito por já saber o que havia levado o outro garoto até ali, Ludwig se surpreendeu ao dar alguns passos para a frente e avançar na direção da janela, sentando-se no parapeito interno e compartilhando com o seu colega a visão das terras do ducado durante à noite.
          - ...Não. - o jovem de cabelos longos admitiu, por fim, virando-se na direção do outro aluno da Rosenstolz e se surpreendendo com o pequeno sorriso cúmplice que encontrou no rosto do seu hóspede - Mas você deveria descansar, Orphe. Seu corpo ainda não se recuperou plenamente.
          - Eu sei. - o outro murmurou, trazendo os joelhos para cima do assento e apertando-os contra o peito com os braços, apoiando a cabeça neles em seguida. Ludwig notou que o pijama que o herdeiro dos Görz usava era um dos seus, num tom de roxo bem escuro. Orpherus havia se enrolado no cobertor da sua cama antes de caminhar para a biblioteca, quase lembrando uma criança na forma que ele havia se acomodado na poltrona.
          - Vai ouvir meu conselho dessa vez? - o moreno indagou, desviando o olhar do outro adolescente por tempo suficiente para encarar a floresta que se iniciava a alguns metros da casa, notando o quão escura ela ficava durante a noite.
          - "Aceita o conselho dos outros, mas nunca desistas da tua própria opinião". - o loiro disse em uma voz calma e pausada, sorrindo ao final para o seu anfitrião - William Shakespeare foi um grande homem. Acho que posso confiar nessa sugestão.
          - Creio que sim.
          - Lui... - Orpherus pausou, respirando fundo e perdendo seu olhar no horizonte antes de focar suas íris azuis no outro adolescente - O que lhe tirou o sono hoje?
          O moreno fitou o outro candidato ao Strahl; internamente, Ludwig se perguntava se o loiro havia adivinhado que ele mesmo estava se indagando a respeito do que havia afastado seu sono ou se, na verdade, era o próprio garoto mais novo que tentava entender o que lhe mantinha acordado. Mordendo o lábio inferior, o herdeiro dos Liechtenstein acabou por responder:
          - O valor da vida humana e as suas conseqüências, Orphe.
          - Parece digno perder o sono para uma questão tão profunda. - o mais novo dos dois balançou a cabeça afirmativamente, não insistindo no assunto e deixando Ludwig profundamente grato com isso. Com movimentos preguiçosos, o estudante loiro se levantou da poltrona, apertando o cobertor ao redor do seu corpo e cumprimentando o seu anfitrião com um meneio feito com a cabeça, encaminhando-se na direção da porta.
          - Orpherus... O que tirou o seu sono?
          - No meu caso... - o herdeiro dos Görz se virou na direção do moreno que ainda estava sentado no parapeito, seu longo cabelo escuro brilhando como nunca à luz da lua e sua pele ficando ainda mais pálida do que de costume, quase etérea, também devido ao luar - Os sacrifícios pessoais... Que devemos fazer pelo bem da sociedade.
          O futuro duque não falou mais nada e Orpherus se retirou para o seu quarto, deixando-o sozinho. Ele esperava que o outro estudante tivesse melhor sorte, porque depois daquela resposta do loiro... Ele tinha certeza de que não dormiria mais naquela noite.



Continua...


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