Legado De Poder escrita por Merophe


Capítulo 4
IV




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Era apenas um segredo que Gigi ouviu na noite passada. Ao retornar a empregada, ela percebeu que não era nada, mas mesmo assim associou os sussurros na sala de estudo a uma conversa de Enrico. Entendeu que era um pedido para a santa sobre alguém, mas não conseguiu ouvir claramente devido à voz fanhosa que falhava na oração. Tinha um pai muito sensível, que podia chorar com frequência por qualquer coisa que lhe provocasse pena; era um homem bastante envolvido com os sentimentos. Poderia ainda estar ressentido por não vê-lo logo pela manhã na sala de estudo. Após as orações matinais, ele costumava ocupar-se na sala, jogando xadrez com sua “dupla invisível”, folheando alguns livros na estante e contemplando o sol pela janela. Movimentava-se para cima e para baixo, o que servia como um exercício físico, mas, no fim das contas, passava o dia todo ocioso dentro de casa. Era difícil para ele fazer amigos, e Giane era igualmente reservada.

Costumava ler algum livro pela manhã e descia mais cedo para verificar a disposição da sala de estudo, deixando a porta entreaberta para que Enrico soubesse que o local já estava em uso.

Todas as vezes era assim, sem interrupções. Às vezes, através da fresta, via alguém passando, mas ninguém parava para bater na porta e pedir para compartilhar o cômodo. Giane deixou de completar a leitura quando ergueu a cabeça ao ouvir uma batida na porta.

— Posso entrar?

Era comum Enrico pedir permissão a garota para entrar nos cômodos da própria casa. Tinha a convicção de que poderia ganhar um pouco de consideração da filha mostrando respeito e não impondo ordens.

Nem foi necessário responder com o sim ou com não, quando ele já estava escolhendo um assento num dos braços do sofá chesterfield.

— Preciso conversar com você.

Provavelmente era algo sério. Giane percebia sua timidez quando ele começava a esfregar as palmas das mãos e apalpar os dedos, um comportamento típico quando o assunto envolvia a garota.

Enquanto marcava a página com os dedos, ela observou sua cabeça se inclinando, como se ele tivesse desistido de falar de imediato.

— Se lembra quando eu falei da sua mãe?

Enrico olhou a garota raspando a unha na capa do livro.

— Faz tempo.

Foi difícil para ele compreender a voz baixa e quase desanimada da filha. Apertou as mãos com indecisão, tentando começar pelo mais simples.

— Eu nunca fui casado com ela.

Enrico não teve coragem de encarar a garota nos olhos e manteve a cabeça baixa, demonstrando arrependimento. Da mesma forma, Giane não levantou o rosto, escondendo-o por trás das madeixas escuras que caíam de um lado do ombro.

— Nunca conheci direito a sua mãe.

Enrico conseguia perceber quando a garota tentava disfarçar o choro, mesmo ao esconder-se por trás das mechas. Era um hábito que ela tinha desde criança.

— Não tive uma vida muito certa.

Ele pareceu indeciso ao ver a garota mexendo o braço, enquanto ela fechava completamente o livro, passando a palma no rosto. Enrico abaixou a cabeça, cedendo novamente ao receio; não tinha como continuar mais com o engano. Não seria justo fazer a garota chorar sem motivo.

Apertou as mãos com firmeza, buscando transmitir maior convicção.

— Eu não queria perder você, mas está sendo necessário te dizer a verdade.

A verdade seria o melhor para todos. Não haveria necessidade de enganar sobre o passado – a mãe desconhecida, o pai falecido – e Enrico, que era parte de uma máfia. Enrico sabia que dizer a verdade significaria ser perdoado, também pela santa. Era um ato de redenção para si mesmo, pois por tanto tempo iludiu uma inocente, fazendo-se passar por pai, embora nunca estivesse verdadeiramente presente. No início da fé, foi assim: a carne, ainda acostumada à cobiça de Monte dos Reis, falhava constantemente. Difícil ouvir um sermão quando a mente está relembrando das fraquezas. Nunca fora realmente um homem correto, apesar da boa conduta demonstrada, dos bons modos e da aparência impecável daqueles tempos — que ainda permaneciam apesar do semblante mais humilde e barato. Fraquejou muito ao considerar voltar para Monte dos Reis, deixar a menina de vez na catedral e esquecer o acordo com o amigo. Os efeitos da conversão foram profundos; a vida de fé não era para qualquer um, exigia renúncia aos pecados e às mentiras, que Enrico jamais poderia renegar. Pelo contrário, ele precisava da mentira para viver, precisava ser conivente com o pecado por causa do amigo. Isso não era salvação.

Perdeu o contato com a menina muito cedo, embora desde os primeiros meses já demonstrasse ser descuidado. Sempre arrumava alguém para alimentá-la, acalentá-la e fazer o que fosse preciso para acalmá-la quando chorava. Nunca pensou em ter filhos, e sabia como enganar bem aqueles que o questionavam sobre uma família, inventando rapidamente que o trauma da traição do pai foi a causa de sua aversão à paternidade. A menina cresceu considerando os outros como pai e mãe; contava tudo o que precisava a um e a outro. O pai nunca foi capaz de ouvi-la, e na verdade nunca a amou de verdade.

Enrico bem que suspeitou dos pensamentos da garota e tentou se aproximar de forma inútil, recebendo apenas sua frieza. Não era mais o mesmo homem; sabia reconhecer que nunca tinha feito nada para conquistar a admiração da garota, nem mesmo fora um bom pai. A redenção não o livrou das consequências. E pouco o livraria deste momento, Deus era justo também com os que tinham sido pequeninos.

Não demorou para Enrico voltar ao silêncio, abaixando a cabeça, sem ter mais o que dizer na sala vazia.

 

 

Em conformidade com as ordens de Lorenzo, Ettore partiu cedo em direção ao monte Maravista. O local recebeu esse nome devido à beleza da encosta banhada pelo mar cristalino. Era uma área movimentada, frequentada por pescadores e turistas, mas isso apenas nos bons tempos, quando os Rosa Azul não utilizavam o monte para suas reuniões. Foi imediatamente que o monte ficou vazio e parado, quando os Rosa Azul ergueram um castelo na encosta, tornando-o o local dos frequentes encontros da Sociedade. Conforme as informações divulgadas na cidade, a máfia de Monte dos Reis era única. As investigações revelaram que alguns dos membros capturados tinham ligações entre si. A mídia passou a se referir à máfia como Sociedade, embora ainda não conhecesse seu verdadeiro nome. Ao conhecerem o nome atribuído à máfia pela cidade normal, os Rosa Azul decidiram adotá-lo entre si.

Rocca d’Argento, mais conhecida como Fortaleza de Prata, era o local dos encontros da Sociedade. Tinham reuniões frequentes durante a noite, o que justificava o nome do castelo. A lua se erguia sobre o monte, sem nenhuma nuvem a cobrindo, brilhante e prateada, também uma posse dos Rosa Azul. Não era apenas a luz da lua que decorava a Fortaleza de Prata. À primeira vista, durante o dia, parecia apenas uma construção clássica, com guarda-corpos de ferro fundido nos andares e na varanda aberta do último andar, além de toldos fixos de ferro sobre as janelas. Em uma das janelas sanfonadas, foi colocado um mastro com a bandeira italiana. No início, a escadaria se dividia em três porções separadas, levando ao átrio elevado e cimentado da entrada. Ao longo da balaustrada de pedra no átrio, enormes vasos com buxos adornavam o caminho. Descendo em direção aos jardins, os buxos se multiplicavam em círculos e espirais longos, acompanhados por uma profusão de azaleias ornamentais. Durante a noite, essas flores eram iluminadas pelos balizadores, criando uma atmosfera encantadora.

Encostado na balaustrada, Ettore avistou alguém se aproximando antes mesmo de alcançar o átrio. Fingiu não perceber quem era assim que identificou o rosto.

— O que está fazendo aqui?

— O mesmo que você. Recebi ordens.

Não era difícil perceber que Kadu era o informante de Eliane. O rapaz era conhecido por todos, mas raramente lhe pediam favores. Pasini compareceu à reunião no castelo, vivia sendo controlado o tempo todo pela esposa, apesar de ser um pouco gordo, mediano e calvo. Não havia motivos para Eliane ainda sondar o paradeiro do marido. Ela não corria o risco de ser traída, como pensava, mas nunca abria mão do missionário para rastrear os passos. Não só descobria o paradeiro do marido, mas também obtinha informações. Pressionava o rapaz para estar sempre atualizada, e a visita de Kadu à Fortaleza de Prata não seria diferente.

Ettore não disse mais nada; desconfiava bastante do rapaz, que aprendera a ser astuto como a dona. Muita gentileza não o enganava; mantinha a boa aparência de propósito, fazendo de tudo para que as vítimas sentissem simpatia e o considerassem bem. Servia de corpo e alma a um diabo. Não era apenas por causa de Eliane que Ettore não tinha muita afeição pelo rapaz. Ele demonstrava ser muito sonso, e Ettore odiava aqueles que agiam com falsa mansidão. Preferia a franqueza, o papo reto e pouca aproximação.

— Eu tenho uma patroa ciumenta. — A boca larga e sorridente do rapaz incomodou Ettore.

— Tem ciúmes mais pelo dinheiro. Acho que a maioria se enganou sobre quem é realmente o diabo de Monte dos Reis.

Ettore se afastou da balaustrada ao sentir o tremor no bolso. Ao atender a ligação, percebeu que algo havia acontecido em Pormadre.

 

 

Foi o mordomo quem avisou sobre a saída da garota. Não disse muita coisa, apenas mencionou que ela tinha a intenção de sair para algum lugar. Conhecia muito pouco a cidade e geralmente saía apenas acompanhada. Nas poucas vezes em que saía de carro, percebia que as ruas do bairro estavam vazias, com muitos casarões aparentemente abandonados por algum tempo. No entanto, a peculiaridade do lugar era compensada pelo aroma das laranjeiras e dos limoeiros que adornavam a rua. Frutos maduros às vezes caíam dos galhos, descendo pela ladeira, enquanto as folhas se acumulavam para serem queimadas no final da tarde. Era um bairro simples, com ruas estreitas e uma convivência tranquila.

Parecia ser um lugar bom para a menina; inicialmente, parecia ser apenas um bairro com dois moradores, mas Enrico não confiava nas ruelas, imaginando quem poderia estar à espreita naquele momento.

— Isto é culpa sua.

Depois de muito insistir na ligação, Enrico conseguiu conversar com Lorenzo.

— Se acontecer alguma coisa com ela...

— Vai usar a palavra de Deus contra mim?

Enrico freou a língua após se dar conta do que havia dito. Um convertido não fazia justiça com as próprias mãos; esperava o tempo de Deus.

— Já foram procurar a sua filha. Pense mais antes de falar, Monte dos Reis ainda precisa dela.

Não seria bom insistir em debater com Lorenzo quando sua voz já se tornava agressiva. Desligar a ligação sem ao menos se despedir foi a opção preferível para Enrico. Sem demora, a outra chamada foi completada, desta vez para Ettore que preferiu seguir direto para a cidade. Antes disso, recebeu de Enrico a informação sobre a localização da catedral; suspeitavam que a moça pudesse estar se escondendo lá. Desde a entrada, um calafrio começou a subir pela espinha, afinal, um diabo não se sentia confortável em um ambiente tão cheio de fé. Aproximou-se do altar, já se sentindo inseguro com as imagens no teto. Achou que o céu ilustrado parecia excessivamente ornamentado com os detalhes de ouro fino. Além do sândalo frágil sendo levantado pelo incensário, viu-se a caldeirinha da água benta e os candelabros próximos à cruz da procissão.

O rapaz não pôde evitar de rir ao imaginar Enrico no meio de uma procissão, dando salvas à Virgem Maria e erguendo uma vela na mão. Isso era algo com que Enrico poderia estar acostumado, tentando obrigar os outros a fazerem também. Constantemente, ele tentava converter o rapaz, falando muito sobre a Bíblia, recitando versículos com fervor, e até se humilhando para que o rapaz acreditasse em Deus. Ettore nunca levava a sério as conversas e os conselhos, embora desse atenção por respeito. Enrico não tinha amigos, e quando encontrava alguém disposto a conversar, revelava muito do seu bom coração.

Dava para ver que era uma pessoa diferente daquela que havia contado pouco ao rapaz; Deus e a santa eram as coisas mais sagradas para ele.

Mas onde estava o Deus bom de Enrico quando ele havia ficado desamparado?

Descobriu o significado de família de forma desorganizada: nunca viu o pai e evitava quase sempre falar sobre a mãe. Foi um filho duvidoso na paternidade. Teve conhecimento mais tarde de que a família do pai não suportava a sua mãe e coagiram que Ettore fosse filho de outro.

Não parecia ser a mesma coisa do caso de Vincenzo. O pai, pertencente a uma família religiosa, estava noivo quando se envolveu com a mãe de Ettore. Enganou-a, ocultando seu estado civil e o fato de frequentar uma igreja. A gravidez complicou tudo. O rapaz negou a paternidade, concordando com as acusações da família. Ofereceu dinheiro, mesmo sem poder, para evitar um escândalo com a família da noiva. Não chegando a um acordo, a família do pai pressionou com ameaças por um bom tempo.

A avó foi a principal presença na vida de Ettore. A mãe, por ter arrumado um trabalho distante, aparecia nos finais de semana. Com o tempo, as visitas dela foram diminuindo, e a avó começou a desconfiar de um novo relacionamento. A verdade era que o homem em questão tinha recursos financeiros, e, com medo de perdê-lo, a mãe de Ettore ocultou a existência do filho. Mesmo assim, ela admitia que qualquer pouco que conseguisse seria para o garoto. Entendeu a rejeição da mãe quando cresceu, dando razão à família do pai de que a mulher não valia nada. Preferiu trocar o filho por alguém que nem conhecia. Resolveu sair o mais rápido da casa da avó, atendendo aos vários pedidos dos tios, que não aceitaram a situação da criança deixada com ela. Arrumou uma namorada do Paraguai após uma viagem ao país, trouxe a mulher para a Itália, dispôs um sobrado alugado, mas a relação não durou muito. Tendo perdido o emprego mais tarde, passou a viver na rua, contou com a ajuda de Enrico e, finalmente, foi embora de vez para Monte dos Reis.

Acreditar em Deus era como uma muleta para os fracos, uma desculpa para sua própria inércia e falta de vontade de agir. Qualquer um poderia ser Deus.

Após sair da catedral, o rapaz fez outra ligação para Enrico.

— Ela não está aqui.

— Volte à noite, é festa de quermesse.

Realmente, haveria festa na cidade. As bandeirinhas coloridas alcançavam até os dois rios principais. Muitos balões vermelhos foram pendurados em cima das pontes; alguns soltos foram arrebatados para o céu. As barracas temáticas também fariam parte da distração. Em algumas mesas de piquenique, colocaram regadores com orquídeas, girassóis e lavanda. Acrescentaram as luzes de cordas além dos postes de iluminação simples, envolvidos por algumas fitas.

Ettore não acreditava que poderia reconhecer a garota no meio da multidão. Voltou à praça à noite, e a festa já estava lotada. Ele permaneceu ao lado de uma pipoqueira, observando as pessoas ao redor.

— Não faz sentido de ela estar por aqui.

Ettore se afastou da pipoqueira para ouvir melhor o que Enrico estava falando, tampando o ouvido após perceber o estalar dos fogos.

— Volte para a ponte.

— Ela sabe onde fica a ponte?

— Passávamos por lá depois da missa.

Ninguém se parecia com a moça que estava correndo no jardim, nem na praça, nem na ponte. Ettore retornou à catedral, que agora estava mais cheia de fiéis, mas mesmo assim não a encontrou. Ele contornou a parte de trás da catedral e ficou um tempo nas escadarias, até que o celular vibrou, despertando-o dos pensamentos.

— Não encontrei com ela. Vou falar com alguém da igreja e pedir que, caso encontrem alguma menina perdida procurando abrigo, entrem em contato comigo.


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Notas finais do capítulo

Olá, amantes de "Legado de Poder"!

Hoje trouxe um capítulo cheio de mistério e suspense, pois a nossa querida Herdeira desapareceu misteriosamente! Onde ela estará? O que teria acontecido? Preparem-se para se aventurar em busca de respostas, enquanto nossos personagens se desenrolam em decisões para encontrar a peça fundamental deste intricado quebra-cabeça. Será que ela está em perigo? Ou teria ela se aventurado por vontade própria em busca de mais respostas sobre o seu passado? Junte-se nesta emocionante jornada, onde cada capítulo guarda um mistério e cada passo nos aproxima dos segredos desta história épica! Estou ansiosa para compartilhar este novo capítulo com vocês. Até lá! ✨



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