Kumo no Ito escrita por M4r1-ch4n


Capítulo 7
Capítulo 6




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          O sol sumia no horizonte quando Yomi e Ni~ya finalmente chegaram na periferia de Edo, os dois viajantes parecendo cansados e exaustos. O cajado que o sacerdote shintoísta havia arrumado durante a jornada havia se perdido e suas roupas, anteriormente brancas, estavam completamente sujas de terra.
          O estado do bushi não era muito melhor: a katana que o moreno trazia embrulhada em diversas camadas de pano e presa às suas costas para evitar suspeitas e olhares estava caindo perigosamente pelo seu ombro, já que a fina corda que prendia as extremidades do pano estava prestes a ruir. A trouxa de Ni~ya estava furada em alguns pontos, assim como a de Yomi, mas a sua roupa escura dificultava a percepção das manchas de terra e água que ele havia ganhado pelas estradas.
          - Achei que não íamos chegar nunca. - o pequeno homem murmurou, não contendo um bocejo seguido de uma boa espreguiçada. Ni~ya podia jurar que ouvira o barulho da coluna vertebral do seu companheiro estalar - Precisamos arrumar um lugar para ficar.
          - E eu que pensava que você queria explorar cada centímetro de Edo... - o ex-samurai replicou com um meio-sorriso, seus olhos escuros correndo o cenário da grande cidade. Ele não visitava um grande centro há algum tempo e o ruído de pessoas, animais e objetos estava conseguindo lhe causar uma leve dor de cabeça.
          - Aa, é verdade. Mas teremos tempo, não? - o enérgico religioso sorriu abertamente e deu alguns passos para a frente, observando os pequenos comerciantes e artesãos que já retiravam suas mercadorias de exposição das ruas, preparando-se para retornar aos seus lares - E depois, as pessoas já estão indo para suas casas antes que escureça. Vamos, Ni~ya!
          Durante a viagem, o mais novo dos dois companheiros havia praticamente abolido o pronome de tratamento quando se referia ao amigo guerreiro; Ni~ya honestamente não se importava e sabia que um grande grau de familiaridade entre eles poderia ser útil para diminuir desconfianças, mas tinha medo que a tática causasse o efeito oposto: Yomi poderia acabar hostilizado sem motivo algum a não ser a própria presença do bushi e o moreno não desejava isso.
          - Estou indo, Yomi... Mesmo tendo andado tudo isso você ainda tem energia?
          - As minhas energias estão todas na esperança de comer algo quente em breve. - o diminuto homem explicou, ainda com um grande sorriso no rosto enquanto mudava a sua trouxa de lugar nas costas - Edo deve ser fantástica durante o dia...
          - E barulhenta. - emendou o ex-samurai.
          - E isso também. Mas aposto que não é difícil se acostumar, ne?
          Os dois amigos foram caminhando devagar pelas ruas de terra batida, notando que a presença de mercadores ambulantes se tornava cada vez mais rara conforme avançavam na direção do centro de Edo. Estabelecimentos de todo tipo começavam a cercá-los agora, alguns ganhando vida com o cair da noite como restaurantes e casas de chá. O barulho de adultos conversando, crianças correndo dentro de casas e o ocasional latido de um ou outro cachorro eram os sons que acompanhavam a dupla.
          O sol já havia efetivamente desaparecido quando os dois chegaram às portas de um simpático ryokan todo construído em madeira, perto da esquina que haviam dobrado há segundos. Uma moça jovem e de ar simples acabava de colocar duas lanternas na entrada do pequeno hotel quando notou a presença dos viajantes, imediatamente fazendo uma profunda reverência para ambos:
          - Konbanwa! Posso ajudá-los?
          - Estamos procurando um lugar para passar a noite, senhorita. - o sacerdote se adiantou depois que ele e Ni~ya também haviam saudado a moça adequadamente.
          O espadachim tinha um pequeno sorriso enquanto observava a interação entre Yomi e a moça. Parecia que ele nunca teria problemas para abordar ninguém se seu amigo continuasse com a mania de falar com tudo e todos antes que o moreno pudesse sequer emitir um cumprimento verbal.
          A garota juntou as duas mãos espalmadas, fazendo uma outra pequena reverência:
          - Então vieram ao lugar certo! Entrem, entrem!
          Lançando um sorriso confiante para o bushi, o sacerdote adentrou o pequeno pátio externo do ryokan, acompanhando a moça de aparência humilde que vestia um kimono verde-claro com um obi mais escuro. A construção do ryokan era bastante comum e simples, mas aconchegante de qualquer forma, como Ni~ya pôde perceber do lado de dentro.
          No aposento de entrada, os dois retiraram os sapatos de viagem e passaram ao piso de madeira vestindo somente as meias nos pés. Yomi olhava com uma culpa óbvia estampada no seu rosto ao verificar a sujeira que seus calçados haviam feito no chão que parecia ter sido limpo recentemente.
          - Não se preocupe, senhor. - a moça havia retornado de um outro cômodo logo à direita, trazendo alguns papéis nas mãos - Depois eu arrumo isso. São quantas pessoas, por favor?
          - Ah, duas. - o pequeno homem emendou, sorrindo e tirando a trouxa que carregava nas costas. Ni~ya também se aliviou do peso das suas cargas, mas não ousou deixar a sua katana disfarçada muito longe do alcance das suas mãos, segurando-a pela corda do embrulho da arma que resistia bravamente ao esforço feito de Ohira até Edo.
          - Certo. Aa, otou-san! Aqui. - um homem de meia-idade surgiu do mesmo cômodo de onde a jovem havia voltado pouco tempo atrás, sorrindo de forma amigável. Murmurando alguma coisa para a garota, ele mandou a mesma para outro lugar e assumiu as negociações com a dupla:
          - Muito bem. Duas pessoas, Harumi me disse que acabaram de chegar. Desejam a comida servida no quarto de vocês?
          - Por favor. - Yomi pediu, seus olhos quase brilhando de alegria e fazendo o ex-samurai rir baixinho ao presenciar a cena. Os olhos daquele que era provavelmente o proprietário do ryokan pousaram em Ni~ya, fazendo este perceber que era alvo de leves suspeitas mais uma vez e decidindo dizer alguma coisa.
          - Viajamos bastante para chegar a tempo para o casamento... Seria possível tomar um banho?
          A aposta do moreno surtiu efeito. A breve desconfiança que havia se manifestado nos olhos do dono do hotel se dissipou em segundos, dando lugar a um sorriso verdadeiramente sincero enquanto ele terminava as anotações iniciadas pela garota, deixando os papéis de lado depois.
          - Claro, senhor. O ofuro fica aqui no primeiro andar, passando por esse corredor e dobrando à esquerda no final. Logo do lado fica a escada para o piso superior, onde vocês ficarão instalados. Agora, se me acompanharem...
          O bondoso senhor levou a dupla de viajantes pelo caminho, mostrando o aposento deles e instruindo ambos a tocarem um pequeno sino que ficava próximo à porta de cada quarto para chamar ajuda, se precisassem. Apresentando-se como Watanabe Soujiro e avisando que o jantar dos dois amigos seria servido em aproximadamente vinte minutos, ele se retirou com passos pesados pelo corredor, deixando os recém-chegados hóspedes a sós.
          O sacerdote deixou suas coisas próximas de um dos dois futons que estavam sobre o tatami, tirando também uma das capas que havia utilizado durante a viagem para se proteger do vento. Enquanto isso, Ni~ya havia se ajoelhado do lado de uma pequena mesa que compunha a mobília do cômodo, verificando o conteúdo do aparelho de chá que se encontrava ali e fazendo um pequeno som de desaprovação quando notou que o mesmo estava vazio; provavelmente a bebida viria com a comida.
          O menor dos dois ocupantes do cômodo sentou no seu futon, tirando as meias e massageando os pés que estavam doloridos depois de tanto caminhar. Suspirando com alívio evidente, o pequeno religioso então ergueu o rosto, fitando a figura do ex-samurai do outro lado do quarto:
          - Ne, Ni~ya.
          - Hmm? - murmurou o outro em resposta, levantando a cabeça.
          - Aquilo que você disse sobre o casamento... Como você sabia?
          Um sorriso inegavelmente melancólico tomou as feições do moreno:
          - Como eu sabia que era um fato notório em Edo, você quer dizer?
          O rosto de Yomi esquentou, fazendo o sacerdote parar com a sua massagem e sinalizar uma rápida negação não-verbal com as mãos que acompanhou sua justificativa oral:
          - Iya! Ni~ya, você não precisa explicar. Eu suspeitava que era... Um assunto pessoal, mas agora eu tive certeza. Não precisa explicar, daijoubu da.
          O bushi finalmente relaxou, ainda com os lábios curvados para cima. Mudando de posição e sentando-se sobre suas pernas cruzadas no tatami, Ni~ya desfez os nós e laços que prendiam a parte de cima das suas roupas, afrouxando-as e preparando-se para o banho que pretendia tomar após o jantar. Cruzando as mãos sobre o colo, ele voltou a falar:
          - Eu acho que você merece saber por que viemos aqui, Yomi.
          A falta de pronome de tratamento fez o menor dos dois homens perceber a seriedade do assunto.
          - Ni~ya... Você sabe que não precisa falar sobre isso. Eu escolhi acompanhá-lo sem a intenção de exigir qualquer informação de você.
          Os olhos amendoados do bonito ronin acompanharam o sorriso que se abriu novamente no rosto do guerreiro, cheios de compreensão e afeto. Yomi era uma criatura íntegra, honesta e de coração bondoso ele merecia saber a verdade.
          - Eu confio em você, Yomi-san. Não vou contar isso porque me sinto obrigado, mas porque creio que você tem o direito de entender no quê exatamente você se meteu. - o ex-samurai continuou, arrumando uma mecha de cabelo negro que havia caído na frente dos seus olhos - Eu cresci em Miyagi, onde meu pai, um samurai bem-sucedido, conheceu minha mãe. Apesar de ter sido aconselhado a não se casar com ela por ser minha mãe uma mulher comum como tantas outras, ele acabou conseguindo permissão de samurais de posições superiores a dele no final. O dote de minha mãe, aliás, foi considerável para alguém da sua posição. Acredito que meu avô gostasse muito dela.
          Yomi concordou com a cabeça, prestando atenção avidamente. Ele compreendia com perfeição que Ni~ya era a prova viva de um caso muito raro na realidade: um casamento não arranjado por outro samurai e que conseguiu a aprovação da classe depois. Era uma linda história.
          - Dessa união entre meus pais, nasceram dois meninos: eu... E meu irmão mais velho.
          Os olhos do religioso se arregalaram:
          - Então o casamento...
          O moreno concordou silenciosamente com a cabeça, uma expressão levemente amarga tocando as feições do guerreiro de novo:
          - Exato. O casamento é do meu irmão mais velho, Kenji. Nós sempre fomos muito diferentes, na verdade. Enquanto eu sempre desejei seguir os passos de meu pai e admirava seu talento e a relação harmoniosa e cheia de afeto que ele mantinha com a minha mãe... Kenji se ressentia profundamente da vida que meu pai havia escolhido.
          Os lábios do sacerdote se contorceram em um muxoxo de desaprovação.
          - Seu irmão não gostava da idéia do casamento dos seus pais?
          - Meu irmão sempre foi ganancioso, Yomi-san. - Ni~ya suspirou pesadamente, sacudindo a cabeça - Kenji nunca entendeu o modo de pensar de meu pai; afinal, como o samurai que era, meu pai poderia ter casado com uma mulher de uma família de samurais e ter obtido muito mais dinheiro e, por conseqüência, uma vida menos modesta. Mas ele optou por outro caminho e, para a cabeça dura de Kenji, isso o havia prejudicado. Eu sabia que quando meu irmão se casasse... Ele iria escolher uma mulher riquíssima e daria uma festa memorável. - o moreno deu de ombros em seguida - Enfim, eu fiz uma aposta lá embaixo sobre o casamento, mas parece que eu realmente estava certo.
          A conversa foi interrompida por leves batidas na porta de correr, fazendo Yomi murmurar uma prece de agradecimento às entidades celestiais quando este sentiu o cheiro de comida. Ni~ya riu da sua posição, levantando-se para ajudar o sacerdote e Harumi, que havia subido com uma larga bandeja com pratos fumegantes. O estômago do ex-samurai também reclamou por atenção ao visualizar a refeição que, embora não fosse extravagante, parecia deliciosa.
          O resto da noite seguiu sem maiores conversas sérias, mas era inegável que os laços que uniam guerreiro e religioso haviam ficado ainda mais fortes.

          Sakito acordou com o canto de dois passarinhos do lado de fora do seu amplo quarto na mansão de Hitsugi, sorrindo antes mesmo de abrir seus olhos. Sem mover qualquer músculo do seu corpo, o jovem nobre aproveitou os primeiros momentos da manhã para realizar um exercício de concentração que o taikomochi havia lhe ensinado, procurando criar a imagem do cômodo em que ele estava dentro da sua mente, sem recorrer à visão.
          Aguçando os ouvidos, a própria respiração e a memória visual anterior que ele tinha do seu próprio aposento, o herdeiro dos Edokawa foi lentamente organizando os contornos de cada peça de mobília do seu quarto, da linda penteadeira que ficava do lado oposto ao confortável futon que ele ocupava, bem como cada pintura pendurada na parede e os ocasionais arranjos de flores espalhados pelo quarto que Etsuko trocava quinzenalmente. O canto dos pássaros vinha do lado de fora da casa e não do jardim interno, provavelmente de uma cerejeira que ficava próxima à janela de Sakito.
          A imagem do cômodo estava praticamente pronta quando o aprendiz de taikomochi ouviu batidas suaves na porta de correr do seu quarto, fazendo o jovem finalmente abrir os olhos. Mordendo o lábio inferior, Sakito se reprovou por ter esquecido de uma cadeira de espaldar alto que ficava ao lado do espelho que ele usava para se vestir, mas empurrou o detalhe para longe. Era hora de prestar atenção nas suas tarefas diárias.
          - Sakayume-san? Está acordado?
          Afinal, havia chegado o grande dia: o casamento da filha dos Kano.
          - Estou sim, Etsuko-san! Aguarde apenas um momento... - o jovem pediu de dentro do quarto, empurrando as cobertas para o lado e procurando um longo kimono prateado, feito com um tecido bastante leve e muito confortável. Havia sido um presente de Hitsugi para ser utilizado justamente após se levantar pelas manhãs - Pronto!
          Etsuko empurrou a porta e presenteou o aprendiz de taikomochi com um belo sorriso, equilibrando uma bandeja habilmente na sua mão esquerda. A porta ficou aberta enquanto a irmã do dono da casa colocava o café da manhã sobre uma mesa baixa, próxima ao leito de Sakito, sendo que este aproveitava para abrir as duas janelas do seu quarto e deixar a luz do sol entrar.
          - Está uma linda manhã hoje, Sakayume-san. Bastante adequado para a sua estréia, eu diria.
          - Concordo. - o herdeiro dos Edokawa se virou para a bondosa mulher com um sorriso - Parece um bom começo.
          - Não precisa se preocupar! Tenho certeza de que tudo vai correr exatamente como planejamos, graças a todo o seu empenho nos treinos.
          - Não sei se é realmente tudo graças ao meu desempenho nas aulas de Hitsugi-san. - o jovem replicou ao se sentar em uma das almofadas que lhe havia sido passada por Etsuko, ela mesma se ajoelhando sobre outra enquanto servia o café.
          - Sakayume-san, não diga bobagens. Eu bem sei que meu irmão não aprova essa modéstia exagerada. - a anfitriã sorriu, piscando um olho de forma cúmplice - Mas não se preocupe, não vou denunciá-lo se isso não acontecer de novo. Agora, passando ao dia de hoje... Hitsu-chan já falou com você?
          - Hai, ele falou. - o outro ocupante do quarto aquiesceu com a cabeça - Vou tomar o café... A propósito, está uma delícia, Etsuko-san. - o lindo nobre agradeceu com um sorriso, ganhando outro da irmã de seu mestre - Depois repassar uma última vez a coreografia com Hitsugi-san, descansar e finalmente acompanhá-lo até à Masayume.
          - Perfeito. Lembre-se de que você será vestido lá, em caráter excepcional. Não queremos estragar a surpresa que Hitsugi criou para você, então vamos colocá-lo para dentro da casa como um criado. - a mulher sorriu com prazer, divertindo-se com a idéia - Aposto que vamos surpreender cada um dos convidados.
          - Assim espero, Etsuko-san.
          - Não duvide de si mesmo, Sakayume-san. Bom, vou deixá-lo a sós por enquanto... Preciso conversar com Yamaguchi sobre hoje à noite. Qualquer coisa, não hesite em me chamar, está bem? - ela perguntou enquanto se levantava da sua posição junto a mesa, desfazendo as pequenas rugas que haviam se formado na sua roupa.
          - Hai! Vou aproveitar para praticar um pouco mais aqueles exercícios de concentração que Hitsugi-san me ensinou.
          - Aqueles exercícios são absurdamente entediantes! Não entendo como vocês dois são capazes dessas coisas, Sakayume-san... - ela confidenciou com um último sorriso, saindo do aposento - Bom apetite!
          - Arigatou!
          Assim que o agradecimento do jovem nobre chegou aos ouvidos da dona da casa, Etsuko sorriu e fechou a porta suavemente, dando toda a privacidade a Sakito. Apesar de todo o seu otimismo e da confiança de todos que o cercavam, o herdeiro dos Edokawa não conseguia ignorar a ansiedade crescente dentro de si, sentindo como se seu estômago fosse capaz de realizar acrobacias.
          Respirando fundo e procurando se concentrar para a sua estréia daquela noite, o aprendiz de taikomochi obedientemente passou ao próximo prato.

          A noite acabava de começar e os viajantes recém-chegados a Edo caminhavam na direção do local onde seria a recepção dos noivos, mantendo uma distância cuidadosa dos convidados que, como eles, também haviam decidido andar até a casa de chá escolhida pelo casal. A maioria dos convidados de maior poder aquisitivo havia alugado liteiras, provavelmente já tendo chegado ao local.
          A conversa predominante entre as pessoas era a respeito da opulência da cerimônia. O templo Sensoji havia sido tomado por todo o tipo de gente, desde aqueles próximos à família Kano, tradicional da cidade, até aqueles que eram parceiros de Kenji nos negócios. Ni~ya havia se confessado surpreso a Yomi: seu irmão era bastante ambicioso, mas nem mesmo ele poderia ter imaginado que o outro filho dos Baba teria ido tão longe em tão pouco tempo.
          - Você pretende falar com seu irmão?
          - Ainda não sei. - respondeu o moreno incerto, mordendo o lábio inferior. Agora que ele estava em Edo e havia assistido à cerimônia, ele estava em dúvidas a respeito do caminho que deveria tomar - Não faço idéia ainda, Yomi-san. Eu queria saber... Por que meus pais não estão aqui.
          - Não estão? - o pequeno sacerdote voltou a cabeça rapidamente na direção do amigo, franzindo o cenho - Mas que coisa estranha. Será que não houve tempo para avisá-los?
          - Eu acho... - o bushi suspirou, sacudindo a cabeça - Yomi-san, eu espero sinceramente que esse sucesso todo de meu irmão... Seja devido ao talento dele. E apenas ao talento dele.
          Quando o pequeno religioso entendeu o quê Ni~ya havia tentado dizer por meio de palavras enigmáticas, ele parou de andar.
          - Ni~ya! Você não quer dizer que...
          - Faz sete anos desde a última visita que eu fiz a Miyagi, Yomi-san. Eu não tenho... Idéia do que pode ter acontecido com a minha família e... Dadas as minhas atuais circunstâncias, eu não sei se será benéfico para meu pai me receber. Não quero desapontá-lo com a certeza de uma falha.
          - Ni~ya... - o menor dos dois homens parecia chocado com a realidade crua que coloria as palavras do moreno. Ele às vezes se esquecia de toda a angústia interna que Ni~ya provavelmente sentia por ter se tornado um ronin involuntariamente - Ni~ya, não pense assim. Lembre-se que você é mil vezes mais decente que vários membros da sua antiga classe e que você com certeza já se demonstrou mais valoroso do que qualquer outro guerreiro para dezenas de pessoas nesta viagem. Não se menospreze por causa de um preconceito que você já demonstrou ser possível ser quebrado tantas vezes.
          Foi a vez do ronin parar de andar.
          - Yomi... - o moreno murmurou, surpreso com o sorriso brilhante que havia tomado as feições do seu amigo - Arigatou, ne.
          - Não há de quê. - o outro agradeceu, retomando o passo e apontando para os convidados, que viravam à direita e entravam em uma grande construção iluminada, cheia de barulho de pessoas e música do lado de dentro - Vamos, vamos! Chegamos à recepção!
          Yomi entrou rapidamente na casa de chá, tirando os sapatos e praticamente correndo na direção em que todos haviam tomado. O ex-samurai, porém, levou mais tempo para retirar as sandálias que usava naquela noite, colocando-as com calma no espaço reservado para os calçados antes de seguir pelo corredor que levava ao andar de cima.
          Distraído em seus pensamentos a respeito da própria família, Ni~ya não percebeu que uma segunda pessoa se aproximava por uma porta lateral para também subir a escada, colidindo sem querer com a outra figura. Assustado, o moreno agiu por puro instinto ao estender os braços para a frente e segurar quem quer que ele tivesse desequilibrado por acidente.
          - Gomen nasai, eu não vi que...
          As palavras do bushi morreram na sua garganta quando ele notou que, apesar de fazer relativamente pouca força para segurar a pessoa que ele quase havia derrubado, não se tratava de uma mulher que ele havia salvado da queda iminente, mas sim um rapaz. Os olhos castanhos do jovem que ele segurava nos braços piscavam com gratidão e um resquício do susto causado pelo encontro repentino no corredor.
          - Não foi nada... Arigatou. - o outro murmurou suavemente, ruborizando com a situação protagonizada por ele. As roupas simples que ele trajava davam a impressão de que ele trabalhava ali, de forma que um pequeno acidente como aquele não deveria ser encarado com bons olhos pelo seu patrão.
          - Eu que peço desculpas. Estava pensando... Em outras coisas.
          Ni~ya percebeu que havia levado mais tempo do que o necessário para ajudar o jovem a ficar novamente de pé. Por algum motivo, ele tinha a sensação de quê aquele frágil rapaz poderia quebrar se colocado de qualquer maneira novamente no solo, tamanha a beleza etérea e quase surreal que ele tinha aos seus olhos.
          - Sakayume-san? Vamos subir logo, os convidados já... Oh, está tudo bem?
          Os dois se viraram na direção de uma mulher pouco mais velha que ambos, vestida em um kimono muito elegante e elaborado, todo em tons de laranja e amarelo. O jovem sorriu para ela e o moreno percebeu que eles eram conhecidos.
          - Hai, Etsuko-sama. Eu quase caí na escada e este cavalheiro me ajudou.
          Etsuko se virou para agradecer Ni~ya, mas o guerreiro sacudiu a cabeça:
          - Por favor, eu que peço desculpas. Esbarrei por acidente em... - o ex-samurai parou de falar, voltando seus olhos temporariamente para a figura do jovem que havia acabado de salvar.
          - Sakayume. - o outro sorriu elegantemente.
          - Sakayume-san. - Ni~ya repetiu, testando o som exótico do nome. Seria algo inventado como seu próprio nome após o final da sua carreira como samurai? - Gomen nasai, eu já vou subir. Devo ter atrasado vocês...
          - Não há problema nenhum, senhor. Vamos subir também. - Etsuko emendou, esperando educadamente que o bushi passasse na frente para ser seguido por Sakito e, finalmente, ela própria. Ao chegarem no andar de cima, os dois agradeceram mais uma vez os esforços de Ni~ya e andaram rapidamente pelo longo corredor, entrando em uma sala ao final dele.
          O ronin só percebeu que havia ficado parado no final da escada, encarando a porta por onde o jovem que ele conhecia como Sakayume havia desaparecido com Etsuko quando o sacerdote tocou seu ombro.
          - Yomi-san? - o guerreiro inquiriu, piscando como se recobrasse a consciência - Está tudo bem?
          - Eu que pergunto, Ni~ya-san. Você demorou para subir e quando decidi procurá-lo, encontrei-o parado no corredor. Aconteceu alguma coisa?
          - Iie, Yomi-san... Está tudo bem. - o moreno replicou e emendou com um sorriso, seguindo um animado Yomi para dentro do grande salão onde os convidados estavam reunidos, lançando um último olhar para a porta que havia engolido o jovem que salvara momentos antes.
          Em meio a tanta gente e conversa, foi relativamente fácil para ambos fugirem da atenção principal. Homens e mulheres de vários sotaques, aparências e interesses estavam sentados sobre o tatami que cobria todo o cômodo, ocasionalmente comendo ou bebendo das iguarias finas que estavam dispostas sobre as mesas baixas que formavam um longo retângulo pelo cômodo. A forma geométrica perfeita da disposição das mesas era quebrada por uma única passagem, que permitia aos convidados sentarem de ambos os lados da mesa e aos criados circularem por entre os presentes.
          Atrás das mesas e de frente para o local ocupado pelos noivos, havia um pequeno palco montado. O tablado havia sido erguido a poucos centímetros do piso, mas era suficiente para atrair a atenção de todos do cômodo. Da posição em que Ni~ya se encontrava, ele conseguia divisar um shamisen e um shime-daiko esperando para serem tocados, além de uma caixa de madeira sobre uma pequena mesa que, devido à sua forma, o ex-samurai supunha ser de uma komabue.
          Yomi já havia se engajado em uma conversa divertida com alguns convidados, contando histórias e participando ativamente com opiniões sobre questões religiosas e morais. O bushi foi chamado a contribuir para o debate em alguns momentos, mas o moreno mais sorriu do que falou, observando o cômodo calmamente.
          Em determinado momento, um homem que havia circulado por quase todo o salão se levantou, dirigindo-se ao palco e atraindo vários olhares dos convidados. Ele trajava um belíssimo kimono cor de lavanda com a barra cheia de desenhos florais feitos em um vermelho mais forte que combinava perfeitamente com seu obi, enfeitado por motivos prateados. Juntando as mãos espalmadas e fazendo uma pequena reverência a seguir, Ni~ya não pôde deixar de notar a aura de respeito e admiração que ele carregava. Tratava-se, sem dúvida, de alguém famoso; os murmúrios de excitação que corriam ao redor do ronin só reforçavam sua teoria.
          - Konbanwa. Antes de mais nada, gostaria de desejar toda a felicidade do mundo para os noivos. - ele fez uma pausa, indicando o casal com as mãos e sorrindo para ambos - E agradecer a todos pela presença. Decidi preparar uma pequena surpresa para o dia de hoje e em homenagem ao casal... Portanto, antes de começar a cantar, vou apresentá-los ao meu aprendiz, que faz sua estréia hoje com um belo número de dança. Espero que gostem e admirem o talento de Sakayume-san.
          A expectativa no cômodo era crescente e palpável. Hitsugi se retirou para o canto, sentando-se elegantemente e tomando o shamisen nos braços, pronto para começar a tocar. Segundos depois, duas jovens haviam aparecido para ajudá-lo com os outros instrumentos sob os olhares atentos do público, que esperava com ansiedade pela realização do boato que já corria as ruas: a grande estréia do novo aprendiz de Hitsugi, o maior taikomochi de Edo.
          De repente, uma pessoa saiu detrás dos biombos de papel que haviam sido colocados em uma das extremidades do palco. O jovem trajava vermelho da cabeça aos pés em um kimono mais luxuoso do que qualquer outro ali dentro, cheio de bordados de folhas no mais puro ouro próximo à barra do traje e nas mangas. Seu obi era dourado e cortado no meio por uma única fita cor de rubi, presos em um laço rebuscado às suas costas.
          O tom forte do vermelho da roupa contrastava vivamente com a palidez da pele do aprendiz, visível somente na altura do pescoço e do rosto, as únicas partes expostas do seu corpo. Seu cabelo escuro também ajudava a intensificar a beleza extraordinária e encantadora do jovem, seus olhos castanhos fechados enquanto ele se preparava para iniciar sua coreografia. Os lábios delicados do jovem estavam descontraídos e no seu formato natural, formando uma linha perfeita e elegante na sua face, sua cor natural levemente ressaltada por maquiagem.
          Segundos antes da música começar, Sakito abriu os olhos e surpreendeu-se ao notar que havia pousado suas íris justamente sobre a figura daquele que o havia salvado de uma queda na escada naquela mesma noite. Ni~ya, por sua vez, sentia que não era possível desviar seu foco da bela criatura sobre o palco, notando também que se tratava do jovem que havia encontrado mais cedo.
           Nenhum dos dois percebeu que, dentre os convidados que fitavam Sakito com o mais puro espanto e encantamento, havia uma terceira pessoa que também havia fincado sua atenção no aprendiz de taikomochi, sem qualquer intenção de deixar que aquela fosse a primeira e última vez que seus olhos tivessem o prazer celestial de observar a figura quase angelical de Sakayume.



Continua...


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Notas finais do capítulo

Mais algumas notas culturais:

1) Ryokan (旅館) é uma espécie de hotel tradicional japonês. Na verdade, a história é mais detalhada e o negócio de hospedagem passou por diversas fases, mas eu optei por utilizar os ryokans simplesmente por existirem ainda hoje (apesar de resistirem como marcos históricos tendo em vista a ocidentalização japonesa ou então como atração para turistas no caso de Kyoto) e também por serem mais fáceis de trabalhar na história, além de já existirem no período Edo (que é o da história).
2) O-kay, casamento de samurais. Como podem ver aqui, casamento entre samurais era algo muito bem regrado e cheio de formalidades. Possuindo uma hierarquia rígida e gozando de grande respeito, os samurais normalmente se casavam com mulheres de famílias samurais, especialmente os samurais de classes mais altas; esses casamentos costumavam ser arranjados por outros samurais também. No entanto, era possível que samurais de classes inferiores casassem com mulheres comuns, embora nessas ocasiões existisse necessidade de um dote para o início das suas novas vidas. Filhos homens de mulheres casadas com samurais poderiam virar samurais se quisessem - o caso de Ni~ya.
3) Instrumentos musicais novamente. Já apresentei o shamisen antes para vocês, mas dessa vez eu dei uma pesquisada em instrumentos que costumam acompanhar o shamisen para formar um pano de fundo legal para a apresentação do Sakito. Infelizmente, não encontrei muitas informações concretas sobre que instrumentos eram utilizados com quem/em quais estilos de música, então tomei liberdades poéticas gigantes ao juntar o shime-daiko, uma espécie de tambor, com a komabue, um tipo de flauta japonesa. Espero que seja possível tocá-los juntos.
4) Em relação às cores dos kimonos vestidos por Hitsugi e Sakito, eu escolhi as cores com alguns motivos determinantes dessa vez. Hitsugi está vestindo as cores habituais do mês de setembro, já que o casamento se realiza nessa época; Sakito, por outro lado, está com as cores clássicas de uma celebração, como vermelho e dourado. Não me lembro onde li sobre o dourado, mas senão me engano é realmente uma cor associada às festividades, assim como vermelho e branco. Essas informações foram retiradas daqui.
5) Me dei conta de um erro absurdo na história! Ocorre que, até a Restauração Meiji, as pessoas no Japão simplesmente não tinham sobrenome se não fossem nobres. Eu esqueci desse detalhe e reparei que vários personagens já têm sobrenomes... Como simplesmente não dá para remover tudo, então vamos fingir que sobrenomes são coisas normais, ok? *se esconde*



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