Ser ou não ser escrita por Eica


Capítulo 1
Capítulo 1




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O dia trinta de agosto não significa nada para algumas pessoas, exceto para mim, pois completo vinte e sete anos. Meu despertador não me acordou, o que o torna naturalmente dispensável. Há pouca claridade em meu quarto e algo me diz que o dia será quente. O ritual que faço após sair da cama não é diferente do ritual das outras pessoas: tenho que ir ao banheiro, lavar o rosto, escovar os dentes, pentear o cabelo e trocar de roupa.

            Coloquei o uniforme da loja onde trabalho, que consiste em camisa polo preta com o logotipo da livraria. Depois de pronta, chequei meus documentos em minha bolsa. Ao dar o horário, entrei em meu carro e dirigi até o shopping. Estacionei o carro em qualquer canto do estacionamento e me dirigi a uma das portas de entrada. A temperatura fresca da manhã estava bastante agradável. Olhei para o céu azul. Felizmente não ia chover.

— Menina! Espera!

            Virei o rosto. Nikki apressava os pés para me alcançar.

— Tudo bem? — Perguntou, com respiração levemente ofegante.

            Após um abraço, fixou-me o olhar.

— Que cara de morte! É seu aniversário! Achei que mostraria mais disposição.

— Queria voltar para minha cama. — Revelei, com cara de desânimo. — Levantar-se dela é o mesmo que traição.

            Entusiasmada, perguntou-me se eu não percebera o que ela estava usando. Olhei para suas orelhas, achando que usava brincos novos. Depois olhei para sua roupa, para seus pés e para seus pulsos. Não vi nada de diferente.

— Meu novo sutiã de bojo! — Exclamou, um pouco decepcionada.

— Ah! Agora notei!

— Ficou natural? — Perguntou, preocupada.

— Não sei. Como gostaria que estivesse?

            Só agora começamos a andar em direção à porta mais próxima.

— Não queria que parecesse sutiã. — Explicou ela, gesticulando.

— Não entendo por que usar isso.

— É só para modelar e deixar bonito, porque você sabe que não preciso de volume. O volume que eu tenho já é suficiente. Devia ter um!

— Para me dar volume? — Indaguei, fingindo ter sido ofendida.

— Não. — Riu-se. — Para deixar mais bonito.

— Quando eu morrer, você pode me dar um.

— Qual seu problema com os sutiãs de bojo?

— Não vejo problema com eles. Só não acho que eu precise. Mesmo que seja para deixar mais bonito.

            Contraiu o rosto numa careta de desapontamento.

— Então com certeza vai devolver o presente que eu te dei.

— Me deu um sutiã? — Indaguei, pasma.

            Confirmando, entregou-me a sacola laranja que carregava e deu-me um abraço.

— Não precisava me dar nada.

— Eu sei que você não queria ganhar presente, mas eu gosto de você e achei que esse sutiã combina com sua personalidade.

            Tirei o dito cujo da sacola. Era um bojo rosa. Bastante delicado.

— Obrigada. Achei muito bonito.

— De verdade? Que bom! Agora vai ter que me dar um presente no meu aniversário.

— Foi por isso que me deu um? — Brinquei.

            Entramos no shopping. Chegamos à praça de alimentação do Esplanada. Continuamos andando.

— Eu acho que o Marcos te comprou um presente. Não tenho certeza, mas ele disse que estava pensando em te dar alguma coisa. — Confidenciou Nikki, com olhar insinuante.

— Não quero um presente dele.

— Ele seria o presente mais adequado, né? — Brincou, rindo da minha cara. — De preferência, usando apenas o embrulho.

— Você tem a mente muito pornográfica.

            Ri com ela.

— Como consegue usar esses saltos tão grandes?

— Por que mudou de assunto?

— Porque não gosto de falar sobre o Marcos. A vida particular dele nunca vai se encontrar com a minha vida particular. Além disso, ele é apenas um ser humano inalcançável. Estou em busca de outras amizades. Você sabe disso.

— É, sei.

            A loja onde trabalhávamos ficava no Shopping Iguatemi, que era uma expansão do já existente Esplanada. Era possível acessar a ala sul por duas passarelas de conexão. Usamos uma delas para percorrer o longo caminho até a livraria. Como de praxe, Estela, a dona da loja, ainda não havia chegado, no entanto, Marcos e Fernanda já esperavam em frente à porta.

            Por sua posição, Fernanda foi a primeira a nos ver e acenar. Marcos virou o rosto e nos viu segundos depois.

— Feliz aniversário, Rafa! — Disse Fernanda, pegando em minha mão.

— Obrigada.

— A Nikki ia me ajudar a comprar um presente para você, mas como a ideia do presente não ia partir de mim, eu acabei desistindo.  — Explicou Marcos, sorridente. — Então a gente dá uma volta pelo shopping hoje e você escolhe o que quer ganhar. Beleza?

— Não precisa...

— Só sabe tocar essa música? — Interrompeu-me Nikki. — O Marcos quer te dar um presente. Aproveita.

— Isso, — apoiou Fernanda. — Aproveita. E deixa ele sem nenhum troco na carteira.

            Marcos riu.

— Peraê, minha gente. Eu ganho o mesmo que vocês.

            Fernanda deu-lhe um tapinha no braço. Sacudiu a cabeça e olhou para mim.

— Te comprei uma lembrancinha bem básica. — Disse ela, fuçando na enorme bolsa que carregava ao ombro.

            Fernanda sempre adorou bolsas grandes e espalhafatosas. E talvez por conta de comportarem tanta coisa, demonstrou dificuldade em achar o presente.

— Vixi! Pode desistir do seu presente! — Gracejou Marcos, enfiando o celular no bolso. — Deve ter se perdido em algum buraco negro.

            Nikki rachou de rir.

— Ai! Para de brincadeira e me ajuda a achar...

— A bolsa é sua! Não vou meter a mão aí dentro e acabar me perdendo.

— Achei!

            Fernanda passou-me uma caixinha colorida. Recebi-a bastante contente. De dentro dela, tirei um relógio em forma de pulseira, com tira de couro e pingentes. Realmente combinava bastante comigo. Coloquei-o imediatamente.

— E o meu presente? Não vai pôr também? — Protestou Nikki, em tom bem-humorado.

— Que presente deu para ela? — Indagou Fernanda.

— Um sutiã de bojo.

— Opa! Sutiã? — Exclamou Marcos, voltando a se interessar pela conversa. — Vai colocar?

            Meu rosto esquentou sem meu consentimento.

— Se ela fosse colocar, não seria na sua presença. Muito menos na presença de todo o resto do shopping. — Disse Nikki.

— Bojo? O que que é isso?

— Não é possível que não saiba! — Admirou-se Nikki.

— Conheço as peças íntimas femininas, mas não seus nomes técnicos. Sei o básico. Esse bojo aí é o que?

            Tirei o sutiã da sacola e mostrei para ele.

— É um sutiã com estofado, é isso?

            Rimos da sua pergunta, enquanto ele continuava apertando o sutiã. Virou-o algumas vezes, para olhar os detalhes.

— E por que precisam disso?

— Agora você pareceu a Rafa. — Disse Nikki. — É para deixar os seios mais bonitos. Mais modelados. Pelo menos eu uso por causa disso.

            Marcos passou-me o sutiã. Guardei-o na sacola.

— Os seios são bonitos por natureza. Não precisam de adornos.

            Nikki riu.

— Mas tem vários tipos de sutiãs de bojo. Esse que eu dei para a Rafa é mais usado para modelar. Mas tem aqueles que servem para levantar e outros para aumentar.

— Homens não têm esse tipo de roupa. A menos que tenham inventado cuecas para modelar, levantar e aumentar e eu não fiquei sabendo. — Brincou, nos fazendo rir.

— Você não ia precisar, né? — Gracejou Fernanda.

— Definitivamente não.

            Marcos nos avisou que Estela aparecera do outro lado do corredor.

— Está na hora de trabalhar, minha gente. — Disse ele, espreguiçando-se. — Melhor começarmos agora senão é bem capaz de eu dar meia volta e ir embora. Demorei a dormir.

— O que ficou fazendo a noite inteira?

— Facebook. — Respondeu, apanhando seu capacete do chão.

— Bate-papo?

— Também. Fiquei vadiando.

            Estela deu-nos bom dia. Marcos suspirou quando a porta de enrolar foi aberta.

— Lar doce lar! Vamos trabalhar, meninas!

— Tudo bem com você, Estela? — Indagou Fernanda.

— Tudo, está tudo bem. — Respondeu Estela, sorrindo, mas parecendo muito cansada.

            O shopping foi aberto aos clientes às exatas dez horas da manhã. A manhã seguiu muito monótona e morta. Um pouco antes da hora do almoço, Marcos veio até mim, quando eu estava tirando pó de uma das prateleiras.

— Falei com a Estela e ela deixou a gente almoçar no mesmo horário. — Disse ele, pegando-me de surpresa.

— Você perguntou para ela...

— Perguntei, afinal, tenho que te dar o meu presente.

— Mas eu falei que não precisa. — Obstinei, mesmo tendo gostado do seu sorriso.

— Ah, vamos lá! Vai ser divertido. — Encorajou-me, tocando em meu cotovelo.

            Parei de tirar o pó. Mirei-lhe um olhar descrente.

— Quer mesmo?

— Sim, vamos lá. Faltam vinte e cinco minutos.

            Esperei os vinte e cinco minutos com relativa ansiedade. Nikki volveu-me um olhar malicioso quando Marcos e eu saímos da livraria. Não dei importância para ela. Ela sempre fazia isso.

— Legal. Vamos para onde? Quer o que?

— Hmmm, primeiro eu quero comer. Estou morrendo de fome.

— Ótimo. Quer comer comida gordurosa, comida saudável...?

— Gordurosa. Comida gordurosa é sempre boa demais.

            Virou-me o rosto e sorriu.

— Lanche?

— Hmmm, não estou certa...

— Quando falamos em comida gordurosa, só me vêm à mente um enorme lanche com quinze centímetros de carne, queijo e bacon.

— Melhor um prato feito.

— Grilleto?

— Pode ser.

            Continuamos caminhando tranquilamente pelo corredor. Poucas pessoas passeavam pelo shopping. Marcos manteve as mãos nos bolsos como gostava. Seu perfume era muito gostoso, mas sou suspeita para falar. Tudo nele é maravilhoso: os sorrisos, os olhares, as piadas, os gestos... absolutamente tudo. Quando nos conhecemos, foi um pouco difícil livrar-me do nervosismo toda vez que nos falávamos, mas hoje consigo conversar com ele com bastante naturalidade. O que me ajudou foi o fato de nosso humor ser bastante parecido...

            Chegamos à praça de alimentação. Pegamos o cardápio do restaurante e escolhemos os pratos que queríamos comer. Também escolhemos refrigerantes. Pagamos, pegamos nossa senha e aguardamos em frente a uma mesa.

            Marcos e Fernanda costumavam sair juntos para almoçar, todavia, estava gostando de sair com ele. Estes momentos entre nós eram raros.

— Seus dedos não se cansam? — Indaguei, quando o vi teclar com bastante agilidade no celular.

            Ele deixou escapar um riso abafado.

— Não. Sou ótimo com teclados. Você tem internet no seu celular?

— Tenho. — Respondi, esperando por uma explicação.

— Vamos conversar pelo Whats’?

            Sua risada me fez rir.

— As pessoas estão perdendo o contato pessoal. Estão deixando de conversar quando estão à mesa. — Disse ele, colocando o celular sobre a mesa.

— Não precisa deixar o celular de lado. Não tem que me dar atenção. Pode continuar fazendo o que estava fazendo.

— Seria indelicadeza dizer que seria indelicadeza te ignorar. Por isso não farei nenhuma das duas coisas.

            Balancei a cabeça depois de rir.

— Já pensou no seu presente?

—... pague minha sobremesa. Pode ser? Uma caixa de chocolates?

— Ótimo! Uma caixa de chocolates é sempre um presente bastante simpático. Perfeito! Tirou um peso das minhas costas. Não sabe o quanto.

— Que exagerado!

— Por falar em aniversário... quantos anos você está fazendo mesmo?

— Vinte e Sete.

— Tudo isso? — Exclamou, simulando espanto. — Isso me lembra de que também sou velho.

— Você se sente velho?

— Às vezes sim. — Disse, trocando o celular de lugar na mesa.

            Olhou para a senha que a balconista nos dera. Depois olhou para o painel no alto do restaurante. Havia duas pessoas na nossa frente. Olhei a nossa volta. A praça de alimentação estava mais movimentada e meu estômago bastante vazio. Pegamos nossas bandejas assim que a nossa senha apareceu no painel.

— Não gosto de comer comida com molho... — estranho ter dito isso, pois pedira uma parmegiana. — Porque a boca fica vermelha depois.

— Para isso serve o guardanapo. — Gracejei, mostrando-lhe os guardanapos sobre sua bandeja.

            Comemos sem pressa, mesmo que tivéssemos apenas uma hora de almoço. Ele parecia menos preocupado em chegar no horário. Eu olhava a hora do meu relógio a todo o momento.

— Você come devagar. — Observei.

— Eu mastigo a comida. Coisa que muita gente não faz.

            Alteou as sobrancelhas.

— Você come como se não houvesse amanhã.

            Fitei-o, indignada.

— Que mentira! Eu como certinho.

            Quando sorriu, deixou os dentes sujos à amostra. Zombei da mesma maneira, só que mostrando a língua. Vi-o olhar para o uniforme.

— Com medo de derrubar molho na camiseta?

            Marcos confirmou.

— Não tenho camiseta reserva. A menos que você me empreste a sua.

            Ri.

— E eu vou usar o que?

— Seu novo sutiã. — Respondeu, rindo.

            Continuei comendo. Já estava quase acabando.

— Você também tem sutiã de bojo?

— Não. Nunca tive.

            Fingi não ter percebido seus olhares para lugares que não deveriam ser mencionados. Já terminado o almoço, saímos da praça de alimentação e fomos até a loja de chocolates. Durante o caminho, conversamos sobre muitas bobagens. Faltava apenas quinze minutos para nosso horário de almoço acabar. Corri para escolher uma caixa de chocolates barata, afinal, não iria fazê-lo gastar mais de cinquenta reais comigo. Havia caixas muito caras na loja.

            Reparti-lhe a caixa, mesmo sob seus protestos. Comemos alguns chocolates antes de voltarmos para a livraria. Marcos se vangloriou por ter ganhado chocolates e esfregou isso na cara de Fernanda e Nikki antes das duas saírem para almoçarem.

            Não mencionarei o quanto o dia foi monótono. Exceto pelo fato de ter ficado uma hora com Marcos no almoço. Não tive tempo de bater papo com Nikki quando ela e Fernanda voltaram. Trabalhamos o restante do dia, até que nosso horário terminou e o pessoal do período da tarde chegou.

            Saímos nós quatro pelos corredores do shopping, planejando o que faríamos a partir dali.

— Vamos fazer uma festinha de aniversário para a Rafa! — Sugeriu Nikki, empolgada.

— Não sei se tenho forças para uma festinha. — Disse.

— Mas nem sabe para onde eu estava pensando em fazer sua festinha...

— E onde seria? — Indagou Fernanda.

— Cinema. Que acham?

            Eu concordei surpresa por todos estarem animados com isso. Fazia tempo que eu não ia ao cinema e ir com os quatro ao mesmo tempo foi muito divertido. Sorte que não havia muita gente na sala em que entramos, porque Marcos abusou das brincadeiras, fazendo as meninas rirem como histéricas.

            Ficamos no shopping até escurecer. Quando voltei para casa, estava sentindo muito sono. Tomei um banho e derrubei-me na cama. Peguei sono bem depressa. Só acordei quando me senti muito estranha. Uma sensação muito incômoda que me fez remexer na cama várias vezes até conseguir dormir de novo.

            Abri os olhos e quando consegui enxergar o meu braço em frente ao meu rosto, meu coração sobressaltou-se. Não foi preciso tocar-me para perceber que eu não sentia os meus seios. Meus cabelos pareciam ter diminuído de tamanho, diferente de meu braço, que pareceu ter aumentado. Pulei para fora da cama, completamente assustada. Perplexa. Bati minhas costas contra a parede. Depois contra meu guarda-roupa. Não reconheci meu corpo. Não! Definitivamente, aquele corpo não era o meu! Meus seios haviam sumido. Quando olhei para mim mesma, vi outro corpo. Mas não outro corpo feminino. Não. Um corpo masculino!

            Com as mãos trêmulas, tentei tocar em meu rosto, mas não consegui. Meus gemidos e pedidos de ajuda também me assustaram, pois quando minha voz saiu por minha garganta, não era a minha voz, mas uma voz masculina. Fiquei sentada no chão, tremendo e chorando. Meu coração continuava agitado. Tive medo até mesmo de ter um ataque ou algo do tipo.

            Demorei a levantar e quando o fiz, foi extremamente sem jeito. Caminhei até o banheiro, com as pernas querendo me derrubar. Coloquei o braço para dentro do banheiro. Achei o interruptor e liguei a luz. Mais assustada que nunca, aos pouquinhos, fui entrando.

            Ao dar de cara comigo mesma no espelho, bati a cabeça contra a porta atrás de mim e voltei a cair no chão. Não podia acreditar. O que estava acontecendo? Meu corpo se transformara! Eu não era mais uma mulher, mas um homem! Como era possível?

            Devia ter passado muito tempo até que consegui me olhar no espelho novamente. Meus olhos castanhos agora eram verdes. Meu nariz que sempre fora pequeno agora era protuberante. Meus cabelos claros agora eram castanhos escuros. Apalpei-me, ainda incrédula.

— Não é possível...!

            Tentei não falar demais, pois ouvir minha própria voz soava como se eu não a estivesse dizendo. Era muito estranho. Corri para meu quarto. Liguei a luz e olhei para a hora. Já se passara das nove e meia da manhã. Ainda muito trêmula e confusa, olhei para meu corpo. Minha camiseta estava muito apertada em mim, especialmente meu short. Meus braços peludos não paravam de tremer.

            Deus do céu! Eu virara homem!


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