O Coveiro escrita por Janus


Capítulo 1
Capítulo 1




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Não é a mais procurada das profissões, mas em qualquer momento da vida – e especialmente quando esta termina – todos se lembram dela, gostando ou não. Também é onde mais se pode ter histórias e bravatas a respeito de assombrações e similares. Afinal, o trabalho é no cemitério da cidade.

Não estava muito bom para uma introdução, mas era o que podia fazer pelo que conhecia. Olhou pela janela, para o céu nublado do final de tarde e pensou mesmo se iria adiante ou simplesmente procurava na internet material para isso. Trabalho de escola ridículo! Não, não era o trabalho que era ridículo, era a profissão que escolheu, ou melhor, que sobrou para ele escolher.

Coveiro! Tinha de fazer uma apresentação sobre essa profissão, e ao contrário do lixeiro que podia ser elegantemente chamado de “engenheiro sanitário”, não existia uma definição mais “bonita”. Até mesmo na carteira de trabalho levava este nome. O máximo que conseguiu no dicionário foi Indivíduo que abre cova no cemitério. Muito elegante realmente.

Já tinha escrito a introdução e mais duas linhas descrevendo o seu trabalho, ou seja, abrir covas, como o dicionário já tinha dito. E o que mais? Será que ele ia mesmo ter de conversar com um coveiro? Ao vivo, em cores e em seu local de trabalho?

Droga. Tinha que acabar com o trabalho de escola na semana seguinte. Pelo jeito não tinha escolha. Não queria usar o sábado ou o domingo para isso, muito menos a noite de sexta. O jeito seria ir ao cemitério naquele dia mesmo e resolver aquilo o mais rápido possível.

Foi até o seu armário, pegou uma jaqueta prevendo que iria ficar mais frio em breve, um pequeno bloco de notas e um lápis. Deu uma ultima olhada para seu quarto e saiu dizendo adeus para a sua mãe, dizendo que voltava para o jantar.

Pegou o ônibus até o cemitério da cidade, e ali entrou sem muita cerimônia no pequeno escritório. Estava vazio. Onde será que estavam os funcionários públicos dali? Com certeza tomando um cafezinho, ou fumando em algum canto. Saiu em direção aos jazigos. Eles deviam estar por ali enterrando alguém, era o trabalho deles não? Andou pelas calçadas internas do cemitério observando os túmulos de famílias. Já estava anoitecendo e ao contrario do que imaginava – e de todas as historias de fantasmas que ouviu quando criança – não era um lugar assustador. Ainda mais com os postes de luz acesos. Mas onde estava o pessoal dali?

Seguiu para uma outra área sem jazigos ou calçadas, mas tinham lapides. E muitas! Em forma de cruz, a clássica de estilo europeu, em forma de cunha, quadradas – muitas não tinham nomes – outras apenas um pequeno toco de concreto era visto, como se fossem quebradas. Havia ainda algumas que eram apenas uma placa no chão.

Fechou um pouco melhor sua jaqueta. O frio já o estava incomodando, e a noite tinha caído de vez. Pelo jeito teria de voltar no fim de semana mesmo. Parou de andar por aquela área e notou como o cemitério era grande. Não parecia assim do lado de fora. Quando foi fazer o caminho de volta, nem acreditou no que viu. A distancia havia um homem fumando um cigarro, mas o mais importante, ele carregava uma pá! Tinha achado o que estava procurando.

Correu a distancia que o separava do destino e chamou o homem quando já estava próximo. Este um pouco confuso o olhou como se estivesse vendo algo do outro mundo, tamanha era a expressão de surpresa no rosto.

- Desculpe – disse ele ofegando – mas... é que... eu... quero falar contigo.

- É? – disse ele em um sotaque meio de matuto – tenho trabalho para fazer.

Olhou-o melhor e viu que suas calças estavam sujas de lama do joelho para baixo, seu sapato talvez fosse preto, mas agora era claramente marrom cor terra. A camisa mostrava marcas de suor abaixo dos braços. A barba dele estava por fazer – uma típica barba rala de três dias – um boné azul com o nome do cemitério estava na sua cabeça, mas o que impressionava era como o homem era magro e pálido. Podia facilmente passar por um cadáver se estivesse deitado no chão.

- Vou ser breve – disse já com o fôlego parcialmente recuperado – meu nome é Pedro, e eu queria... bem, queria te entrevistar.

- Eu? Quer entrevistar eu? – falou ele naquele sotaque ao qual ele só ouvira em filmes ou piadas.

- É... é um trabalho de escola.

- Ah tá – ele sorriu – mas não posso ficar muito tempo de bobeira ou o patrão me fode.

- Acho que não vai demorar. Pode continuar andando. Não acho que tenho muitas perguntas.

- Então vamos – disse simplesmente e recomeçou a andar – o que você quer saber?

- Bom, você fica abrindo.. quer dizer, você enterra pessoas, certo?

- É isso ai. Morreu, na minha mão desceu – ele riu.

- Faz mais alguma coisa além disso?

Ele parou de andar e olhou feio para o garoto.

- Acha que eu só abro buracos? Quem você acha que deixa a grama cortada, as tumba limpa, troca as lâmpadas queimada? Quem acha que tira os morto do carro e leva no carrinho até os quarto onde a família fica a noite inteira ali?

- Desculpa – ele realmente nem tinha lembrado estes detalhes – é que... – ele pensou bem no que dizer - é por isso que estou perguntando, para por no meu trabalho. Se eu soubesse não viria até aqui.

- Tá bom – ele novamente se pos a andar – também tenho que ser pedreiro quando tem de emparedar um caixão nas tumba. As vezes tenho que abrir as paredes para tirar os ossos de dentro do caixão.

- Ossos?

- Depois de cinqüenta anos ou mais, precisa de espaço nas tumba, daí a gente tira os mais velho, bota no ossário e tem lugar para emparedar mais um.

Imaginou que “as tumba” como ele chamava deveriam ser os jazigos de família.

- Sei, e estes túmulos aqui são de quem?

Ele se referia àquelas lapides que tinha visto antes. Estavam passando ao lado delas, e muitas não tinham nome.

- Indigente, bandido, criança que fugiu de casa e não acharam os pais, têm de tudo. Estão ai porque ninguém sabe o nome dos defunto. As vezes a policia vêm aqui e tenho que cavar e tirar um deles. Quando é velho não tem problema, mas quando enterrou com dois anos, o fedor é horrível.

- Imagino – ele fez uma cara de asco – é você quem abre os caixões?

Ele gargalhou com aquilo, gargalhou com gosto.

- Caixão? Acha que esses abandonado tudo ai tem caixão? É só uma caixa de sapato grande. Tudo papelão. Em cinco anos só tem osso. Quando tem caixão é mais feio. E fedido.

A conversa apesar de interessante, estava um tanto nojenta. Era melhor mudar de assunto.

- O que está indo fazer agora?

- Pegar mais um zé ninguém e enterrar. Quer ver?

- Claro – respondeu ele.

Ficou andando ao lado dele – e ele andava rápido para alguém magro e aparentemente sem muitos músculos  - quando se lembrou de um detalhe. Ele tinha dito que lá só tinha gente sem nome. Mas algumas daquelas lapides tinham nome.

- Você disse que lá atrás só tinha pessoas que não sabiam o nome.

- Foi sim – respondeu ele.

- Mas eu vi nome em algumas das lapides.

Ele riu um pouquinho em voz baixa.

- Eu que coloquei – ele deu uma piscada de olhos – depois de anos aqui você começa a falar com os mortos.

- Falar com os mortos? – sentiu que ele preparava alguma história de fantasma. Era um local apropriado e ele era uma pessoa apropriada para contar isso – não é estranho?

- Olha garoto - ele riu de novo – falar com os mortos não tem problema. Problema é quando eles começam a responder.

- Entendi – ele conteve a risada. Até que tinha sido uma boa piada – algum deles já respondeu para você?

- No dia que isso acontecer eu nunca mais venho aqui – disse sério – mas eu entendo eles as vezes. Os nomes lá fui eu quem escreveu, quando entendi que era o que queriam. Os outros não querem dizer os nomes, então não tem nada.

Ficou um pouco confuso com a resposta mas achou melhor não questionar. Tinham chegado em uma casa pequena e o coveiro a abriu sem falar nada. Lá dentro viu apenas uma maca – muito parecida com a de hospitais, só que não tinha colchão ou fronha – e várias portas na parede ao lado. Não entendeu bem o que era aquilo.

Mas entendeu poucos segundos depois. Ele abriu uma daquelas portas e puxou uma mesa embutida com um cadáver nela. Tinha visto aquilo apenas em filmes. Ele estava em um tipo de necrotério.

Mostrando uma força inesperada, o homem pegou o cadáver nos ombros e o colocou com cuidado na maca. Foi quando viu que o cadáver era de uma mulher, e jovem. Ficou fascinado observando-a ali deitada. Tinha ouvido historias sobre que os corpos ficam duros quando morrem, mas aquela mulher ali não estava deste jeito. Ficou mais impressionado ainda quando o homem começou a ajeitar o cabelo e o lençol que a cobria. Parecia ser do mesmo tipo que havia em hospitais. Ele também tocou os dedos nos lábios e ajeitou estes de forma que a boca ficou mais normal. Antes estava um pouco torta.

Ele respirou fundo, tirou o boné e fechou os olhos, como se estivesse fazendo um tipo de prece. Depois colocou o boné de volta e começou a empurrar a maca. Pedro o acompanhou silenciosamente.

- Ela.. é uma.. quer dizer...

- Uma ninguém – disse ele daquela mesma forma. Não parecia que seu humor tinha mudado – ficou lá nas geladeira e ninguém descobriu quem era.

Geladeira? Claro, o necrotério. Então o necrotério da cidade ficava dentro do cemitério? Achou isso um pouco estranho, mas não muito. A delegacia ficava do lado do cemitério, qual o problema do necrotério ficar ali dentro?

Acompanhou-o até voltar onde estavam os túmulos simples, com apenas uma ou outra marca e cuja maioria não tinha nome. Foram direto até uma cova recém aberta. Dentro da cova havia uma caixão, mas ficou pasmo quando percebeu que era um caixão de papelão. Se não fosse o formato e o fato de estar dentro de uma cova teria achado que era a caixa de alguma coisa parecida com uma geladeira muito fina. Ele não estava brincando quando disse que era uma caixa de sapato grande.

O coveiro pegou o cadáver e o colocou dentro do caixão, tampou este e depois cobriu tudo rapidamente. Aquele era o trabalho de um coveiro descrito no dicionário que tinha lido, mas fazer uma prece por um desconhecido, dar-lhe um mínimo de dignidade nos momentos finais e tratar o corpo com respeito não estava no dicionário, nem mesmo observar a cova fechada com um ar de tristeza, ou tocar na lapide deste e beija-la levemente. Ficou mesmo impressionado com ele.

- Vai perguntar mais coisas? Já, já tenho que ir.

- Não.. – murmurou ele agora sentindo um grande respeito por aquele homem, mas não conseguia transmitir isso – acho que tenho coisas que ninguém nunca imaginou – sorriu para ele.

Ele sorriu de volta, parecia que tinha feito algo além de meramente ter conversado com um garoto, pois seu sorriso era mais do que meramente um cumprimento, era quase que uma felicidade que sentia.

Despediu-se dele e voltou para casa, para a tranqüilidade da mãe que estava preocupada com o filho fora de casa até tarde da noite sem ter avisado. Quando chegou, disse a ela que estava no cemitério, e depois de alguma confusão, conseguiu explicar o que realmente tinha feito. Ela acreditou, embora tenha mostrado muita preocupação e o fez tomar banho na hora, com medo que pudesse pegar alguma doença por ter estado no necrotério sem proteção. Só depois tinha percebido que não tinha perguntado o nome dele!

Assim Pedro fez o seu trabalho escolar e tirou uma boa nota, a despeito até mesmo do que o professor acreditava. Mas quando no fim de semana foi ao cemitério agradecer, descobriu para sua total surpresa que não havia um coveiro ali, muito menos com aquela descrição de pálido e magro. O ultimo tinha se demitido duas semanas antes sem explicar o motivo direito, apenas foi embora. E o cemitério aguardava a contratação de alguém para assumir a função. Até acontecer isso, o trabalho reservado ao coveiro era feito pelo coveiro de outra cidade que vinha ali uma vez por semana. Soube pelos funcionários que aquela parte era mesmo dos indigentes, e que alguém, provavelmente crianças ou vagabundos sem ter o que fazer escreviam nomes nas lapides as vezes.

Mesmo assim, ele foi até o tumulo que tinha visto ele cavar e lá estava a lapide, bem como marcas inconfundíveis de escavação recente. Quem diria? Ele tinha uma historia de fantasmas para contar, mas por mais que tentasse jamais conseguiu dar um sentido para aquilo. Comunicou o fato aos funcionários mas eles aparentemente não deram muita atenção, dizendo que provavelmente tinha sido o coveiro da outra cidade quem tinha enterrado uma pessoa ali seguindo o cronograma.

Era um coveiro fantasma? Ou um ladrão de túmulos? Ou um assassino escondendo sua mais recente vitima? A única coisa curiosa a mais que soube a respeito foi muitos anos depois, quando observava o álbum de fotografias de sua família em companhia de sua já idosa mãe. Uma foto daquele álbum era muito parecida com aquele coveiro que tinha entrevistado na adolescência. Ao perguntar a sua mãe quem era, soube que era seu avô, que tinha trabalhado de coveiro naquele mesmo cemitério.

Pedro apenas tinha sorrido quando soube disto, e murmurou:

- Valeu vovô, me ajudou na nota do trabalho.


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Notas finais do capítulo

Gosto mais de mistérios do que assombrações, desculpe se decepcionei alguém...

Minhas outras fics Originais
—Mágica para o Afeto— Oneshot
—Um Estranho Incidente— Oneshot
—O Último Ser Humano— Oneshot
—Declaração de um Alienado— Oneshot
—Por Que?— Oneshot
—Feitiços Modernos— Oneshot
—Meu Inimigo, A Batata Frita— Oneshot
—Ayesha, a Ladra
—A Caçadora