Eu sou... Scarlet Flawless escrita por lljj


Capítulo 3
Diva




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A temporada de eventos sociais de Sina era a época mais aguardada do ano. Carruagens grandes e luxuosas enxameavam as ruas, levando os nobres de um recital para o teatro, do teatro para um festival, do festival para um baile e assim por diante num fluxo de programações infinitas. Na disputa pelo título de melhor anfitrião, a nobreza buscava entre os plebeus quem podia oferecer os melhores produtos e serviços.

Ser a “queridinha da nobreza” transformou Scarlet na sensação da temporada.

Os pedidos de contrato chegaram a cada hora; às vezes, dois ou três juntos. Passe livre para os círculos mais seletos da Muralha Sina, seus segredos e escândalos como adição.

— É oficial, capitão — comentei ao me sentar no banco oposto da carruagem vazia. Erwin fechou a porta e a diligência começou a andar. — Lorde Lobov já protocolou seu afastamento do cargo. O comunicado será dado na próxima sessão do parlamento.

Para minha decepção, a escuridão da cabine encobriu a expressão de Erwin diante da notícia, apenas sua silhueta era visível. De chapéu e roupas civis, ele passou como um simples trabalhador a caminho de casa. Precisei de um pouco mais de produção para atingir o mesmo grau de naturalidade.

Depositei a sacola de palha no espaço apertado entre nossos pés. As ferramentas dentro dela tiniram um barulho metálico. Meus ombros arderam por carregar a porcaria pesada, mas, como Hick pontuou mais cedo, tornou o disfarce convincente. Ninguém esperaria ver Scarlet Flawless circulando de transporte público, vestida como um autêntico cavalariço.

Renzel morreria de desgosto só de imaginar.

— Aonde conseguiu essa informação?

A curiosidade presente na pergunta ergueu os cantos dos meus lábios. O Erwin adulto era um bloco de impassibilidade na maior parte do tempo. Instigar qualquer reação, por menor que fosse, era... interessante.

— Catherine Fischer.

Uma batida de silêncio.

— Fischer como Gilbert Fischer? O secretário de Lobov?

Maldita escuridão. Eu realmente queria ver a cara dele agora.

— Catherine é uma dama rica e desocupada. Falar sobre as turbulências do trabalho do marido é a parte mais emocionante do dia dela.

— Bom. — Uma única palavra, com uma única sílaba, pronunciada por um único milissegundo, mas meu cérebro jurou identificar contentamento, admiração e uma pitada de diversão ali.

— Já tenho provas suficientes contra Lobov. — A cabeça de Erwin virou para a janela, sua voz assumiu um tom contemplativo. — Ele encobriu seu rastro por muitos anos, mas agora está encurralado. É só uma questão de tempo até ele pagar por seus crimes.

A inocência por trás do pensamento dele era digna daquele garoto idealista do passado. Um garoto nascido e criado na Muralha Rose que acreditou com todas as forças que havia justiça no universo.

— Você está em Sina, capitão. Criminoso ou não, lorde Lobov ainda é um nobre. Não há a menor possibilidade dele ser condenado por suas ações. Isso se ele sequer for julgado.

Erwin voltou a cabeça em minha direção.

— O comandante Zackly pode ter uma opinião diferente sobre isso.

Comandante-geral Darius Zackly? Erwin levou isso para outros patamares. Mesmo assim...

— Um nobre só pode ser julgado por outros nobres. Zackly é o comandante e tudo mais, mas é tão plebeu quanto você e eu. O máximo que ele pode fazer é abrir uma investigação pública contra lorde Lobov. O escândalo por si só faria a boa sociedade ostracizar o lorde. — A diligência parou e dois passageiros embarcaram. Eles ocuparam os assentos do fundo da cabine. — O mais importante já aconteceu — sussurrei. — Lorde Lobov não é mais um problema para você. Livre-se dos assassinos.

O trio da cidade subterrânea contratado para matar Erwin ingressou na Tropa de Exploração há semanas. A razão para não estarem trancafiados a sete chaves era um enigma para meu pobre e sensato cérebro.

— Eles têm o potencial para ser grandes soldados um dia — disse Erwin em tom baixo. — Se sobreviverem à próxima expedição vão entrar para a tropa permanentemente.

Expedição. A palavra estampou manchetes nos últimos dias, porém carregou um peso diferente na boca de Erwin — real, tangível e assustador.

Sem a interferência do parlamento, os portões da Muralha Maria se abririam no próximo mês e a Tropa de Exploração avançaria para o desconhecido. Erwin, braço direito do comandante, na linha de frente.

Segundo os jornais, a maioria dos novatos morria na primeira expedição. Um fim trágico e doloroso nas mandíbulas dos titãs; seres gigantescos, com chifres de boi e couraça de osso, cuja saliva ácida derretia a carne humana em um raio de quinze metros de distância. A aparência e habilidade das criaturas possuíam outras versões, menos ou mais bizarras. A única informação irrefutável era que titãs devoravam pessoas.

Erwin, apesar de um veterano na Tropa de Exploração, ainda era uma pessoa.

Esta podia ser a última vez que eu o via.

Outro passageiro entrou, trazendo consigo o vento frio da noite. Sentou-se ao meu lado e cortou a conversa entre o capitão e eu. Nos minutos seguintes, somente o tamborilar dos cascos dos cavalos preencheu o silêncio.

A diligência seguiu pelas ruas mal iluminadas do subúrbio de Hermina. O distrito era famoso em Sina por seu efervescente cenário musical. Algo sobre ser a sede do Primeiro Templo das Muralhas, com seu tradicional coral sacro, aparentemente atraiu um grande número de músicos e cantores para Hermina décadas atrás. A religião era uma tendência em queda nos dias de hoje; já a musicalidade se estabeleceu como um traço tão forte que uma pessoa identificada como herminiana ouviria um “canta uma música pra gente ver se você tem talento” a qualquer hora do dia.

Mesmo tão tarde da noite, dezenas de casas de atração fervilharam em atividade nos bairros nobres, oferecendo aos ricos a cartela dos melhores artistas do distrito. No subúrbio o ritmo era mais pacato. Um único salão comunitário promoveu bailes e assembleias semanalmente. Os eventos terminavam antes da meia-noite e reuniam os mais variados tipos de pessoas.

A primeira apresentação da minha vida aconteceu nesse salão.

Uma noite de concurso de talentos. Lotação máxima. A timidez tentou me impedir de subir no palco. Rose segurou a minha mão com força e prometeu não soltar até o fim da canção. Ela estava tão confiante, distribuiu sorrisos para o público como uma verdadeira estrela. O carisma dela garantiu os pontos da nossa vitória. Os gritos de comemoração do tio Tom se sobressaíram em meio aos aplausos da plateia.

Uma noite mágica.

Hoje em dia os compromissos de Scarlet se concentravam nas áreas nobres de Hermina; bem longe do velho salão comunitário. O distrito também pouco me atraiu. Qualquer sensação de pertencimento se perdeu no dia em que tio Tom morreu.

Quando o passageiro ao meu lado desceu, resmunguei para Erwin:

— Na próxima, eu escolho o local de encontro. — Um bem distante de tantas memórias.

Erwin remexeu o interior do sobretudo e tirou um envelope.

— Não nos veremos tão cedo — informou ao entregá-lo para mim. — Vou voltar para Maria amanhã. Use o endereço do verso para me mandar suas correspondências. — O referido endereço estava no nome de um tal Frank Zimmer. — Aí dentro vai encontrar informações do seu alvo. Fique de olho nele daqui para frente.

A ordem sussurrada trouxe um tremor para as minhas mãos. Aquilo era sério. Muito sério. Sondar a nobreza antes era um ato calculadamente sútil. As coisas que fiz, as conversas que ouvi, não representaram uma ameaça para os lordes em geral. A proposta de Erwin extrapolou minha zona de segurança. Ambos podíamos acabar na forca por conspiração.

Era melhor valer o risco.

— Também tenho um presentinho para você. — Inclinei-me para frente, enfiando o envelope na sacola. Em seguida, apanhei a pasta de couro escondida entre as ferramentas e empurrei-a para o colo de Erwin. — Recebi esse dossiê de uma agência de detetives há alguns anos. Eles conduziram uma investigação preliminar sobre o caso de Rose e chegaram ao codinome Magnata.

Erwin guardou a pasta nas dobras do sobretudo.

— Magnata?

— O chefe do tráfico humano — esclareci, e era estranho verbalizar a informação após tanto tempo mantendo-a restrita a minha mente. — Ele comanda tudo das sombras, ninguém sabe sua verdadeira identidade. Na época, os detetives concluíram se tratar de um nobre poderoso e desistiram do caso.

Erwin meneou a cabeça como se tentasse estudar o meu rosto.

— Então você começou a procurar sozinha.

De repente, a escuridão era uma benção a se agradecer.

— É, isso aí... mas não serviu de muita coisa. Nunca encontrei informações sobre o Magnata ou os traficantes. — Infelizmente, afastar a dor da voz era tão difícil quanto do rosto. Rose se encontrava em algum lugar, nas mãos da escória mais cruel da humanidade, pagando o preço pela minha incompetência. — Pessoas somem todos os dias. São raptadas e somem. Ninguém além desses desgraçados pode dizer para onde elas são levadas.

— Vamos descobrir quem são. Acredite em mim.

Um feixe de luz escolheu aquele segundo para entrar pela janela e iluminar o rosto dele. A rigidez permaneceu lá, tornando sua expressão fria e distante, porém o azul em seus olhos ardeu com as chamas de uma determinação inabalável. A escuridão retornou logo em seguida. Restou apenas a cacofonia dos meus pensamentos.

Pelas Muralhas, isso era um sinal? Erwin estava destinado a localizar Rose, por isso nenhum outro, nem mesmo eu, conseguiu antes? Ou talvez eu estava destinada a ser feita de otária, por isso meu coração gaguejou dentro do peito tamanha a vontade de acreditar.

A diligência parou e os dois passageiros restantes desceram. O som de cascos voltou a dominar a cabine enquanto a carruagem seguiu para o trecho final da rota. Um milhão de palavras se acumularam em minha língua. Bobagens emotivas que sob nenhuma hipótese sairiam da boca de Scarlet Flawless.

Puxei a corda do sino para solicitar uma parada. Minhas emoções cresceram a um nível desconfortável demais para estar na presença de outra pessoa. Principalmente de Erwin.

— Boa sorte na expedição — murmurei, apanhando a sacola do chão. Mastiguei o lábio inferior na tentativa de suprimir qualquer outra palavra, mas a insegurança, essa velha companheira, me obrigou a acrescentar: — Tente não morrer, capitão.

Erwin guardou silêncio por um longo segundo, quase como se também lutasse para escolher as palavras.

— Mantenha contato — disse, por fim. — E não seja imprudente.

Contra todos os graus de nervosismo e tensão a me acometer, uma risada se infiltrou em minha respiração.

— Que belo conselho vindo de alguém prestes a sair das muralhas. — Olhei para ele por cima do ombro. — Se você tivesse um décimo da minha prudência, largaria esse trabalho.

A diligência parou sob a luminosidade dourada de um poste de óleo vegetal. A claridade mostrou a expressão séria de Erwin suavizar para um sorriso aberto, com direito a dentes brancos à mostra e olhos enrugados nos cantos.

O tremor sob meus pés podia ser obra da oscilação do veículo ou o mundo chacoalhando diante desse sorriso.

Meu voto para a segunda opção.

— Nesse caso — a qualidade divertida da voz dele aqueceu meu peito —, seja imprudente com moderação.

O calor se espalhou de um jeito reconfortante e constrangedor. A sensação bagunçou minha coordenação motora, me atrapalhei para abrir o trinco da porta. Quando abriu, saltei para a calçada e a droga da sacola pesada me desequilibrou. O tropeço desajeitado seria inoportuno em qualquer lugar, mas, aqui e agora, era tão vergonhoso que eu só queria abrir um buraco no chão e me enterrar nele.

Qual era o meu problema?

Erwin tocou a ponta do chapéu numa despedida silenciosa antes de fechar a porta da carruagem. O condutor, assentado na área externa, acenou uma das mãos e grunhiu um “boa noite”. A diligência desapareceu ao virar na esquina, mas meus pés permaneceram no mesmo lugar.

Qual era o meu problema?

Atrapalhada, emotiva e descontrolada... eu não era assim. Scarlet não era assim. Esses eram os traços da garota idiota cujos sentimentos sempre falaram mais alto que a razão. Ela precisou se foder muito até aprender que a vida não poupava os inocentes.

Espalmei a mão sobre o coração e o mandei se acalmar. Os sentimentos queriam pintar o mundo de cor-de-rosa; a realidade era preto no branco. Erwin não me procurou para reestabelecer um laço perdido. Ele queria uma informante para a Tropa de Exploração. Só isso. Nossa relação atual se pautou em um acordo de benefício mútuo. Uma troca de interesses. Um objetivo pelo outro.

E o meu objetivo era Rose.

Cada respiração a me prender na frustração constante dessa vida miserável era em nome dela. Minha irmã. Minha amiga. Meu verdadeiro e único amor. Ninguém faria por mim o que ela fez. Ninguém merecia a minha consideração além dela.

Para o inferno Erwin e seus sorrisos.

Eu só queria Rose.


*

 

— Senhoras e senhores, é um prazer imenso tê-los aqui para o recital anual da Casa Scherer — saudou o mestre de cerimônia. — Minhas sinceras felicitações a lorde e lady Scherer por organizarem um evento tão estupendo. — O casal anfitrião, sentado na primeira fila, acenou como se realmente tivesse feito algo além de contratar uma equipe de festas para cuidar da organização. — Peço que todos tomem seus assentos e apreciem as atrações. Para abrir esse grandioso espetáculo, temos aquela que tomou Sina de assalto com um timbre poderoso e canções arrebatadoras. Recebam, por favor, a incomparável Scarlet Flawless!

Aplausos tomaram o ambiente. Respirei fundo. Scarlet é uma diva, a voz em minha mente insistiu em pontuar, uma diva perfeita. Ela canta com o corpo e a alma. A música exala por seus poros como perfume. Intoxicante. Se ela quiser que a plateia chore, haverão rios de lágrimas.

O violino iniciou uma lamuria lenta no canto do tablado. O violinista fechou os olhos e balançou a cabeça no ritmo da melodia. Os acordes ondularam sobre a multidão cintilante, sentada em ordenadas fileiras ao longo do salão.

Atrás das cortinas, o suor ameaçou arruinar minha maquiagem enquanto meu estômago deu guinadas furiosas com a maçã que Hick me obrigou a comer mais cedo. Anos de experiência não eram o bastante para diminuir o medo do palco.

A voz continuou: Se Scarlet quiser que a plateia ria, as pessoas convulsionarão em ataques de riso.

A melodia do violino cresceu em intensidade. As notas ricochetearam segundo os movimentos rápidos do braço de Ian. Os membros da banda assumiram suas posições. As ordens de Renzel eram sussurros abafados rondando às minhas costas.

Ah, mas se Scarlet quiser que a plateia se apaixone, terá um tapete vermelho estendido aos seus pés, composto pelo coração palpitante de todos os seus admiradores.

A lembrança de uma risada me atingiu.

Credo, Rose! Que tipo de mulher quer andar em cima de corações palpitantes?

Um sorriso ferino acompanhou a resposta: Scarlet é esse tipo de mulher, então não se iluda, minha irmã. Ela é perversa. Tão perversa que você estará apaixonada demais para se importar.

O estrondo dos tambores sobrepujou o som do violino. O ritmo poderoso silenciou as lembranças. O meu eu se retirou, cedeu lugar a uma mulher perversa.

Com dois passos longos e firmes, o centro do tablado se tornou meu domínio. Braços abertos para receber a luz e as palmas. O sorriso frouxo, colado em lábios pintados de carmim, ofertei aos expectadores que gritaram meu nome.

Scarlet, Scarlet, Scarlet.

Por dez segundos permaneci estática, silenciosa, permitindo ao mundo um bom olhar sobre a minha imagem meticulosamente construída. O vermelho vibrante do vestido serviu para atrair a atenção, o decote cavado era para aprisioná-la. O tecido fino abraçou e evidenciou cada curva antes de se abrir nos joelhos como uma cauda de sereia. Os cabelos escovados para trás destacavam à maquiagem no rosto, feita para transformar os olhos em armas de sedução.

Sim, Scarlet era sinônimo de confiança e ousadia. Nada de nervosismo, nada de falhas. Perfeição, esse era o lema dela e eu morreria antes de desonrá-lo.

As três coristas se posicionaram à minha direita; trajavam modelitos semelhantes ao meu, embora mais discretos. As batidas da percussão declinaram suavemente.

Hora de brilhar, Scarlet.

Eu me sinto tão sexy — ronronei numa nota cadenciada. — Quero te ouvir chamar o meu nome.

Assovios pipocaram pelo salão. A fachada tradicionalista da nobreza caiu por terra nessas situações. No dia seguinte, essas mesmas pessoas poderiam enviar denúncias ao comitê do distrito sobre o teor sensual das letras.

Hipócritas.

Se você quer estar do meu lado, precisa descobrir como me alcançar.

As coristas entraram na canção. Bete, a voz aguda e aerada, fugiu de casa para escapar de um pai abusivo. Kendra, de entonação encorpada e volumosa, costumava cantar em bares em troca de bebida. Abigail, o contralto potente e rouco, era uma imigrante ilegal da Muralha Rose. Cada passado se escondeu atrás de sorrisos radiantes. O que foram e o que eram, o que sofreram e o que sofriam, deixou de importar quando subiram no palco.

Meu bem, posso ser a sua garota perversa. Sua luz escaldante. Sua maior aflição. Venha me chamar de amor.

Os instrumentistas ocuparam os fundos do tablado. Ian, o violinista, era o filho bastardo de um rico comerciante. Alleyne e Konrad, os percursionistas, lutavam contra a má fama após anos como batedores de carteira. Erick, o flautista, foi rejeitado pela família quando assumiu uma identidade masculina. E tinha Renzel, empresário e maestro, cujo histórico decadente só não se comparou ao seu talento musical. Todos vestiam ternos sob medida e irradiaram altivez para a plateia que cuspiria em suas faces caso a ocasião fosse outra.

E havia Scarlet, a vocalista criada para personificar o conceito de diva perfeita.

Zombei da ideia quando Rose elaborou o que uma “diva perfeita” seria. Aos treze anos, eu acreditava piamente que a base de um verdadeiro artista era a sinceridade. Perseguir a inalcançável perfeição tornaria a arte engessada, artificial. Debatemos o assunto à exaustão. No fim, chegamos a um acordo: Rose seria a parte perfeita do nosso conjunto, aquela a inspirar paixões e esbanjar um carisma calculado. Eu seria a parte sincera, a empregar profundidade e emoção às atitudes da outra. Os dois lados andariam juntos, complementando-se, formando assim a persona batizada de Scarlet Flawless.

Nada saiu como o planejado.

Ao término da música de abertura contemplei o amplo salão de teto alto. A luz forte do sol da tarde se infiltrou pelas janelas largas e refletiu nas paredes brancas até encher o ambiente. A nata da sociedade de Sina manteve o olhar preso em mim. Expressões abertas e admiradas, tomadas de expectativa pela próxima canção.

E eu odiei cada segundo.

Esse era o sonho de Rose. Por que Rose não estava aqui?

— Queridos, é um prazer fazer parte deste maravilhoso evento. — A frase habitual de qualquer apresentação. — Meus agradecimentos a lorde e lady Scherer pela oportunidade. — O casal inchou em seus assentos como uma verdadeira dupla de pavões. — Mas eu tenho uma reclamação...

Um pulsar de agitação correu através da plateia. O olhar satisfeito dos anfitriões se estreitou em censura ao me encarar. Indiferente, caminhei bamboleando os quadris até as coristas. Passos lentos e ensaiados enquanto o burburinho cresceu entre os convidados. Parei ao lado de Bete e apoiei o braço no ombro dela.

— Meninas, não acham que essa plateia está muito desanimada?

O trio soltou muxoxos decepcionados para concordar. A frequência do ato as tornou mestres em esboçar uma tristeza dolorida. Próximo a lateral do tablado, Renzel ergueu o polegar para sinalizar que os instrumentistas estavam prontos para a próxima canção.

Retornei à área central no mesmo caminhar lânguido.

— Tenho uma ideia para melhorar isso, mas vou precisar da ajuda de cada um de vocês. Me acompanhem! — Bati palmas em um compasso simples e incitei o público a imitar. Aos poucos, com incentivos sorridentes, dezenas de mãos entraram no ritmo. — Isso mesmo! Assim está ficando ótimo. Continuem. — A acústica do salão transportou minha voz acima do barulho crescente. — A próxima canção é uma das novas adições do meu repertório. É uma música divertida e eu a adoro, então vamos cantar juntos.

Os tambores ressurgiram para bobear energia ao ritmo iniciado pelas palmas. Um trompete entrou na música estalando notas agudas. As coristas alinharam suas posturas. Eu escancarei um sorriso.

— Um, dois, três e vamos lá!


*

 

Uma hora depois, mais um êxito entrou para o currículo de sucessos de Scarlet. A plateia aplaudiu de pé. Os anfitriões resplandeceram sorrisos como se também merecessem crédito pelo trabalho musical. Nobres. Agradeci o reconhecimento soprando beijos no ar antes de escapar pela lateral do tablado. O mestre de cerimônias anunciou uma pausa de vinte minutos. Outro artista assumiria a função de entretenimento mais tarde.

Os convidados se espalharam. Minha banda se apressou a recolher os instrumentos e partir pela saída dos fundos. Um ou outro lançou olhares desejosos para a longa mesa de buffet recheada por travessas de petiscos refinados e jarras de bebidas coloridas das quais nenhum deles poderia provar. Os nobres apreciavam os talentos da plebe, mas compartilhar a refeição com um simples percursionista era pedir demais.

Suspirando, olhei ao redor. O tempo era limitado e meu alvo estava em algum lugar do salão.

Pelo menos uma vez a sorte podia facilitar as coisas para mim. Mas não, claro que não. Entre as dúzias de nobres na lista negra de Erwin, o primeiro tinha quer ser logo lorde Silas Becker, o fanático religioso.

Fazia sentido ficar de olho nele. Lorde Becker era o substituto perfeito de lorde Lobov como líder da oposição no parlamento. Ambos os nobres compartilharam o desejo de extinguir a Tropa de Exploração, porém, enquanto lorde Lobov só queria embolsar mais dinheiro, lorde Becker pertencia à Fé das Muralhas. Para ele, as expedições eram uma blasfêmia.

A escolha de alvo de Erwin demonstrou astúcia, o que não me impedia de odiá-la. Não havia nada nesse mundo pior que fanáticos; os religiosos, em especial, eram uma raça maldita. Há tempos eu evitava qualquer contato com eles. Ser considerada uma emissária da imoralidade ajudou a mantê-los afastados. Agora, caminhei em direção a um deles com um sorriso no rosto.

— Com licença, lady Silas Becker — chamei suavemente. O olhar incisivo da mulher voou direto para o decote do meu vestido. O nariz dela enrugou com nojo mal disfarçado. Os cabelos castanhos e curtos emolduravam um rosto rechonchudo, cujas linhas de expressão falavam sobre abstinência de sorrisos. Baixinha e roliça, usava um vestido simples, de gola alta e mangas compridas, no mais maçante tom de azul, que de forma alguma dava pistas de sua conhecida riqueza. O único destaque de sua aparência eram as três tiras de ouro maciço a envolver seu pescoço. Nelas estavam as insígnias das muralhas, ou melhor, das deusas: Sina, Rose e Maria. — Fomos apresentadas na recepção de casamento de lorde Bauman no ano passado. Lembra-se de mim?

Dez segundos completos transcorreram em um silêncio pesado.

— Imagino ser impossível esquecer uma mulher do seu tipo.

O comentário era tudo, menos um elogio. Mesmo assim, levei a frase para a outra perspectiva.

— Estou feliz por causar uma boa impressão, milady. — Lady Becker era esposa de lorde Silas Becker e representou o caminho mais rápido para alcançar o parlamentar. Só aceitei participar do recital porque lady Scherer, anfitriã do evento e irmã mais nova de lady Becker, confirmou a presença dela. Sua arrogância não me intimidaria. — O que achou até agora? — questionei, cordial, indicando o palco.

Lady Becker ergueu uma finíssima sobrancelha.

— Ainda espero ouvir algo semelhante a música nesse suposto recital musical.

Minhas costas enrijeceram. O que essa filha da puta entendia de música? Ela cantou em algum coral? Tocou algum instrumento? Compôs alguma canção? Eu fazia isso desde os sete anos de idade.

— Milady... — comecei, sem saber ao certo como continuar. Xingá-la não era parte do plano de aproximação; ser hostilizada de modo tão descarado também não era. Ela demonstrou razoável civilidade quando nos apresentaram. Por que estava sendo tão estúpida agora?

— Pelas Muralhas! — Alguém exclamou atrás de mim. — É você mesmo!

Por sobre o ombro observei uma garota se aproximar. Aparentava uns quinze anos de idade e era o exemplo perfeito de uma jovem lady: a compleição pequena e esguia, a pele de um branco tão puro que pareceu nunca ter sido exposta à luz do sol, cabelos loiro-dourados bem escovados e uma graciosidade a irradiar de cada movimento. Linda, embora usasse um vestido idêntico ao de lady Becker, com aquele colar enorme dos fiéis religiosos no pescoço. Trazia nas mãos dois copos de refresco.

Quando a menina chegou perto o suficiente, lady Becker ralhou:

— Helen, não grite! Quantas vezes tenho que repetir?

— Mil perdões, mamãe — desculpou-se, ainda falando dois volumes acima do necessário. — É só que... Scarlet Flawless! Olha só pra você... — Os olhos acinzentados desceram e subiram pela extensão do meu corpo. — Você é deslumbrante!

Sair da frieza hostil de lady Becker e cair no calor exuberante da jovem me rendeu uma leve vertigem.

— Obrigada...?

— Oh, a senhorita deve estar cansada. Aqui, tome essa limonada. — Lady Helen empurrou um dos copos para mim. — A senhorita foi tão fantástica. Sua voz é belíssima. E a interpretação? Puxa, nem se fala! Meus olhos encheram de lágrimas quando cantou Ressentimento e eu nunca sequer namorei.

— Helen — rosnou Rowena entre dentes. — Contenha-se.

— Ah, sim, me desculpe, me desculpe. Tome seu refresco, mamãe. — Ela entregou o segundo copo para lady Becker; depois, com uma surpresa teatral, declarou: — Minha nossa, fiquei sem limonada. Preciso voltar ao buffet. Senhorita Scarlet, pode me acompanhar?

O sorriso cheio de dentes brancos e expectativa me pegou desprevenida. De onde saiu essa garota?

— Claro que sim, vamos lá.

Ela bateu palmas. Literalmente. Meia dúzia de pessoas se viraram para olhar. Lady Becker pareceu a beira de um colapso nervoso.

— Helen!

Antes de outra repreensão, a garota enlaçou seu braço ao meu e me puxou para longe. Uma risada travessa sacudiu seus ombros.

— Estou tão feliz por conhecê-la, senhorita Scarlet — declarou, sem fôlego. — Sou uma grande admiradora.

— Fico honrada, milady.

— Por favor, me chame de Helen — pediu, e, dessa vez, lady Becker certamente enfartaria de justa indignação. Uma jovem lady respeitável não devia dar tanta liberdade para uma plebeia com a fama de Scarlet. — Sempre quis assistir uma de suas apresentações. Achei que estava sonhando quando tia Clarissa disse que chamaria você para abrir o recital. Estou há dias sem dormir de ansiedade!

Fiquei sem palavras. Apenas... sem palavras.

— Tenho todas as suas canções anotadas no diário. Quer dizer, todas as que os jornais publicaram. — Sorriu. — No início, achei que fossem poemas escritos pelos jornalistas. Fiquei admirada quando descobri que eram composições musicais. Feitas por uma mulher de verdade! É tão incrível!

— Não consigo imaginar lady Becker aprovando isso.

O peso do olhar da velha queimou buracos em minhas costas.

Paramos diante da mesa de refrescos. Lady Helen direcionou um sorriso culpado para a mãe, do outro lado do salão.

— Ela não aprova, por isso transcrevo as canções no meu diário, assim ela não joga fora como faz com os jornais. — Demonstrou muito orgulho de si mesma, provavelmente era o máximo de rebeldia ao seu alcance.

Pobre menina ingênua.

— Tem uma canção preferida? — questionei, e beberiquei o refresco. Uma coisa cítrica, limão ou laranja, misturada à chá frio de capim-cidreira. Seria gostoso se a quantidade de açúcar fosse para incrementar o sabor, não reafirmar a riqueza dos anfitriões. Meus dentes apodreceriam antes de chegar ao fim do copo.

Lady Helen franziu as sobrancelhas pensativamente e se serviu do mesmo suco esverdeado.

— Ai, que pergunta difícil! Sempre que encontro uma canção nova ela se torna a minha preferida. A última foi Perigosamente Apaixonada, mas... Qual o nome da quinta canção que a senhorita cantou hoje?

Repassei o repertório na cabeça.

— Doces Sonhos.

— Eu a adorei! É romântica e animada, mas um pouco melancólica também. Encontrar seu amor apenas em sonhos... — Ela exalou um suspiro pesado, em seguida, uma risadinha. — A senhorita tem uma canção para cada um dos meus sentimentos. Será que todas as mulheres apaixonadas são iguais?

Na verdade, Doces Sonhos teria uma essência desoladora se Renzel não insistisse em transformá-la numa balada melosa. Rose era a única em meus pensamentos quando a escrevi, porém, assim que Helen lançou a pergunta, quem ocupou a minha mente foi Erwin e seu inesperado sorriso sob a luz do poste.

— Mulheres apaixonadas são idiotas. — Encarei o fundo do copo em busca de uma explicação para a pontada repentina no meu peito. — Então, sim, são todas iguais.

Lady Helen soltou outra risada curta e estridente. Uma matrona de cabelos grisalhos lançou um olhar crítico para ela. A garota cobriu a boca com a mão e acenou um pedido de desculpas.

Eu também queria rir, mas de pura frustração.

Lady Becker devia ser a ponte para o lorde Silas Becker. Eu me preparei mentalmente para a possibilidade de acabar em um dos odiosos cultos dos adoradores das muralhas como consequência. Contudo, lady Helen apresentou um caminho diferente; mais fácil e mais difícil em medidas iguais.

— Senhoras e senhores — o mestre de cerimônia chamou do tablado. Um novo conjunto de instrumentistas ocupou o espaço. — Por favor, retornem aos seus assentos. A próxima atração está prestes a começar.

Lady Helen se agitou com a notícia.

— O intervalo já acabou? Passou tão rápido! — Abandonou o refresco intocado para segurar minha mão entre as dela. — Não falamos sobre quase nada. Nem perguntei qual é sua comida preferida, ou onde nasceu ou se seria muito atrevimento chamá-la apenas de Scarlet.

Pelas Muralhas, era uma piada?

— Você é a nobre aqui — lembrei —, pode me chamar do que quiser. De qualquer forma, podemos nos encontrar novamente, caso queira. Gostei de você.

Um sorriso largo tomou o rosto dela ao mesmo passo que uma mancha se alastrou em minha consciência.

— Fico honrada, Scarlet. — Constrangimento, deleite e uma umidade suspeita dançaram em seus olhos. — Você é a mulher mais incrível do mundo. Fico realmente honrada.

Meu interior se retorceu com um sentimento estranho. A palavra culpa brotou em meus pensamentos, mas eu jamais a usaria em contextos que não envolviam Rose.

Rose era a única com quem eu me importava.


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