Ingratidão escrita por keeh


Capítulo 1
Capítulo 1




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Ingratidão

 

“Você é louca!” - Era a única frase que meu inconsciente conseguia mandar-me como resposta para as incontáveis perguntas que eu o fazia. 

Não sei por que agi daquela maneira, não sei como tive coragem. Infelizmente só consigo sentir esta amarga lembrança corroendo-me por dentro. Por que passado não pode ser esquecido? Por que não podemos apenas ignorá-lo e seguir em frente? É triste olhar o próprio eu e não reconhecê-lo.

 

~*~


Pela janela do meu quarto eu observava aquele belo fim de tarde. O céu estava com poucas nuvens e com uma coloração meio alaranjada. O Sol, mais uma vez, demonstrava sua soberania. As folhas dançavam seguindo o ritmo do vento. Aquela paisagem transmitia uma irritante paz, porém quando se tem um interior em meio às trevas, nenhum exterior consegue convertê-lo.

O Sol se punha e a única coisa que pairava meus pensamentos era a morte. Meu maior desejo era matá-lo. Eu já tinha todo o plano em mente. Tudo aconteceria rápido e não haveria como suspeitarem de mim. Ele era meu pai.

 

Seria uma morte dolorosa e agonizante. Ele teria o que sempre mereceu. Minha mãe também morreria, seria seu castigo por dez anos de omissão. Dez anos em que eu fui a vítima. Dez anos em que tudo fora ignorado.

O dia seguinte seria minha formatura. Eu já tinha meu álibi. Iria dormir na casa de uma amiga. E quando a madrugada caísse, eu sairia e tacaria fogo naquele recinto que emanava pecado. Recinto o qual durante dezessete anos chamei de lar. Os dois estariam dormindo, porém as chamas do fogo e do meu ódio os acordariam.

 

~*~

 

Enfim o relógio apontou o momento exato e tão almejado. Eram três horas da madrugada. Foi um longo e estressante começo de noite. Os pais da Mary falavam e gesticulavam de uma forma que me dava náuseas. Levantei-me e fui à janela do quarto onde Mary e eu nos encontrávamos. Minha amiga dormia relaxadamente, mal sabia ela que, no dia seguinte, encobriria tão grandioso crime ao dizer que eu dormi a noite toda em seu quarto.

Eu ria por dentro ao imaginar aquele desgraçado contorcendo-se e gemendo de dor. Ele não teria escapatória. Aquela covarde, que eu chamava de mãe, não iria poder fazer nada, também queimaria até morte. 

 

~*~


Pulei o muro e atravessei o jardim. Meu grande desejo estava prestes a ser realizado. Entrei pela porta dos fundos, eu sabia que eles nunca a trancavam. Comecei a jogar o álcool por toda a parte, lágrimas de felicidade rolavam pelo meu rosto. Todos os anos que fui violentada; que fui humilhada; anos nos quais tive minha inocência tirada; onde fui obrigada a vender meu corpo para dar prazer àquele monstro; Todos... Todos seriam vingados naquela noite. 

 

Já tinha jogado o álcool nos dois pavimentos da casa. Parei um pouco em frente a porta do quarto do ordinário. Lembrei-me o quanto sofri, o quanto chorei, o quanto necessitei que alguém olhasse por mim. Contudo agora eu poderia tomar minhas próprias dores. Já tinha forças suficientes para vencer aquele trauma. Por isso fui até o espelho do banheiro social e fitei bem meu rosto, olhei cada detalhe físico e emocional que aquela imagem transmitia, detalhes de angústia e terror, os quais seriam levados com aquela velha vida que eu levava. Abaixei minhas pálpebras e então pensei em voz alta: 

_ Eu vejo você...

_ Eu também te vejo! – Era uma voz roca e bem conhecida que me interrompia. Era ele.

 

Incrédula com a situação, eu comecei a gritar descontroladamente.

_ Sandra, acalme-se! – Grunhiu e inclinou-se em minha direção. 

_ Porque você está chorando? Seu cretino! Como pode ser tão falso!? Eu te odeio! Saia de perto de mim, monstro. – Falando isto, comecei a esquivar-me em direção a porta.

_ Por que você deixou-se levar.. – ele não conseguiu terminar. Levou a mão ao peito e começou a contorcer-se freneticamente. Ele estava velho e cansado.

_ Não me dirija a palavra, seu louco! – Aproveitei a pequena distração e o empurrei com todas as minhas forças. Sai correndo em direção às escadas. Ele tentou me alcançar, porém em vão. Acabou por tropeçar em seus próprios passos. A força da minha ira me dominava. Cheguei à porta dos fundos e acendi o fósforo, pulei para fora e joguei o palito casa adentro. Só o ouvi gritar algo que não consegui compreender e logo veio um grande clarão quente.

 

~*~

 

Despertei quando ouvi ao longe uma fina voz. Não conseguia distinguir o que me parecia ser uma mulher falando. Sentia coisas me prendendo. Algo que ardia muito estava entrando em mim. Minha cabeça doía muito. Tinhas coisas enroladas por todo meu corpo. Inalei um cheiro insuportável. Pensei em abrir os olhos, abri.

Meus olhos demoraram a acostumarem-se com a luz, e quando o fizeram, percebi que estava em um lugar estranho, pequeno, com paredes brancas. Havia uma mulher e um homem que eu não conhecia ao meu lado, ambos com roupas brancas. Conclui que eu estava em um hospital.

_ Ela acordou, doutor. – Friamente disse a estranha mulher loira.

Incomodada, tentei levantar-me. 

 

_ Não se mecha muito, senhorita, ainda não está completamente recuperada. – Alertou-me o senhor de cabelos grisalhos e voz mansa.

_ Como eu cheguei aqui? – Até o momento eu não me recordava de nada.

_ A senhorita sofreu algumas queimaduras de terceiro grau. Não se preocupe, elas já estão quase cicatrizadas. – Cerrou o maxilar e olhou-me firmemente, parecia que esperava alguma reação da minha parte.

Ao analisar a fisionomia daquele homem já de idade, lembrei-me de tudo. Uma gargalhada quis sair de meus lábios, todavia eu não tinha forças para libertá-la. Então movi os lábios e consegui proporcionar um pálido sorriso. As duas pessoas olharam-me com uma fisionomia estranha, pareciam assustados.

_ Helena, chame o senhor que a aguardava a paciente. – Disse o médico ao sentar-se em um sofá próximo da minha cama, reparei então que ele segurava alguns envelopes.

Senti um aperto na boca do estomago. Pensei: "Chamar o senhor?" Não é possível que seja aquele monstro! Será que ele não morreu?

Fiquei apreensiva aguardando a entrada da enfermeira. Logo veio o alívio ao avistá-la adentrando a sala com um homem estranho, mas definitivamente não era meu pai.

_ Boa noite, senhorita. Como se sente? – Perguntou-me cuidadosamente o alto e bem vestido homem.

Analisei a expressão daquele senhor, porém não conseguir decifrá-la. Após uma longa pausa, decidi respondê-lo.

 

_ Sinto-me um pouco fraca, porém estou bem. Desculpe-me, mas quem é o senhor? Por que quer saber sobre minha saúde? – Perguntei-o vagarosamente. 

_Sou o detetive Nery White. Perguntei como se sente, pois tenho que lhe fazer algumas perguntas. A senhorita não se importar em respondê-las, certo?

Comecei a entender melhor tudo aquilo. Eu tinha ficado muito tempo dentro da casa. De certo que eu fui atingida pela explosão e pega na cena do crime. Entretanto, tudo foi queimado. Não havia provas de que eu era culpada. Tentei relaxar um pouco, mas tenho certeza que eu estava transparecendo tensão, o detetive estava muito sério.

_ Claro que não me importo, senhor White. Só não sei se poderei lhe ajudar muito, não sei como vim parar aqui. Não estou me lembrando de nada. – Mostrei-lhe um sorriso amarelo.

_ Quem sabe se com as perguntas a senhorita não se lembra. – Sem mudar a fisionomia, sugeriu-me.

_ É, quem sabe. – Falei cuidadosamente. Se eu recusasse ficaria muito na cara. “Vou negar tudo”, foi o que pensei.

_ Qual é última coisa que se lembra? – Perguntou-me seriamente.

_ Bem, eu estava planejando ir dormir na casa de uma amiga, a Mary, para arrumamos umas coisas, acredito que minha formatura é hoje. – Respondi, tentando parecer confusa.

_Certo. E a senhorita chegou a ir à casa de sua amiga? – Continuou o detetive.

_ Não me lembro. – Respondi tentando parecer calma, porém ele ainda não tinha me mostrado o que sabia.

_Então vou ajudá-la a lembrar-se. A senhorita foi sim à casa dos Cantanhedos. Jantou lá. Conversou com todos, e, aparentemente, foi dormir aproximadamente às vinte e duas horas com a desculpa de estar muito cansada e ansiosa para a formatura. Sua amiga chegou ao quarto meia hora depois e a encontrou ‘adormecida’. No entanto, Sandra, você não foi encontrada no dia seguinte na cama em que foi dormir. Acharam-na às cinco da madrugada, desacordada, com queimaduras e em frente a uma casa em chamas. – Inclinando-se para frente, enfatizou: Infelizmente, sua residência. 

Meu coração pareceu tomar vida própria. Com plena certeza que meu rosto ficará pálido, mas tinha que manter a pose de inocente.

_ Não sei aonde o senhor quer chegar. – Tentei parecer indiferente.

_ Ainda não acabei, garotinha. O que você fazia neste lugar, ao invés de estar dormindo calmamente na casa de sua amiga? – Ironicamente indagou-me com aquela expressão gélida.

_ Não me lembrou, senhor. Por acaso está insinuando que fui eu quem causou esse acidente? Acredito que não tem provas para tal acusação.

_Sério? E o que me diz desta tampa de galão que foi encontrada no bolso da sua roupa? E desta caixa de fósforos cheia? Parece que precisou de um palitinho apenas, hein? – Ele perguntava, porém seu tom era de afirmação.

Já sabiam de tudo. Tinham provas. O charlatão me mostrara todas em um saquinho. Eu fiquei sem saber o que falar, não conseguir raciocinar. Decidir contar-lhe a verdade. Eu era vitima daquilo tudo. De fato, eu não seria acusada por algo que fiz em defesa própria.

_ E seus pais? Nem quis saber sobre eles, não é, senhorita? Ao invés de encontrar uma menina atormentada... assustada, encontro uma mulher fria e bem calculista.

 

_ Eu tinha que fazer isso! – Berrei sonoramente – Ele abusava de mim desde meus sete anos. Eu nunca soube o que era pertencer à uma família. Sempre fui maltratada, nunca tive ninguém ao meu lado para pedir ajuda. Nem mesmo minha mãe tomou minhas dores. Ninguém se preocupava com a vida da menina tímida da escola. Nem mesmo a Mary, que se dizia minha amiga, reparava o quanto eu era vazia por dentro. Sofri calada durante dez anos. Tudo o que fiz foi para me defender. O senhor não consegue entender isso? – Lágrimas começaram a rolar em minha face.

_ Desculpe-me, criança, mas infelizmente tenho que abrir seus olhos. – A voz serena do velho médico ecoou sobre o quarto abafado. – A senhorita nunca foi violentada. Ontem quando o senhor White chegou aqui com a suspeita de que você havia cometido o crime, nós fizemos uma série de exames em você. E te digo que um desses exames apontou que você jamais fora tocada de forma inadequada.

_ Como?! Não é possível! Eu me recordo muito bem de todas as noites que passei em claro. Lembro-me dos velhos que ele levava para me atormentar. Isso tudo é bem claro em minha mente!

_ E melhor a senhorita acalmar-se...

_Acalmar-me?! Você nem imagina como estou me sentindo. Como posso ficar calma quando alguém diz que todas as minhas lembranças não existem? Quero sair daqui! – Comecei a chorar e a gritar descontroladamente.

Com o pouco de forças que tinha tentei levantar, entretanto o detetive segurou-me firmemente na maca. O médico aplicou-me algo, depois só havia o escuro.

 

~*~

 

“Você é louca!” - Era a única frase que meu inconsciente conseguia mandar-me como resposta para as incontáveis perguntas que eu o fazia. 

Não sei por que agi daquela maneira, não sei como tive coragem. Infelizmente só consigo sentir esta amarga lembrança corroendo-me por dentro. Por que o passado não pode ser esquecido? Por que não podemos apenas ignorá-lo e seguir em frente? É triste olhar o próprio eu e não reconhecê-lo.

Após aquelas revelações, comecei a recordar coisas que realmente faziam parte do meu passado. Lembrei-me de meu pai sempre carinhoso e dedicado a nossa pequena família. Recordei-me de minha mãe sempre preocupada com minha saúde. 

A cena da minha saída do hospital psicológico da cidade, após três anos em recuperação, veio com clareza à minha mente. Minha mãe abraçava-me e beijava-me com muito amor. Meu pai tinha comprado um lindo buquê de margaridas. Foi um dia muito feliz para todos.

O que aconteceu para que eu recaísse? Não sei. A última imagem que tenho em mente sou eu tomando a direção da janela do meu quarto. Olhava para trás e avistava, em cima de minha cama, um vestido lindo. Devia ser meu vestido de formatura. Entretanto, eu o ignorei e apenas fitei o céu alaranjado. Foi a partir dali que vieram aqueles devaneios.

Com o pensamento negro e profundo, tenho a escuridão como companhia. Carrego a cruz das minhas dores. Nunca mais abri os olhos, não tenho mais força para viver. Exausta, espero incansavelmente o dia da minha morte, onde, enfim, poderei pagar por minha ingratidão. 

Será que realmente nós aprendemos com o passado?
 

 

Fim.

 

"Grande parte da infelicidade é feita de ingratidão."

Schneider


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado.
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