Sete Vidas escrita por SWD


Capítulo 102
Vida 6 capítulo final




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Há quanto tempo vagava sem destino? Não lembrava de quem fora e não sabia onde estava. Tudo que sabia era que seu lugar não era ali. A luz era diferente naquele lugar. E, quando a noite chegava, era envolvido pela mais absoluta escuridão. Fosse dia ou noite, tudo estava sempre em movimento. Quando ficava parado, se sentia sendo levado para longe ou jogado de um lado para o outro. E, sobre sua cabeça, havia uma barreira que ele não conseguia transpor.

O pior era a sensação de perda. Havia perdido algo importante. Algo inestimável. Mas não lembrava o que era. Se conseguisse lembrar, talvez pudesse voltar para casa.

Queria muito voltar para casa. Mas, por mais que tentasse, não conseguia chegar a nenhum lugar conhecido. Parecia que estava andando em círculos. Sentia falta de gente a seu redor. Não nascera para viver isolado. Tinha necessidade de afeto, de calor humano, de vozes. Aquele silêncio perturbador o estava enlouquecendo.

Às vezes, quase podia agarrar a lembrança. A lembrança que daria sentido àquilo tudo. Ela parecia estar sempre ali, à sua frente, ao alcance de seus dedos. Mas bastava estender a mão, que ela fugia. Lembranças eram ariscas como peixes. Peixes. Eles estavam por toda parte.

Um dia, encontrou um homem. Ficou tão feliz, que correu em sua direção e o abraçou. Como era bom estar com alguém. Não queria se afastar dele. Se dependesse de si, ficariam abraçados para sempre. Mas apareceram outros, que o feriram, agarraram o homem e o levaram. Levaram o homem para o outro lado da barreira. Onde ele não podia ir. Não podia segui-los. Estava novamente só. E logo ficaria escuro.

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– Está acusando atividade eletromagnética.

– Mas, isso prova o quê. Que existe um fantasma embaixo d’água?

– E porque não? Pode ser alguém que se afogou aqui. Essa é uma área de surf. Surfa-se aqui até mesmo de noite. Um surfista solitário pode muito bem ter tido um mal súbito, caído da prancha e morrido afogado.

– E você está pensando em mergulhar? Só temos mais uma hora de luz. Anoiteceu, é breu.

– Dois dos três contatos foram próximos ao anoitecer. E o detector mostra atividade. Não posso perder essa chance. Talvez o fantasma tenha sido atraído pelo nosso barco.

– Você deve estar recebendo muito bem para se arriscar tanto.

– Nem recebendo bem nem me arriscando tanto. Se o fantasma me agarrar, uso isso aqui.

– Uma vareta e um saco de sal?

– Ferro frio e sal. A fórmula clássica para afastar fantasmas.

– Se o fantasma não gostasse de sal, não viveria em água salgada.

– Não acho que tenha escolha.

Viu a cara de condescendência que o barqueiro fizera. ‘No mínimo, ele deve me achar um maluco. E nem posso censurá-lo por isso. No lugar dele pensaria a mesma coisa.’

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Às vezes, se perguntava o porquê de estar tão interessado em investigar casos com elementos sobrenaturais. Parecia uma compulsão. Simplesmente não conseguia evitar. O que estava realmente procurando? Talvez quisesse apenas provar para si mesmo que não estava louco. Que, por mais inacreditável que parecesse, aquilo de fato acontecera com ele. Que o mundo era, sempre fora, cheio de coisas bizarras e criaturas que se escondiam dos olhos dos homens para agarrá-los, um a um. Sempre que alguém se distraísse.

Sentia necessidade de entender o que acontecera. Um dia se chamara Jansen Ackles, era ator e era feliz. Queria achar o culpado por sua vida ter virado de cabeça para baixo.

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O sol estava baixando. A luz mal alcançava os 3 m de profundidade. Mas não tinha a intenção de mergulhar mais fundo. Todos os contatos aconteceram próximos à superfície. Surfistas, em rápidos mergulhos.

O primeiro teve muita sorte. Fora agarrado pelo fantasma e teria se afogado se os amigos não tivessem mergulhado para resgatá-lo. Havia interrogado os três. O fantasma desaparecera quando teve o corpo atravessado pela mão de um deles na luta para salvar o amigo, já inconsciente. Observou que o rapaz usava uma pulseira com um pequeno amuleto no braço esquerdo. Um badulaque de ferro fundido.

O segundo contato aconteceu dois meses depois. Um surfista, sentado sobre a prancha com as pernas submersas, foi puxado para baixo, mas foi rápido e conseguiu se desvencilhar e fugir. Ainda se mostrava traumatizado com a experiência. Nunca mais entrara no mar. Na ocasião, havia muitos surfistas naquele trecho de mar e vários estavam próximos. Todos os que viram o fantasma disseram que parecia um homem jovem, de cabelos longos. E que parecia ser feito de água. Alguns viram quando o fantasma tentou esticar o braço para fora do mar para alcançar outros surfistas, mas o braço não podia ser visto fora d’água.

O último avistamento, há apenas uma semana, terminou em afogamento e quase morte. O rapaz de 17 anos, chegou afogado, ninguém sabe como, à linha de arrebentação da praia. Banhistas o resgataram e, milagrosamente, ele foi reanimado pelo salva-vidas com um desfibrilador, após três tentativas. O caso teve ampla divulgação pela mídia. Ainda no posto salva-vidas, muito abalado, ele afirmou que um rapaz grande, alto, feito de água, o puxou para o fundo. A família não permitiu desse nenhuma outra declaração.

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Estava submerso há quase vinte minutos quando avistou algo vindo em sua direção. Mais do que ver, sentia uma presença. A visibilidade sob a água era quase nenhuma. A mobilidade embaixo d’água era limitada. Quando foi envolvido pelos braços do fantasma, seu susto foi tão grande que soltou a vara de ferro frio. Ao se debater em pânico, tentando fugir, o saco com 1 kg de sal de cozinha se soltou do seu cinto e também afundou. Droga. Estava no ramo há muito pouco tempo. Não tinha experiência. Não tinha treinamento. Ia acabar se matando. Ia acabar sendo morto.

Estava sentindo a pressão de um corpo contra o seu. Se não era, parecia um abraço. Sabia que o fantasma era capaz de manifestação física. Mas saber é uma coisa, vivenciar é outra completamente diferente. Ele não era propriamente sólido. Não conseguia empurrá-lo. Mas também não era completamente intangível. Era como se controlasse a própria densidade. E, como as testemunhas haviam dito, era quase transparente, como se feito de água.

Precisava se acalmar. Pensar no que ia fazer em seguida. O fantasma parecia não querer machucá-lo. Ao contrário dos surfistas não corria o risco imediato de afogamento. Estava com um tanque de oxigênio e ainda dispunha de uma hora e meia de ar.

Precisava voltar à superfície, mesmo que arrastando o fantasma junto. Chegar ao barco. Segundo os relatos, o fantasma não podia atravessar a superfície do mar. Sim, era isso. Nadaria lentamente, na direção da superfície e do barco. Sem que o fantasma percebesse. Não podia alarmá-lo. Ele precisava deixar-se conduzir. Já desistira de tentar se desvencilhar dele. Tentaria algo diferente. Corresponder ao abraço.

Ficaram longos minutos abraçados até alcançarem ao barco. Aparentemente, era apenas um espírito assustado e desorientado. Talvez não soubesse que estava morto. Mas isso não fazia dele menos perigoso. Acabaria matando alguém. Precisava achar e queimar seus ossos. Só assim ele teria paz. Só assim deixaria de ser perigoso.

Conseguiu alcançar a escada do barco. Precisou de toda a sua força para galgar degrau a degrau. O fantasma o puxava para baixo, com força e obstinação. Mas era como os surfistas disseram. Ele não podia acompanhá-lo para fora d’água. Quando não mais podia abraçá-lo, o agarrou pela cintura, depois pela perna e até pelo pé, arrancando seu pé-de-pato. Só se sentiu em segurança quando o fantasma finalmente o largou.

Já livre da máscara e do cilindro de mergulho, se inclinou sobre a amurada do barco tentando avistar o espírito sob as águas. Ele permanecia lá, onde o deixara, próximo à escada. Estava escurecendo muito rápido. Já era difícil distinguir qualquer coisa sob as águas. Mesmo assim, o rosto que o observava sob as águas parecia familiar. Muito familiar. O fantasma olhava para ele com um olhar suplicante. Parecia com ..

– Jay??

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Os restos mortais foram encontrados, após dois dias de intensa busca, preso à estrutura submersa do píer de Venice Beach. A polícia coletou material genético para comparar com o de pessoas desaparecidas na região no último ano, tempo máximo estimado pelos legistas para a data da morte, mas em vão. Jerod Padalecki morrera oficialmente em Vancouver e, portanto, não estava sendo procurado como desaparecido em Los Angeles.

Jansen, isto é: Clint Eastwood, que investigava as aparições no mar sob o nome falso de Patrick Page, pagou um enterro decente e ritos fúnebres para o desconhecido. A certeza dependia de testes de DNA, mas ele próprio não tinha dúvidas sobre a identidade do morto. Sua intenção era aguardar o fim dos trâmites legais para escavar secretamente o túmulo e queimar os ossos. Queria libertar o espírito do amigo. Dar a paz ao homem que um dia amara sem ser correspondido. Era tudo o que podia fazer por ele.

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Quando era ator, nunca precisara pegar no pesado. Era o pessoal de apoio que suava para escavar um buraco na terra. Ele só chegava na hora de gravar. Agora só podia contar consigo mesmo. Suas mãos estavam cheias de calos. Suas unhas estavam sujas de terra. Tudo era muito mais difícil no mundo real. Até o galão de gasolina parecia pesar mais. E o pior ainda estava por vir. Acompanhara a retirada dos restos mortais do mar. Vira o estado lastimável do corpo que ficara submerso por mais de sete meses. Não sabia se era forte o bastante para enfrentar novamente aquela visão. Mas o faria. Preparado ou não, o faria. Faria o que fosse necessário. Por Jay.

Fazia alguns minutos que encarava o caixão já não mais coberto de terra. Quando finalmente achou que estava preparado para levantar a tampa do esquife, aconteceu. O susto foi tão grande que se fosse cardíaco teria caído duro ali mesmo. Pensou que estava preparado para o que ia encontrar. Não estava. Nunca estaria preparado para aquilo.

Sem qualquer aviso, a tampa do esquife foi violentamente empurrada de dentro para fora e abriu. Jay Padalecki ergueu o tronco e inspirou o ar com a urgência de quem tinha mergulhado muito fundo e acabara de chegar à superfície. Estava vivo. Estava íntegro. Até mesmo suas roupas pareciam imaculadamente limpas.

– Obrigado, cara. Muito obrigado. Você me salvou. Não sei o que aconteceu. Eu simplesmente acordei minutos atrás dentro deste caixão. Estava ficando sem ar. Fiquei apavorado. Pensei que fosse morrer. Obrigado.

O susto fez com que Jansen caísse de costas e ele ficou ali, paralisado, olhando com olhos arregalados para Jerod, que se levantou e lhe estendeu a mão para que também se levantasse. Estavam ambos de pé sobre o caixão, frente a frente, quando Jerod abraçou forte seu salvador desconhecido e chorou de alívio e desamparo.

Abraçado a Jay, Jan também chorava. Como sentira saudade daqueles abraços. Ter Jay de volta fazia valer a pena tudo o que sofrera nos últimos meses. Pela primeira vez, desde que se transformara em outra pessoa, sentia esperança de dias melhores. Mas não era simplesmente isso. Crescia, naquele momento, dentro de si, a crença de que havia um motivo maior, algo verdadeiramente importante, para as coisas que aconteceram com ele. A crença de que fora escolhido para uma missão e que, um dia, aquilo tudo faria sentido.

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De longe, Gabriel observa a cena, às gargalhadas. Ressuscitar um homem morto há meses demandava uma quantidade extraordinária de energia e uma infinidade de ajustes nos planos material e metafísico. Era algo extremamente difícil, mesmo para um arcanjo. O que estava em jogo justificava tudo aquilo, mas, independentemente disso, valera a pena só de ver a cara que Jansen fizera quando a tampa do caixão abriu. Fora impagável.

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CENA PÓS-CRÉDITOS

O corte no pescoço de Aglaope começou a cicatrizar quase que imediatamente, mas o corte fora profundo e processo era naturalmente lento. Ela só recuperou a fala horas depois, no necrotério. Os legistas preencheram relatórios atestando a morte por arma branca e desembaraçando o corpo para que fosse enterrado. Ela permaneceu por perto garantindo que tudo parecesse absolutamente normal. Todos os envolvidos, inclusive os repórteres que fizeram a cobertura do caso, foram levados a acreditar que uma mulher fora morta, que passara por autópsia e que fora enterrada com muito choro na presença de familiares e amigos.

A faca que Dean usara era de bronze, mas não tinha sido molhada no sangue de um humano sob a influência mística da sereia. Não foi como quando esfaqueou Necker, com mesma adaga com que tirara sangue do pescoço de Chad.

Aglaope, como todo mundo, fora ludibriada pela artimanha do Trickster e perdera o alvo de sua vingança. Jansen Ackles estava vivo, mas ela não tinha como saber. Retomaria sua vida de empresária em Paris, mesmo que sem seu companheiro e amante de séculos. Estava novamente cheia de ressentimento dos humanos. O mundo empresarial enfrentaria uma Genevieve Cortese ainda mais impiedosa.


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Notas finais do capítulo

10.06.2011