Wizard and Thief escrita por Cassey Monstrance


Capítulo 1
Frio, paladino e Rei Mago




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 Há quem diga que eu e meu pai somos caipiras. Sem nos conhecer, nos julgam como estúpidos. Provavelmente porque não conheceram os caipiras de South Park. O pessoal dessa cidade tem uma burrice surreal.

 

 Eu e papai viemos do Texas. Há algum tempo somos só eu e ele: antes sob o sol, caminhando sobre a terra seca da nossa velha cidade, e agora lidando com o clima congelante e o gramado coberto de neve o tempo todo. Contrariando bastante o que esperam de nós, meu pai – ou Bryar Thomas, se preferir – trabalha com design digital, o que garantiu uma oportunidade de trabalho pra ele nesse fim de mundo.

 Quanto a mim, sou Lorrah Thomas, e tenho só dez anos. Foi sorte – pelo menos, pra mim – que tenhamos nos mudado pra cá durante as férias. Posso conhecer um pouco a cidade, me adaptar às diferenças e ao clima local.

 

 Depois de arrumar o meu quarto da melhor maneira possível e descer as escadas, dei uma última olhada no meu pai. Ele desempacotava os últimos itens de decoração da sala de estar. Por mais que me custe admitir, meu velho tem aquela aparência que usam pra justificar estereótipos sobre os rednecks: um cara de quase trinta anos, com cabelos e olhos castanhos, pele bronzeada, barba por fazer e (às vezes) uma postura que grita “olhe esquisito pra minha filha e arrebento você”. Não que isso me incomode; é bom me sentir segura. Papai estava como sou acostumada a vê-lo: calça jeans, botinas brilhantes, cinto com uma fivela de touro imensa, camisa listrada com mangas bem longas e seu boné da bandeira dos Confederados.

 Uma música country suave tocava do velho rádio que ele gostava de manter. A mesma canção com que quase o vi definhar quando mamãe nos deixou sem olhar para trás. Era bom saber que não doía mais.

 Quase consegui sentir o cheiro de casa. Da velha casa. Embora eu duvide muito, espero conseguir memórias melhores aqui.

 

 — De saída, Lo? — papai perguntou ao me ver aproximar da porta.

 

 — Tô, sim. Mas prometo não ir longe — me virei em direção a ele. — Pensei em dar uma olhada por aí. Vi umas crianças fantasiadas brincando com espadas de papelão quando chegamos.

 

 — Tá certo — deixou o R escorregar livremente no sotaque texano. — Mesmo assim, toma cuidado. O pessoal daqui parece estranho pra burro.

 

 Assenti. Não poderíamos estar com os pensamentos mais parecidos.

 Enquanto o assistia pendurar na parede a carabina que um dia foi do meu avô, e do avô do avô dele, eu amarrava meu cabelo bem firme. É o cabelo que entrega que sou uma mutação genética ambulante, não que isso me importasse. Ruivo. Laranja, praticamente. E bem ondulado. Ao menos, combina com as sardas que carrego no rosto. E nos ombros. E além. Se eu tivesse que entrar em alguma brincadeira, seria bom que a cabeleira não me atrapalhasse. Pensava seriamente em cortá-lo um pouco mais.

 Vesti um suéter cinza escuro sobre a blusa rosa de mangas longas que já usava. Também usava jeans e velhas botinas que torcia pra que não me fizessem deslizar por quilômetros no chão congelado. Pensando um pouco mais no frio lá fora, decidi usar um gorro marrom que envolvesse minhas orelhas, antes pendurado ao lado da porta. Também enrolei meu pescoço num cachecol combinando. Desacostumada a esse clima, minhas roupas de inverno não eram as mais bonitas do mundo. Saí de casa e tive o rosto cortado pelo vento na mesma hora.

 

 Olhei bem ao redor. O céu está azul, quase nublado. As casas coloridas de dois andares são extremamente parecidas umas com as outras. A neve está em tudo, em toda parte, é agonizante. Não gosto disso. No frio extremo, os grossos óculos de grau no meu rosto embaraçaram. Iniciando minha caminhada frustrante pela calçada, os tirei para limpar no cachecol.

 Me readaptando à visão, recoloquei os óculos. Alguns metros à frente, avisto mais dois daqueles moleques de fantasia. A julgar pelas orelhas falsas e pontudas de um, devia ser um elfo, ou uma merda assim. O outro, com uma fantasia mais bem feita que o anterior, parecia apanhar feio mesmo armado com um martelo de verdade.

 Diziam frases heroicas um ao outro como se estivessem num teatrinho. O garotinho loiro com o martelo olhou discretamente pra mim como se pedisse por socorro, mas não abandonou a interpretação. Levantei uma sobrancelha.

 Até que ele começou a definitivamente gritar por socorro.

 

 Bom. Eu não tinha nada melhor pra fazer, mesmo.

 

 Me aproximei sorrateiramente pelas costas do menino-elfo. Mesmo que sem nenhuma experiência ou jeito pra isso, me preparei para desferir um belo soco. Então, golpeei com força o garoto na região da orelha. O enfeite pontudo se dobrou, pendendo pro lado.

 

 — Ei! — o elfo se virou pra mim. Segurava a orelha atingida e vermelha, parecendo prestes a chorar. — Isso não vale! Vou contar pra minha mãe!

 

 Saiu correndo pateticamente. Uma cena de dar pena. Sentiria remorso se segundos antes ele não estivesse agredindo sem piedade o loiro com cabelo raspado nas laterais.

 De forma tardia, senti uma dor horrível nos nós dos dedos. Fazendo careta, comecei a massageá-los com a mão que não doía, com certeza ficariam roxos. Daí, vi o garoto do martelo se ajoelhar à minha frente, prestando uma reverência. Surpresa, quase esqueci que por pouco não quebrei a mão.

 

 — Honrado garoto desconhecido — na mesma posição, não olhava pra mim. Mostrava submissão e gratidão absolutas. — Estou em dívida com você. Agradeço, não tinha visto que aquele elfo estava com uma poção de cura. Essa foi por pouco.

 

 — Hã... — ...esse mané acha mesmo que sou um garoto?... — De nada, eu acho.

 

 Bem, até que faz sentido. Graças ao frio, não tô a pessoa mais feminina do mundo nesse momento. E acabei de socar alguém. Foi bem legal.

 Eu devia explicar que sou uma garota, mas tô curiosa quanto a essa brincadeira boba deles. Com toda a certeza eu não receberia essa devoção e respeito se ele tivesse enxergado uma menina logo de cara. Além do mais, garotos não gostam de brincar com garotas, e vice-versa. Antes que descubram quem eu sou, quero conhecer esse joguinho bem de perto, nem que seja pra dar umas risadas de manés sendo manés.

 

 — Meu nome é Butters, o Misericordioso. — se levantou. — Sou um paladino nível 5. Nunca vi você por aqui.

 

 — É, acabei de me mudar pra cá — apontei com o polegar pra minha casa. Dei uma pequena forçada na voz; se eu tivesse que fazer isso, devia ser convincente.

 

 — Oh, puxa, nós somos vizinhos! — sorriu enormemente. — Nós devíamos ser amigos!

 

 — Hm, claro. — sorri de lado com esse entusiasmo. — Por que não?

 

 — Yes!! — ergueu o martelo no ar. Eu o olhava sem entender, talvez ele estivesse imaginando alguns efeitos especiais. — Vamos, novo amigo! Você precisa conhecer o Rei Mago, ele já profetizava a sua chegada! Vamos! Ele mora bem ali, na casa verde!

 

O paladino disparou na minha frente, esperando que eu o seguisse. Questionando as escolhas que tenho feito, comecei a segui-lo no meu ritmo. Ele parava algumas vezes no caminho pra checar se eu ainda estava ali.

 ...Profetizaram minha chegada?

 

 — É sua primeira vez no Colorado? — Butters perguntou.

 

 — É, sim.

 

 — E o que tem achado?

 

 — Até agora? Bem. Foi mal, Butters. Mas tô achando um saco.

 

 Chegamos na tal da casa verde. Butters, o Misericordioso, deu três toques à porta. Esperamos na soleira até que os passos do outro lado se aproximassem.

 E então, quando a porta se abriu, eu o vi.

 

 Ele vestia uma fantasia de mago, mesmo. Tão bem feita quanto a do paladino, por sinal. O robe roxo-avermelhado, a capa azul petróleo, luvas amarelas nas mãos, carregando um cajado de madeira. Cabelos castanhos, lisos e macios, escapavam sob o chapéu pontudo e azul.

 Aquele era o maior garoto que já vi. Não... Não em altura. Tínhamos a mesma, provavelmente.

 Era um garoto bem gordinho. Fofo, com um olhar que gritava maldade. Tinha um rosto bonito, perfeito. Um olho castanho-claro e outro azul-escuro, uma boquinha bonita e um furinho no queixo. Me analisava de uma maneira enigmática.

 

 O Grande Rei Mago. Pude sentir minhas pupilas dilatando na sua presença. O ar gelado que passava por meus pulmões pareceu subitamente sumir.

 Por sinal... Só de imaginar um abraço quente daquele menino, que me cobrisse inteira, cheguei a me esquecer que sentia frio.

 De repente, South Park não me pareceu tão ruim. E aquela brincadeira me pareceu bem mais séria.

 

 


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