Sobre as Mães escrita por Jupiter vas Normandy


Capítulo 1
Único - Corre no Sangue


Notas iniciais do capítulo

Essa oneshot se passa na segunda temporada da série, logo após o aniversário do Michael.



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Polly hesitou por uma boa meia hora antes de decidir sair do carro — um Bentley recém-adquirido, devido a boa fortuna que favorecia os Peaky Blinders nos últimos meses —, estacionado na frente da casa, porém do lado oposto da residência dos Johnson. Além do jardim bem cuidado estava uma casa simples, e ainda assim, melhor do que a maioria daquelas em que Polly já tinha estado, e diferentemente destas, a casa dos Johnsons parecia aconchegante e respeitável. Duas coisas que foram raras em sua vida.

Em uma última ponderação, Polly se perguntou o que, em nome de Deus, estava fazendo ali? Não devia nada àquelas pessoas. Mas Polly respeitava o que seus sonhos lhe mostravam. E, naquela noite, eles lhe mostraram uma mulher chorando sozinha ao lado de um telefone, alguém cujo rosto ela não reconhecia, mas não tinha o cinismo necessário para fingir que não tinha suas suspeitas. Afinal, o dia anterior tinha sido o aniversário de 18 anos de seu Michael.

Apenas quando viu a porta se abrir e uma mulher baixa, de constituição roliça e roupas simples sair para cuidar do jardim, foi que Polly abandonou a hesitação. Deus, como odiava aquela mulher que nem conhecia... Mas quanto mais rápido fizesse isso, mais cedo terminaria. Então Polly deixou o Bentley e atravessou a rua, o som dos saltos no asfalto em um ritmo decidido. Chegou à cerca da casa antes do que gostaria. Suas mãos estavam suando dentro das luvas de renda preta e ela ouviu o tom frágil de sua própria voz ao dizer:

— Senhora Johnson?

— Sim? — A mulher a encarou por cima do ombro, ainda de costas enquanto regava as plantas. No pequeno vislumbre de seu rosto pesava um cansaço material, visível para além das olheiras de uma semana de noites mal dormidas. Ela deixou o regador sobre o batente das janelas acima das roseiras e limpou as mãos no vestido sem cintura. — Posso ajudá-la? Quem é você?

— Meu nome de solteira é Polly Shelby, mas você deve saber de mim pelo nome de Elizabeth Gray.

Apesar do cansaço, Martha Johnson tinha uma postura gentil e prestativa, que desapareceu assim que fez a conexão entre o nome, as roupas elegantes de Polly, o medalhão da Madona Negra preso sobre a gola jabô e a ligeira semelhança de suas feições com os de Michael. Não, os de Henry. Seu Henry.

— O que você quer? — perguntou, cada palavra carregada de rancor. A luz do sol da tarde refletindo nas lágrimas que instantaneamente se acumularam em seus olhos, mas ela tinha seu orgulho e não choraria na frente daquela mulher. — O que veio fazer aqui?

— Eu precisava falar com você. Mas o que tenho para dizer será mais fácil com um pouco de coragem líquida. Trouxe gin. Posso entrar?

— Eu não bebo.

— Bom, mas eu preciso de gin.

A dúvida se estendeu longamente para a sra. Johnson, mas a ânsia de saber sobre seu garoto falou mais forte. Não importava que baboseiras essa tal Shelby tivesse dito sobre ser a “mãe verdadeira”, ela também era uma mãe. E não existe orgulho no mundo que forme barreiras para a preocupação de uma mãe.

Assim, a sra. Johnson acabou com uma Shelby em sua cozinha, servindo uma dose generosa de gin para si mesma. Polly bebeu um gole e respirou fundo. Depois meneou a cabeça como se não tivesse adiantado e virou todo o conteúdo de uma vez. Martha, sentada de frente para a visita, esfregava as mãos no vestido encarando fixamente o tapete da sala. A borda estava desfiando. Ela sempre esquecia de mandar reparar.

— Como ele está? — A pergunta saiu lentamente, com o sabor de uma derrota, mas diferente. Uma espécie de conformação. Martha sabia, desde o dia em que aquele agente de apostas aparecera na sua porta, sabia que tinha perdido seu filho.

— Ontem foi o aniversário dele.

— Sim. Ele disse que iria ligar. Eu esperei o dia inteiro. Queria lhe dar parabéns. Ele não ligou.

Polly desviou o olhar. Por que isso também lhe causava dor no peito? Por que sentia empatia, ainda que não quisesse admitir, pela mulher que teve o privilégio roubado de criar seu filho? Não era justo. Polly já tinha sentido a própria dor, não era justo que sofresse a dor dos outros também.

Mas não tinha sido aquela mulher quem tirara Anna e Michael de seus braços. Não tinha sido ela quem lhe denunciara para a polícia e fizera com que perdesse a guarda de seus bebês. A única coisa que ela fez foi cuidar de seu Michael. E Polly a odiava por não ter tido esse privilégio. Mas, quando Michael falava de sua vida, quando Polly ouvia tão atentamente, pois uma mãe deveria saber de todos esses detalhes, ela agradecia internamente. Porque ao menos um de seus filhos ter tido uma boa vida. Porque esta mulher que ela odiava havia cuidado dele como cuidava de seu próprio sangue.

— Michael está bem. Ele e os primos se dão tão bem que parecem nunca terem se separado. Ele está trabalhando como contador. É um bom emprego, ganha 4 libras por semana. Um emprego honesto que ele só conseguiu por causa de vocês. — Polly apenas percebeu o que tinha dito quando já era tarde. A sra. Johnson a encarava com um misto de alívio e pesar, enquanto Polly se recriminava por ter deixado transparecer esta espécie de gratidão inconveniente, que teimosamente resistia suas tentativas de se ressentir de tudo e todos quando o assunto era a perda de seus filhos. Mas já estava dito, e a palavra dita não volta atrás. — Ele me disse que foi o seu marido quem o incentivou a fazer o curso de contabilidade. Foi... uma sugestão sábia.

Martha assentiu, meio sem saber como reagir. Longe de Birmingham, ela não sabia o significado e o peso do sobrenome Shelby, mas o homem que arruinara a sua vida e aquela mulher entornando copo atrás de copo em sua sala de estar não lhe passaram segurança alguma sobre a situação em que seu Henry poderia estar. Mesmo que não soubesse exatamente o que os Shelby faziam, não parecia ser boa coisa.

— O Henry... — começou, mas Polly se retesou ao ouvir o nome adotivo como o demônio diante da cruz, então Martha refez a pergunta. — Ele trabalha junto a vocês?

— Só por cima do meu cadáver.

Polly não pretendia se embebedar na frente daquela mulher, então parou na metade da garrafa. Mas algo precisava combater sua vontade de sair correndo dali, ou de agradecer àquela mulher, ou de tocar fogo naquela casinha perfeita, ou de quebrar todos as molduras nas paredes e recortar seu filho delas, como se pudesse roubar de volta as memórias que deveriam ter sido criadas com ela. Então Polly abriu a cigarreira dourada e pegou um cigarro para si. E porque Martha sentia algo semelhante, uma vontade de expulsar a visita mais indesejada, de quebrar a garrafa de gin e brandi-la contra a Shelby como uma arma, ao mesmo tempo que queria segurar as mãos dela e pedir para que cuidasse de Henry, mesmo que ele nunca voltasse para casa, ou viesse visitá-la, ou nunca ligasse nos aniversários, ela estendeu a mão pedindo um cigarro também. Polly acendeu ambos e depois de uma tragada profunda, a nuvem cinzenta turvando de leve a imagem de Martha, ela continuou:

— Ele tem um trabalho honesto, totalmente legal. Não vou deixar que se envolva com os outros negócios — disse, tanto para a outra mulher quanto para si mesma.

— Não deixe. Não importa o quanto ele insista. Ele sempre foi... bravio, para dizer o mínimo.

— Ele é teimoso, de fato. Deve correr no sangue.

— Como eu queria poder negar isso... — murmurou a sra. Johnson. — Como eu queria ter conseguido mudar isso, apesar desse maldito sangue de cigano…

Polly levantou o rosto com seriedade, deixando que a fumaça do cigarro saísse com a sua respiração. Esse tipo de xingamento era comum. No começo ela relevava. Depois, defendia sua origem de quem quer que ousasse falar merda dela ou de sua família. Mas o olhar de Michael cruzou seus pensamentos. Era exatamente o que a sra. Johnson dissera: bravio, teimoso. Um fogo ardente, uma ambição pulsante. Ela podia ver Tommy no garoto, e isso a aterrorizava. Só Deus sabe qual destino pessoas como Tommy e Michael construíam para si. Por um instante, Polly também desejou que a sra. Johnson tivesse conseguido. Que seu Michael tivesse uma vida simples, porém aconchegante e respeitável. Mas o pensamento não durou muito. A chama de Michael queimava nela também. Dizia que ele pertencia à ela. Era seu filho, seu sangue, era seu. E ninguém poderia mudar isso.

Polly se levantou, com Martha imitando seu movimento. Caminharam até a porta em silêncio. A sra. Johnson não se despediu, apenas fechou a porta assim que Polly deixou sua casa. Polly também não olhou para trás, os saltos nos tijolinhos do jardim soando menos decididos do que quando chegara. Não sabia exatamente o que aquele encontro tinha significado para si e para a outra, mas Polly sabia o que era perder um filho, e por mais que odiasse que Michael havia chamado aquela mulher de mãe a vida inteira, não podia simplesmente esquecê-la, desprezá-la após tudo o que tinha feito por ele.

Polly entrou novamente no carro, com a impressão de que seus sonhos, diferentemente do que tinham sido a vida inteira, não mais seriam assombrados pelos sofrimentos de mães. De nenhuma das duas mães.


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Notas finais do capítulo

Eu tenho muitos motivos para não gostar do Michael, mas o maior deles é como ele simplesmente esqueceu a mãe adotiva.
Eu não acho que a Polly conseguiria fazer o que fez nessa oneshot, encarar a mãe adotiva do Michael de uma forma respeitosa, mas eu precisava dar uma colher de chá para essa mulher, tenho muita pena dela.
Espero que tenham gostado! Comentários são sempre bem-vindos.



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