Lá vem a princesa Cordélia para mais um longo dia, com aulas de ballet, violino, canto, matemática, costura, francês, etc. etc. etc. Cordélia, na verdade, não era uma princesa, por mais que gostasse quando Lucy, sua criada preferida a chamava assim, ela era a filha do prefeito da cidade, homem inteligente e estimado, a quem todos aclamavam, ele cuidava muito bem de sua cidade, melhor até que de sua família, e, para dar toda essa atenção à cidade, passava o dia inteiro fora e só voltava muito tarde para o jantar ou muito cedo, para o café da manhã. Cordélia era também filha da mulher do prefeito, que era uma mulher triste, mas a menina não sabia o porquê. A princesa tinha lembranças de quando era mais nova e sua mãe era feliz, as duas passeavam pela cidade compravam vários ingredientes e faziam lindos bolos, compravam várias sementes e mudas e plantavam lindas flores, isso tinha sido quando sua mãe era Cindy e não a mulher do prefeito. Agora quem fazia lindos bolos era a cozinheira da casa, e quem plantava lindas flores era o jardineiro. Agora Cordélia tinha 10 anos, não era mais tão nova, e não ia passear pela cidade com sua mãe. Agora sua mãe passava o dia sentada, fumava e bebia whisky olhando sempre pela janela ou para os porta-retratos do quarto, dava meio-sorrisos quando Cordélia lhe mostrava algo novo que aprendera e sempre dizia “você é melhor que eu”.
No intervalo daquele dia cheio, Cordélia olhou pela janela, viu a cidade, ela sentia falta lá de fora, às vezes ela ajudava Lucy a fazer as compras, mas não era igual a passear pela cidade despreocupadamente e sem hora pra voltar. Cordélia também sentia falta da escola, havia anos que era educada em casa, com vários governantes e governantas, professores e professoras, todos muito bem pagos, com isso perdera todos os seus amigos. As vezes que ela via crianças, era em jantares importantes da sociedade, mas ela não podia brincar, porque não queriam que ela sujasse o vestido. Por falar em vestido, Cordélia sempre estava arrumada, sempre parecia que ia a alguma festa, e quando realmente ia a festas, parecia uma princesa.
Ali estava a princesa, olhando a rua, quando reparou numa menina sardenta andando devagar, era toda maltrapilha, com roupas que mais pareciam panos de chão ou até piores, parecia ter a idade de Cordélia, mas era bem menor. A menina olhava pros lados como se procurasse alguém, até que pegou um pão da feira, sem pagar nem nada, e saiu correndo rápido como um tiro de bala. Cordélia, de sua janela, sentiu a adrenalina e viu como a menina ria enquanto corria, a princesa decidiu fugir e correr também, não sabia por quê, mas sentia que precisava daquilo, correr com a ladra de pão maltrapilha.
Lá vem a pastora Anna para mais um dia de trabalho na fazenda. Tinha acabado de voltar da escola, e era hora de cuidar das cabras. Seus pais mantinham a fazenda e viviam daquilo que produziam e cultivavam lá, vendiam algumas, usavam outras, e assim levavam uma vida feliz e simples. Anna tinha memórias felizes com os pais, com os animais e com os amigos da escola, ela era feliz, e gostava dos seus afazeres do dia-a-dia: ir à escola, cuidar das cabras e ajudar a fazer o jantar. Seus afazeres não eram como obrigações, obrigações são coisas que você tem que fazer mas não quer, e Anna gostava de fazer tudo aquilo, gostava de segurar um cajado e guiar as cabras pra lá e pra cá. Todavia, por mais que Anna amasse sua vida, não queria fazer aquilo pra sempre, ela sabia que no futuro, quando seus pais morressem, teria que tomar conta da fazenda, pois a fazenda passava de geração em geração sempre para o filho ou filha mais velho, mas aquilo não era bem o que Anna queria. Anna tinha estudado muito na escola e descoberto como o mundo é grande, tudo que ela queria era ver o mundo sem nem saber pra onde vai e se vai voltar, ela só tinha 10 anos, ainda tinha que estudar bastante, brincar e aproveitar a infância, mas quando crescesse, ia querer descobrir o mundo e tinha medo de não conseguir por causa das tarefas da fazenda.
Anna estava ali cuidando de suas cabras, todas com nomes, todas muito bem decoradas e amadas por ela, quando viu uma menina maltrapilha correndo que nem uma maluca e logo atrás uma menina toda arrumada usando vestido de festa correndo também que nem uma maluca. Anna coçou os olhos, pensou ter visto coisas, mas as duas malucas estavam mesmo lá, correndo uma atrás da outra, e por algum motivo desconhecido, Anna largou o cajado, deixou as cabras para trás e saiu correndo atrás das meninas maltrapilha e com vestido de festa.
Lá vem a procurada e temida “ladra” Raposa, em busca de algo pra comer, pois sua barriga roncava alto. Ninguém além dela própria sabia seu nome, a chamavam de Raposa, um pouco pela cor do seu cabelo, mais ainda porque ela era rápida e solitária, gostava de fazer as coisas sozinha, conhecia muita gente, muita gente pobre e pé rapada, com quem poderia sempre estar e contar, mas preferia sobreviver por conta própria mesmo, já tinha 10 anos, sabia se virar. As crianças de rua a respeitavam, até as mais velhas, e os adultos pobres, quando podiam, a ajudavam com uma comida ou uma roupa. Raposa dormia por aí, embaixo ou por cima das coisas, não tinha casa e muito menos lar, vivia solta na rua desde os 5 anos, quando decidiu fugir do orfanato da cidade ao lado. Não sabia quem a tinha posto no mundo, e nem pensava muito nisso, as pessoas do orfanato nunca disseram nada pra ela, não sabia com quantos anos ou meses tinha ido parar lá e nem quem a tinha largado lá, mas também não pensava nisso. Raposa só pensava em correr e brincar por aí feito maluca. Todo dia ela roubava algo, sempre comida, porque precisava, mas de vez quando roubava coisas que achava legais e escondia em um lugar que ninguém podia achar, sabia que quando ficasse mais velha roubaria mais, mas agora ela já tinha o que precisava.
Naquele exato momento, ela precisava de comida, e logo teria. Sentiu cheiro de pão e decidiu qual seria o cardápio do dia, olhou o padeiro, ele tinha cara de bobo, ela riu sozinha, seria fácil roubar dele, ele nem prestava atenção, não veria, e se ele não visse, ninguém mais veria. Raposa sabia das coisas, ela sabia ler as pessoas, era uma das coisas que aprendera na rua, assim como palavras horrorosas que criança não devia falar, e segredos sobre os adultos que criança não devia saber. Foi se aproximando de fininho, andando devagar, olhando pros lados pra se certificar de que ninguém a encarava, meteu a mãozinha no pão, pegou, e quando se preparou para sair tranquilamente, ouviu uma voz dizendo “essa menina roubou um pão!”, então começou a rir e correr em disparada, sabia que não seria pega, nunca era, por isso ria tanto, ela só precisava correr até eles aceitarem que não a alcançariam e desistirem, e naquele dia nem deu o melhor de si, estava tranquila e feliz.