Luz. escrita por SabstoHoku


Capítulo 1
Camargo, Aurélia.


Notas iniciais do capítulo

Essa fic surgiu, na verdade, como um trabalho da faculdade. Entretanto, dadas as circunstâncias, meu sumiço por aqui e acabado o semestre, não vi nenhum destino melhor que esse kkkk

Enfim, espero que gostem!

Dedicado à todos aqueles que lerem Senhora e sabem, hoje, que nem sempre os finais são como são.



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“Quem não se recorda de Aurélia Camargo, que atravessou o firmamento da corte como brilhante meteoro, e apagou-se de repente no meio do deslumbramento que produzira seu fulgor?”

Havia algo de errado dentre os ciclos da sociedade fluminense.

Um determinado tipo de burburinho específico, daqueles que se criam quando algo estimado é encontrado ou perdido. Do tipo, clássico e jamais ultrapassado, que faz com que as moças mais novas comentem entre si, as madames murmurem sobre em meio a seus assuntos diários e os rapazes questionem uns aos outros o motivo do alvoroço que tenta, em vão, ser disfarçado.

Era sobre uma estrela. Mais especificamente, era sobre a queda de uma. Uma como o sol: em todo o seu esplendor, ardor e beleza radiante, carregando consigo luz própria e capaz de atrair olhares diversos, de impossível ignorância quanto à sua existência.

Clara como o dia, a perda de Aurélia era tão sentida quanto fora sua chegada. Já não mais representava novidade, muito menos atração entre pretendentes com suas competitivas e variáveis cotações, lutando para conseguirem posições em sua longa lista de peças e preços. Não se viam mais moças que igualmente disputavam a atenção da dama, buscando amizade, apreço, ou apenas a diversão proporcionada por aquelas brincadeiras infames e respostas cortantes, que apenas alguém como ela – excepcionalmente – poderia oferecer.

Mais ainda era o tema das rodas, o assunto que corria como água entre as bocas daqueles que tinham acompanhado sua jornada, e mesmo daqueles que não, mas que ainda ouviam falar da mais recente lenda brilhante das tardes e noites do Rio.

Havia algo de errado na casa. No modo como ainda se via sua dona, acompanhada do marido, mas não se reconhecia nela a mesma mulher, nem ao menos o mesmo tom ou vivacidade perigosa que somente uma jovem como ela tinha, a personalidade de independência que encantara quem pudera conhecê-la em sua fase mais rígida, mais afeita aos próprios caprichos, mais diferenciada pela ousadia de não apenas aceitar ser parte do mercado matrimonial, mas fazer-se ferrenha avaliadora e investidora dele.

Como se, ao colocar-se aos pés de Fernando, Aurélia perdesse parte do fulgor que a fazia meteórica, brilhante; e, no destino comum a qualquer estrela, morresse e apagasse – ou ao menos tentasse morrer – a mulher que arrancara suspiros, sorrisos e sussurros entre os salões da alta sociedade, deixando apenas rastros de luz e poeira.

Aurélia Camargo tinha apenas vinte anos. Tal qual as moças de sua idade, costumava ter cor às bochechas e, num traço próprio que se fazia contrário à beleza angelical, um sorriso mordaz que era quase capaz de quebrar a harmoniosa pele porcelânica que quase fazia miragem de sua imagem. Já não se tinha mais a presença forte; nem mesmo os passos de sobrenatural leveza que atravessavam, em calma graça, todos os cômodos em que pisavam.

Talvez fosse Fernando.

Nele, talvez ainda visse ela o Seixas que conhecera naquele que estava, agora, ao seu lado; talvez essa fosse a verdade. Talvez, embora mudado, perdoado e seu – seu Fernando, como era dele Aurélia, consumado o sagrado matrimônio – ainda restasse em Seixas um vislumbre daquele que partira seu jovem coração e fora o principal responsável pelo espetáculo que ela representara ao surgir, jovem, bela, rica e de uma esperteza excepcional, advinda da experiência que apenas uma cicatriz profunda poderia proporcionar. E tinha aquilo: a cicatriz da decepção, do amor e do abandono, da inocência roubada que a impossibilitava seguir e sentir o mesmo prazer que as moças da corte em seus suspiros, danças, dotes e rapazes. Jamais caíra pelos galanteios: o modo lisonjeiro já não lhe fazia sentir nada senão uma pavidez alerta, atenta e imaginativa que despertava seus sentidos e a fazia saber, ou ao menos assim achar que sabia, que cada uma daquelas palavras e modos eram ensaiados e temporários, e durariam até que outra (mais bela, mais jovem, mais rica) ascendesse aos salões, exatamente como ela fizera.

Talvez fosse ela.

Afinal, não perdera o semblante de melancolia que, por vezes, marcava o rosto em seus momentos distraídos, ou os olhares furtivos que miravam a figura descansada de Fernando ao sofá em meio às leituras diárias, hábito já estabelecido na sala da casa. Não; da Aurélia que o amara no começo, antes que fosse capaz de humilhá-lo para vingar seu coração de forma tão vil quanto poderia para compensar a dor, restava sentimento, não mais pessoa. E talvez também fosse isso: fazer de si mesma uma pessoa diferente criara não apenas uma nova ela, mas um novo jeito de sentir e viver o amor que, de fato, ainda podia nutrir por ele.

Nem uma só mentira saltara de sua boca naquela noite. Ainda o amava, e estaria disposta a abrir mão de todo o dinheiro, o metal maldito que motivara o amado a deixá-la, apenas para que a ela também fosse dada a redenção, para que ele ainda aceitasse seus lábios e juras. Entretanto, agora, não podia abster-se, embora quisesse, de reconhecer que nela já não cabia a pureza de menina, e em Seixas já não via o mesmo rapaz que a encantava da janela, prometendo-lhe um lugar a seu lado.

A Fernando tampouco fora agradável deixá-la, ele alegava. No entanto, embora a tentativa de escalar o status pela família (ou por si mesmo, em motivada e incentivada soberba) tivesse sido falha, existira. E não apenas existira, como causara todas as reviravoltas que haviam marcado todo o plano resultante no casamento deles, na convivência que agora tinham, finalmente reconhecendo-se nos papéis e nos corpos um do outro.

Mas por quê, então, Aurélia não apenas apagara sua presença nos salões, mas apagara por si só, na pessoa que era? Por quê nela não residia a alegria de esposa, da qual tanto lhe falavam, ainda que tivesse feito com que tudo aquilo desse certo, e devesse estar satisfeita? Tinha Seixas, tinha sua casa, tinha os montes de moedas das quais advinha sua fortuna herdada, e nada lhe fora tirado. E, se nada então faltava, qual era a razão da sensação de ausência que parecia transparecer em seus sentidos?

Aos poucos criados que por vezes a cercavam pelos motivos que fossem, restava murmurar, tecendo picuinhas daquele que parecia, então, ter se tornado o perfeito casamento. Pondo certeza no amor de Aurélia, na devoção capaz de mudar Seixas, mas sussurrando dúvidas: "O que apetece, afinal, à amada Senhora?"

E a Aurélia a pergunta fora repetida algumas vezes, mas jamais respondida. Não havia nada de errado, alegava, e nada de fato reconhecia de incomum. Não tinha causa o ar de estranheza, e não haveria de ter. Era perfeitamente saudável, estava perfeitamente bem, performava com tanta maestria a desenvoltura que deveriam ter as moças casadas quanto costumava fazê-lo aos modos das solteiras.

Portanto, se não sofria de um mal físico, talvez estivesse n’alma algo irresolvido, não curado pelo tempo, pelo plano ou pelo perdão, se é que se curaria. A ferida que fizera dela Senhora da casa, da vida, de si, a encantadora da sociedade e dos salões, domadora do ego de Seixas tampouco o fizera retornar à sua vida. Nem tudo poderia demonstrar a elegância, nem tudo se falava em meio à paz do lar deles, nem nunca mais se tocaria no passado como assunto de uma prosa qualquer.

Estava tudo bem. E, no entanto, Aurélia ainda cantava a plenos pulmões, em uma graça cheia de estilhaços de tristeza, as mesmas músicas de antes, dando acompanhamento ao piano e pronunciando como emoção as letras, que permaneciam retratando o mesmo coração fragmentado.

A música, por fim, era imutável. Mas algo nela deveria ter mudado, não? De forma mais profunda e aterradora, que não a fizesse mais sentir com tamanho gosto e reconhecimento as notas maiores e menores daquelas canções de amores desfeitos.

Igualmente, esperava que os romances que lia a fizessem sorrir, ao invés de desejar; reconhecer-se neles junto ao amado, e compartilhar com ele as estimadas semelhanças, rir-se delas como o belo casal que formavam, ao invés de apenas a nostalgia de alguns anos. Nesses momentos, momentaneamente trocava sorrisos de canto com o marido, para então desfazê-los ao focar na próxima página.

Não gostava, realmente, dos salões; porém, por vezes, tinha a impressão de, também deles, sentir certo pesar.

Quem, de fato, fora Aurélia?

Aurélia, ingênua, menina, apaixonada por suas promessas.

Aurélia, ferida, enganada, desejosa por revanche.

Aurélia, jóia entre as mulheres, resplandecente da cabeça aos pés, sagaz, uma rainha numa coroa de cabelos castanhos e traços de boneca.

Aurélia, ajoelhada sobre o chão do quarto e declarada, suplicante pelo amor que desprezara, desculpando-se pelas ofensas que proposital e planejadamente fizera ao alvo de suas afeições.

Aurélia, esposa, docemente ditando os parágrafos que lia, lançando ao esposo os olhares que buscavam a cumplicidade que queria que tivessem. Oferecendo sorrisos nos cantos dos lábios como um dia já fizera, antes que ele lhe cobrasse suas lágrimas pela própria liberdade. Ele nunca soubera – e agora jamais saberia – sobre os soluços que talvez o tivessem feito tomar uma consciência maior do que fazia, se tivessem chegado até seus ouvidos durante o virar daquela esquina, ou o caminho para casa, desejoso por contar as boas novas.

Aurélia, de tantas faces e tantas mágoas, antes escuras sob a luz de seu vigor incontestável, único,quase tirânico.

Agora, disfarçadas em sorrisos de anis.

 


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Notas finais do capítulo

Obrigada a quem leu!



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