The One That Got Away escrita por Polaris


Capítulo 6
Doçura


Notas iniciais do capítulo

Voltando depois de um tempinho de férias.


Boa leitura!



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  14 de maio de 1943

O treinamento do exército era exaustivo. Todos os dias, desde o momento em que acordávamos com os primeiros raios de sol, até o toque de recolher, o comandante procurava novas formas tortuosas de nos levar ao limite (claro que aquilo não chegava nem perto de um campo de batalha real) e, sinceramente, era difícil imaginar uma mulher doce e frágil passando por aquilo, muito menos se arriscando em um front.

Barbara, no entanto, conseguia fazer com que qualquer um engolisse esse pensamento (às vezes, quase que literalmente). Era uma das características mais charmosas dela, embora fosse também a mais perigosa.

Se bem que “doce” e “frágil” seriam as últimas palavras que usaria para descrevê-la. 

  ✧♡✧

JANE NÃO ERA DESASTRADA. TALVEZ UM POUCO DESATENTA DE VEZ EM QUANDO, mas com certeza não desastrada. Por isso quando trombou com aquela parede de músculos ao virar a esquina, ficou estarrecida. Envergonhada. E um pouco irritada. Tudo isso ao mesmo tempo.

Claro que o homem parado à sua frente não tinha a menor culpa. Era como se, enquanto caminhava pela avenida, seus pensamentos a levassem para outra dimensão, onde apenas ela e sua mente existiam. Tudo isso porque tinha passado o resto da última noite em claro no parapeito, remoendo aquele maldito sonho. Perdeu horas tentando encaixar as peças e entender o que elas significavam, mesmo que fosse uma tarefa inútil — a razão em insistir em se torturar desse jeito, era um mistério total. — Quando percebeu, outro dia havia chegado e estava vagando pelo bairro, sem saber direito o porquê. Fosse como fosse, naquele momento estava praticamente jogada no chão, praguejando tanto, que até a última geração do pobre homem se sentiria ofendida.

— Você está bem? — disse uma voz grave. A dele.

Havia um tom de deboche implícito em sua voz que fez Jane se irritar ainda mais. Tudo bem que a situação realmente parecia cômica, mas não teria presença de espírito o suficiente para rir de seu próprio embaraço naquele instante.  

         — Fisicamente? Sim — ela respondeu, seca — mas acho que não posso dizer o mesmo sobre minha dignidade.

         Ele fez um som estranho com a boca, como se segurasse o riso e estendeu a mão para ela. Jane não hesitou em aceitar — ainda que se sentisse levemente humilhada por parecer tão tonta e indefesa para aquele homem — e levantou uma sobrancelha quando finalmente percebeu de quem se tratava.

         — Ah é você outra vez.

         Ele torceu o nariz.

— Perdão?

         — O cara da feira— ela rebateu— ora não finja que não me conhece.

         Silêncio.

Ninguém disse nada por um tempo. O que deu mais alguns segundos — ou minutos, não sabia ao certo— para que Jane o avaliasse com cautela. Ele usava uma jaqueta de couro marrom — que parecia grossa demais para uma manhã quente de verão como aquela — e o cabelo comprido estava parcialmente preso pelo mesmo boné que o vira usando na última vez. Se estivesse de óculos escuros poderia facilmente se passar por uma celebridade disfarçada. Jane quase riu, ora que bobagem.

Ao invés disso, pigarreou e continuou falando:

— Então você mora aqui?

Ele hesitou por um instante, mas acenou com a cabeça. Será que tinha dito alguma coisa de errado? Será que ele ia fugir dela outra vez?

— Mas não é daqui, é? — arriscou perguntar, mesmo sabendo a resposta. O sotaque carregado o entregava.

— Não, não sou.

Ela deu uma risadinha.

— Claro que não.

— O que isso quer dizer?

— Nada. Bem, sinto que devo agradecê-lo por me ajudar a levantar agora e... — Ela fez uma pausa, levemente constrangida— por aquele dia.

         — Não precisa me agradecer. Qualquer um faria o mesmo.

         — Carregar uma estranha por três quadras? Duvido muito. — Ele abriu a boca para dizer alguma coisa, mas Jane foi mais rápida e continuou: — De qualquer forma, estou morrendo de fome e vi uma barraquinha a duas quadras daqui vendendo um sanduíche de pastrami que parecia delicioso. Aceita? Por minha conta, claro.

         Ele franziu a testa.

— Está me convidando para sair?

— Comer — ela corrigiu — na verdade, estou te convidando para comer.

— É praticamente a mesma coisa.

— Claro que não — Jane respondeu, revirando os olhos — e qual o problema nisso? É apenas um sanduíche, não vou te pedir em casamento.

Ele ficou um tanto constrangido pela resposta ácida dela. Ou irritado. Era difícil dizer.

— Você não me conhece.

As palavras dele a afetaram de uma forma que não esperava. Tudo bem, ele tinha um ótimo argumento, Jane não o conhecia e mesmo assim estava chamando-o para sair — comer, estava chamando-o para comer— com ela. Mas isso realmente importava? Porque de um jeito estranho, parecia que sim. Talvez fosse por isso que ela simplesmente disse:

— É uma ótima oportunidade para mudarmos isso, não acha?

— Não — retrucou, com a cara fechada — e você não deveria convidar homens estranhos para sair. É perigoso.

Jane cruzou os braços e forçou sua melhor expressão de indignação. Quem ele pensava que era?

— É mesmo? E o que eu deveria fazer? —Ela fez uma pausa, como se estivesse pensando, e: — Já sei! Quem sabe ficar em casa bordando até meu pai arrumar alguém para casar comigo? Talvez não devesse andar desacompanhada pela rua também.

Ele suspirou.

— Desculpe, eu não quis dizer isso. Claro que você é livre para andar por aí, conversar com estranhos e se envolver em problemas por conta própria.

Ela ergueu uma sobrancelha e olhou para ele, satisfeita.

— Obrigada. Vai comer comigo agora?

— Quem sabe outra hora— disse ele, dando-lhe as costas— adeus.

— Espera.

Jane instintivamente tentou segurar em seu braço esquerdo, mas ele recuou com tanta ferocidade e virou o rosto em sua direção com uma expressão tão enraivecida que a fez recuar alguns passos. Francamente, ela poderia ter saído correndo naquele instante, se não fosse por seus olhos, a maneira como se cruzaram com os seus. Ela não entendia o que havia neles, mas eram hipnotizantes. Talvez fossem as nuances do azul, como se olhasse para um mar revolto ou forma como pareciam reluzir — mesmo que não tivesse certeza se era ou não de irritação pelo toque não autorizado — ou mesmo a pequena sombra misteriosa, quase imperceptível, mas que mesmo assim conseguiu notar. E então ela se deu conta de que não podia simplesmente deixá-lo ir embora. Queria saber mais sobre ele. Queria saber por que ele a fazia se sentir tão estranha e principalmente: por que ele parecia estar sempre tentando fugir dela?

Não saberia dizer por quanto tempo ficaram naquele impasse, sem dizer nada, apenas que foi ele —surpreendentemente— quem o quebrou, a olhando de uma maneira angustiante, como se fosse um animal ferido e que de algum jeito, fazia seu coração apertar.

— Desculpe— era como se realmente estivesse se sentindo culpado. — Eu não quis assustá-la.

— Tudo bem. A culpa foi minha.

Bucky contraiu o rosto.

— Não, não foi.

Jane achou melhor ficar quieta, não adiantava muito discutir com a postura resignada dele. Talvez fosse melhor esquecer aquele assunto de uma vez e ir embora. Já estava ficando tarde, não estava com o telefone e sequer tinha avisado Anton para onde fora. Detestava deixá-lo preocupado atoa.   

— Ah, certo — suspirou ela, meio sem graça — obrigada mais uma vez. Acho que é melhor voltar de onde vim.

Mas antes de começar a andar na direção contrária, rumo a academia, sentiu uma mão em seu ombro. Ela se virou e o encontrou com uma expressão vacilante, como se estivesse em um pequeno conflito interno.

— Eu... — Ele murmurou antes que ela pudesse se manifestar— ... acho que estou com um pouco de fome. O sanduíche de pastrami é realmente bom?

O rosto de Jane se iluminou.

— Bom, isso teremos que descobrir.

Ele concordou.

— Vamos comer então. Rápido.

— Sim senhor.

— E você não vai pagar — ele emendou.

Jane fez um estalo com a língua.

— Nem pensar. O convite foi meu, eu pago.

Ele lançou um olhar de quem estava repensando suas escolhas e ela imediatamente se corrigiu, com as mãos erguidas:

— Tudo bem, tudo bem. Podemos dividir a conta se é tão importante assim para você.

Jane então sorriu e estendeu o braço para um aperto de mãos simples, como se quisesse selar um acordo. Ele não resistiu. Na verdade, ela podia jurar que vira um quase sorriso brotando em seus lábios — embora pudesse ser apenas fruto de sua imaginação. De qualquer maneira, estava radiante quando disse:   

— Não vai se arrepender.

✧♡✧

Vinte minutos mais tarde, eles estavam sentados em frente à barraca comendo um delicioso sanduíche de pastrami — pagos por ele, após uma breve discussão, onde Jane se rendeu a sua infinita e insuportável teimosia masculina— enquanto ela pensava em uma alguma forma de manter um diálogo decente. Ele, porém, sempre respondia suas perguntas da maneira mais evasiva possível, o que era levemente irritante.

— Sabe — ela começou, depois de engolir um pedaço do lanche — acabei de me dar conta de que ainda não sei seu nome.

Ele se virou para ela. Parecia entediado.

— E isso importa?

— Claro que sim — ela sorriu. — Gosto de saber o nome dos caras desconhecidos com quem saio para comer um sanduíche de pastrami, para o caso de tentarem me sequestrar mais tarde.

— Engraçadinha. — Ele balançou a cabeça e fez uma breve pausa, como se estivesse pensando— Bucky — ele então murmurou. — Pode me chamar de Bucky.

Jane contraiu o rosto.

— É seu nome mesmo ou um apelido?

Ele não respondeu. Ao invés disso voltou a se concentrar em seu próprio lanche, o que não a surpreendeu, mas fez fechar a cara. Parecia que estava fazendo de propósito, apenas para provocá-la.

Enquanto voltava a comer, ela analisou sua silhueta com mais atenção. Bucky realmente era bonito, logo percebeu. E forte. Não saberia dizer com certeza, já que as peças de roupa cobriam a maior parte de seu corpo, mas a julgar pelo tamanho dos braços e o fato de carregá-la por aí como se fosse um saco de batatas, Jane assumiu que ele era do tipo que viva em constante movimento — ou pelo menos levantava pesos de vez em quando — e, bem, como ela trabalhava em uma academia, pensou que seria a oportunidade perfeita para encontrar um assunto em comum, embora não soubesse direito como começar a falar.

Talvez se perguntasse sobre...

— Algum problema?

Ele disse tão repentinamente que a assustou.

— O quê?

— Você faz essa cara quando quer perguntar alguma coisa.

— Que cara?

— Movendo os lábios, como se quisesse morder a boca — ele fez o mesmo movimento que ela estava fazendo momentos atrás. —E tem um pequeno tique na sobrancelha também.

Ela ergueu uma sobrancelha. Aquilo era um tique?

— Viu só? — disse ele.

— Como sabe disso tudo?

Ele sorriu.

— Sou observador.

Jane revirou os olhos. E completamente convencido, quase completou.

— Eu apenas estava pensando se você malha ou algo do tipo.   

— Algo do tipo — ele respondeu, vago demais para o gosto dela — por que o interesse?

— Você parece ser um desses caras que passam o dia todo na academia.

— É um elogio?

Algo do tipo — ela rebateu, com uma expressão debochada.

Bucky franziu o rosto, mas não disse nada, apenas fixou o olhar em Jane, que devolveu na mesma intensidade. E então eles começaram a se encarar. Ela fingiu estar irritada, com os braços cruzados e sobrancelhas franzidas, enquanto ele se mantinha sério, como estivesse tentando intimidá-la.

Só que depois de quase um minuto e meio daquele jeito, tudo o que conseguiram foi rir. Muito. Ela sequer sabia o porquê, apenas não conseguia controlar a risada. Diabos, não se lembrava de quando fora a última vez que tinha dado uma gargalhada tão sincera assim, mas até que era bom.

— Tudo bem, eu mereci essa — Bucky se manifestou, com uma risada mais contida do que ela.

— O que quero dizer é que trabalho em uma academia— disse Jane, quando finalmente parou de rir— você deve se lembrar, afinal é o lugar onde me deixou aquele dia, certo? — Esperou ele concordar com um aceno resignado e continuou: — e como você não é daqui e não está há muito tempo na cidade, talvez esteja procurando por alguma na região.

— E quem disse que estou aqui há pouco tempo?

Novamente, ela ergueu uma sobrancelha. Tinha de aprender a conter o maldito tique.

— Não está?

—Isso não vem ao caso.

— Vou interpretar como um sim — ela respondeu, com uma piscadela.

Ele revirou os olhos.

— De qualquer forma — Jane continuou — saiba que será muito bem-vindo se você quiser levantar alguns pesos ou experimentar nosso equipamento de boxe, ele é muito bom.

Bucky contraiu o rosto.

— Acho que finalmente estou começando a entender aonde você quer chegar com isso.

Ela inclinou a cabeça. O que diabos aquilo queria dizer?

— Não sei do que está falando.

— Ah, acho que você sabe sim.

— Tudo bem, você me pegou— Jane levantou os braços. — O saco está remendado e as luvas podem ser um pouco velhas, mas funciona super bem. Eu mesma uso sempre.

— Esqueça o equipamento de boxe — Bucky resmungou, impaciente —Estou falando sobre sua tentativa de fazer amizade. Isso não vai acontecer, sinto muito.

Ela franziu a testa.

— Já te disseram que você é muito prepotente Bucky? Além disso, eu não estou...

Ele não a deixou terminar.

—Me escuta... — Disse firme e, fez uma pausa como se tivesse se lembrado de um detalhe importante — desculpe doçura, qual é seu nome mesmo?

Naquele instante, ela se deu conta de que ainda não tinha dito seu nome a Bucky. O que era estranho, porque há poucos minutos estava irritada com ele pelo mesmo motivo. E por que ele tinha chamado ela de doçura? Mais importante: por que ela se sentia tão estranha de repente?

Então ela abriu a boca. E fechou. E abriu outra vez, mas nenhuma palavra saiu de seus lábios. Era como se de repente tivesse esquecido o próprio nome. Ela olhou para ele, que tinha uma expressão de preocupação estampada, exatamente como da última vez. Com seus olhos. Azuis, brilhantes e calorosos, de um jeito quase sobrenatural. O ar parecia ter fugido de seus pulmões. Merda, é uma pergunta fácil. Meu nome. Qual é o meu nome mesmo?

— Não me chame de doçura, droga! Eu tenho a droga de um nome.

De novo, não.

— Tudo bem aí? — Disse Bucky.

E ela até responderia, mas era como se seu corpo não estivesse mais ali. Tudo o que conseguiu fazer foi levar uma das mãos à testa enquanto os flashes passavam diante de seus olhos.

A mulher passou as mãos sobre os ombros e se empertigou, ajustando a postura. Talvez não devesse ter passado tanto tempo deitada no chão sem proteção alguma, pensava. Suas costas doíam como inferno. E toda essa merda porque tinha passado boa parte da tarde alternando entre organizar o inventário de entrega e fazer alguns — muitos, na verdade — reparos no avião de carga. Uma tarefa desgastante e que exigia muito esforço de sua parte. Especialmente quando fazia o trabalho de três homens sozinha. 

Ela estava prestes a voltar para seu alojamento e finalmente tomar uma merecida ducha —o cheiro do óleo de motor em seu cabelo e roupas já estava deixando-a enojada—, quando percebeu que o oficial de voo imprestável não havia sequer guardado a carga no compartimento do avião, como havia pedido horas antes.

—E ele só tinha um maldito trabalho— a mulher praguejava.

Ela encarou aquelas pilhas, sem saber direito o que fazer. Eram caixas e mais caixas, com todo tipo de carga, e que com certeza não poderiam simplesmente ficar expostas a noite toda no relento. O cretino deveria ter feito aquilo de propósito, provavelmente porque ela tinha se “intrometido” — nas palavras dele— na reunião daquela manhã, dizendo que seria melhor checar as mangueiras do motor antes do próximo voo ou o avião poderia cair no meio do oceano. Ele riu, disse para não se preocupar e que aquele era um trabalho para homens. Homens, que piada.

Mas era sempre assim, já deveria ter se acostumado. 

A mulher desviou o olhar para o céu. A lua minguante já estava alta e seu macacão não era tão quente quanto o desejável naquele instante. Por isso, começou a carregar as caixas, uma a uma, mesmo sabendo que não sairia dali antes do toque de recolher e que obviamente seria punida por isso depois.

— Babaca arrogante — resmungou outra vez. Certamente ele se achava muito melhor que ela.

Eles tinham a mesma patente.

— Praguejando doçura? Isso não é do seu feitio.

Ora, mais essa, pensou, fechando ainda mais a expressão. Não estava com paciência para discutir com o patife no momento, ainda mais quando usava aquele apelido detestável.

— Qual o problema? — ele insistiu.

— Seu gênero. Ele é o problema.

Ele levantou uma sobrancelha.

— E o que meu gênero fez desta vez?

— Quer a lista por grau de escrotice, data ou ordem alfabética? Talvez seja melhor começar falando sobre o fato do meu salário ser muito menor que o de vocês? Posso falar também das oito em cada dez mulheres que desistem da aviação por causa dos brutamontes do quartel. Você escolhe.

Ele olhou para a pilha de caixas e depois para ela, como se entendesse o que tinha acontecido.

— Deixa eu adivinhar. Discutiu com Crawford outra vez?

— Não foi uma discussão— ela revirou os olhos — os aviões precisam de manutenção e todo mundo sabe disso. Mas, aparentemente, ouvir isso de mim ofende o ego frágil dele.

Ele deu uma risadinha.

— O que foi? Acha que ele tem razão?

— Crawford é um completo imbecil, me surpreende que consiga abrir a cabine do avião. Mas não é por isso que estou rindo.

— Então por que está rindo, patife?

Ele não respondeu. Ao invés disso, pegou algumas das caixas que estavam no chão e saiu caminhando em direção ao avião. Ela não entendeu muito bem o que aquilo significava — francamente, às vezes era difícil para ela entendê-lo —, mas o seguiu com sua própria caixa em mãos.

— Eu não pedi sua ajuda — ela resmungou.

— De nada, doçura.

Quis comentar outra vez o quanto odiava aquele apelido, mas preferiu morder a língua— quase que literalmente. Não queria admitir, mas era grata pela ajuda dele.

— Por que está aqui fora uma hora dessas, afinal? — perguntou, optando por mudar de assunto— Achei que seu batalhão se recolhia com o pôr do sol.

Ele mexeu os ombros.

— Estava treinando.

— Mais?

— Treinar nunca é demais — ele respondeu, com uma piscadela — além disso, prefiro praticar boxe pela noite. Brigar todos os dias pelos sacos de pancadas com os outros soldados é cansativo.

Ela olhou discretamente para os braços dele. Estavam ligeiramente maiores do que se lembrava e ficavam marcados no uniforme de treino verde-musgo. Pareciam bastante rígidos e... Mas em que merda estava pensando?

—Parece bom — ela murmurou, desviando o olhar — quero dizer, treinar. Nosso comandante raramente nos deixa sair dos hangares.

E com “nós”, queria dizer, “ela”.

— Se você quiser, pode treinar comigo.

Ela piscou algumas vezes.

—Sério?

— Bom, ninguém usa a sala naquele horário. Não acho que tenha algum problema— ele inclinou a cabeça, sugestivo como sempre — posso te ensinar a dançar.

Ela torceu o nariz.

— Eu não danço.

— Que pena.

— Mas posso pensar a respeito do treino— continuou, reflexiva— melhorar a musculatura não seria ruim.

Continuaram andando em silêncio, mas até que era bom, pensou. Havia certa satisfação em passar um tempo com uma pessoa que a tratava como um ser humano, ainda que esse alguém fosse, bem... fosse logo ele.

— Esperarei por você — disse ele entrando no avião, colocando as caixas no canto do compartimento em seguida. Quando se virou, continuou: — mas por hora, temos trabalho a fazer, doçura.

Ela grunhiu. Agora o patife estava fazendo de propósito.

— Não me chame de doçura, droga! Eu tenho a droga de um nome.

— É mesmo? — ele se fez de desentendido, encarando-a. — E qual seria mesmo? Acho que me esqueci.

Meu nome...

...Qual é meu nome mesmo?...

...De onde vim?

...Qual o meu propósito?...

...Qual é meu maldito nome?

Ela sentiu vontade de vomitar o pastrami. Tudo estava rodando, mas pelo menos as vozes sumiram, ainda que não soubesse o queriam lhe dizer. Ela piscou algumas vezes e o rosto de Bucky tomou forma em sua frente. Seus ouvidos zuniam. O que diabos foi aquilo?

—Não é nada— ela garantiu, quando finalmente conseguiu respirar — Meu nome é... — Tocou a cabeça, que de repente, doía como o inferno — Jane. Pode me chamar de Jane.

Jane. Como poderia ter se esquecido? Esse era seu nome. Ou pelo menos era nome que assumiu que fosse o dela, já que não sabia seu nome de verdade, muito menos quem realmente era. Ela levou uma das mãos ao peito, onde o colar escondido pela camiseta parecia pesar uma tonelada.

— Tem certeza de que está bem? O sol está forte e...

— Não sou uma inválida — Jane o cortou, ofendida — estou ótima. Foi apenas um mal súbito.    

Bucky não insistiu, e o agradeceu internamente por isso.

Ela olhou para o resto do sanduíche em suas mãos. Estava delicioso, mas não conseguiria comer mais nada naquele momento. Por isso o colocou de volta na embalagem e respirou fundo. De canto de olho, notou que Bucky não a olhava diretamente, mas que a ainda estava atento — provavelmente esperando pelo momento em que desmaiaria outra vez— e por algum motivo Jane se sentiu tentada a compartilhar sua história deprimente com ele.

Mas o que diria?

Então, é o seguinte: eu não tenho memória alguma do meu passado. Nada. É como se minha vida tivesse começado em 2012. Não faço a menor ideia de quem realmente sou e, às vezes, tenho flashes involuntários, que somem em seguida, ou então sonhos malucos que não me deixam dormir de madrugada. E claro, ocasionalmente desmaio na rua em cima de desconhecidos sem razão aparente, mas não é nada demais.  

Ele com certeza sairia correndo no mesmo instante.  Qualquer um com o mínimo de bom senso faria isso.

— Me desculpe— Jane se limitou a dizer — sei que quer ajudar. Mas estou bem, juro.

Bucky concordou e devorou o último pedaço de seu sanduíche, se levantando em seguida, com as sacolas de compras — que Jane nem lembrava mais que estavam ali— em mãos. Ele estava indo embora, provavelmente assustado. Tinha estragado o qualquer que fosse o avanço de cinco minutos atrás com sua esquisitice, como sempre acabava fazendo.

Ela queria dizer alguma coisa, algo que o fizesse ficar, mas não fazia ideia do quê. Droga, Jane realmente queria conversar mais um pouco com Bucky.

—Sei que você se sente em dívida comigo, Jane, mas eu não sou o tipo de pessoa com quem você quer se envolver. — disse ele, sem se virar — seria melhor se não nos encontrássemos de novo. Obrigado pelo pastrami, ele é realmente muito bom.

E saiu, deixando Jane sem conseguir fazer nada a não ser observá-lo desaparecendo rapidamente pela esquina. Ela suspirou, frustrada. E, internamente, torceu para que ele não estivesse falando sério.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado!

Até breve!



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