Aves de inverno cantam Segredos escrita por Shalashaska


Capítulo 5
Correspondência




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Era ainda de manhã quando Amelia chegou a conclusão que seu trabalho estava quase terminado. Os livros estavam devidamente organizados nas prateleiras, em uma ordem lógica e de fácil consulta — seguindo um código que poderia ser conferido a qualquer instante e por qualquer pessoa em um caderno acima de uma mesa próxima a uma das poltronas.

Amelia encarou o pouco que podia fazer. Com o tempo, principalmente depois de contar suas dores para Lenora, o espaço tornou-se mais seu do que do que o antigo dono. Já era familiar sentar-se à escrivaninha após o café da manhã, encarando a luz que entrava pela janela; ou então começar a acender as velas quando o sol caía. Ali, com conforto e com a mente desligada de julgamentos sobre o que escrevia, a mão esquerda de Amelia movia-se rápido pelo caderno, manchando um pouco a pele dos dedos e também o papel devido ao movimento. Era canhota. Estava feliz. E tinha medo de se despedir de tudo isso. 

Parte de si imaginava desorganizar as coisas e inventar um problema. Não existiria dificuldade em armar algo e assim estender sua estadia por mais tempo, embora fosse uma alternativa que somente postergaria seu problema. No entanto, ainda que essa opção orbitasse seus pensamentos, sua teimosia em ser honesta imperava.

Iria conversar com Lenora sobre ficar ali.

Alfonso ensinava-a sobre a poda de plantas, mesmo que a comunicação entre os dois sofresse de tropeços — Amelia se confundia aqui e ali com sinais — Albert pedia opiniões nos desenhos e Maria convidava-a dia sim, dia não, para provar a receita de geleia de morango que estava aprimorando; afinal, o Hanukkah aproximava-se e ela precisava rechear os sufganiyot. Todos se davam bem. Portanto, permanecer ali, ocupando qualquer vaga que fosse, soava uma alternativa razoável. Lenora entenderia. 

Ou Amelia esperava que sim. Mesmo que não tivesse encontrado a composição musical que a patroa desejava, o restante do cômodo estava em ordem. Não havia mais onde procurar.

Mas essa conversa poderia esperar. Amelia ainda precisava organizar melhor os documentos e fazer uma última varredura nas gavetas da escrivaninha. Em teoria, esta parte próxima da experiência no escritório de advocacia, porém poucos itens ali verdadeiramente podiam ser separados na tabela de temporalidade de documentos, já que todos pareciam antigos e pessoais. 

Enquanto encarava a certidão de casamento de Lenora e Edgard em mãos — ou a suposta certidão de casamento — Alfonso adentrou a escrivaninha de súbito, fazendo barulho com seus passos duros e balançando um envelope. Amelia tomou um susto e esbarrou no vidro de tinta ainda meio aberto com o cotovelo, derrubando-o dentro da gaveta. Antes que estragasse os cantos dos documentos ou a madeira, pegou o vidro de tinta de volta e enxugou o excesso com as próprias mangas da camisa no desespero. E por fim, ofereceu um sorriso nervoso ao jardineiro, que riu de volta. 

— Espero que tenha notícias boas. — Ele sinalizou após entregar o envelope. Tinha passado na vila e pegado a correspondência. — Lenora não teve. 

— Por que?

Alfonso mudou a expressão para uma mais grave.

— Agnes. A lavadeira. Partiu para ver a filha grávida. Mas se assustou com o tempo. Está igual a filha. Não voltará.

Amelia achou que tinha compreendido errado os movimentos das mãos de Alfonso. Não soube o que responder. Em parte pelo seu estranhamento, em parte por sua preocupação com Lenora, não pediu explicações — o que provocou outro autoquestionamento em Amelia. Às vezes, sentia que Alfonso era o mais direto em se comunicar com ela, por mais que o diálogo entre os dois engasgasse. No entanto, ela deixava essas lacunas existirem. Talvez tivesse medo de entender demais.

O fato é que, depois de um breve comentário que o escritório estava bonito, Alfonso se despediu. Amelia apressou-se em abrir a carta. 

A primeira coisa que notou foi o erro na data. Não estavam ainda naquele mês e soava-lhe estranho que a meticulosa senhora Clemonte não tivesse prestado atenção em algo tão simples. É claro que ela podia pensar que a bibliotecária estava apenas envelhecendo e, com tantas coisas para fazer e pessoas para atender na biblioteca, nada mais normal que um detalhe escapasse de vista. Porém, o arrepio na pele de Amelia contava outra história.

Primeiro, a senhora Clemonte respondeu pontualmente — e com seu humor de sempre — sobre os tópicos da carta escrita por Amelia: as roupas antiquadas, os outros funcionários, a tranquilidade que sentia. Mas o episódio estranho de Albert mencionar a guerra suscitou outro tom na idosa. 

 

“Ah, querida. Eu te alertei sobre a colina ser só passagem, não destino. E como você ansiava pela passagem de tempo, pensei que seria uma boa ideia. Três meses na colina seriam tempo mais que suficiente aqui, na sua cidade natal. Haveria não de curar todas as feridas, mas pelo menos de estancá-las. E talvez as pessoas não esquecessem de tudo o que aconteceu — do inferno que criaram para você — mas ao menos a poeira teria já se assentado e esses diabretes buscariam outras vítimas.

Como eu sei da colina, é assunto para outra carta. Já adianto que não sei muito, talvez até menos do que as estranhezas que deve ter notado. Você é perspicaz, embora não se dê créditos. 

Sinto falta da sua companhia sensata e de ter que torcer meus miolos para sugerir algum livro do seu gosto ou para suas pesquisas. Mas não censuro sua notável, porém não explícita, ânsia de passar mais tempo no casarão da colina. Já era hora de você viver suas fantasias. 

Tudo estará diferente quando você voltar — se decidir voltar. Mas mesmo que a colina não fosse do jeito que é, as coisas ainda seriam diferentes porque você voltaria diferente. 

Nenhum mal te acometerá. Quanto a mim, você sabe onde me encontrar.”

 

De novo, os pensamentos de Amelia apontavam para lugar nenhum. Suspeitava que sua capacidade cognitiva tinha sido reduzida consideravelmente, como se jamais tivesse passado seus olhos por letras e frases inteiras antes. Mas, juntando os cacos de informações, ela sabia o que concluir: havia algo de errado com a colina, não só porque os pássaros tinham escolhido parar de cantar ali depois de uma lenda duvidosa. Era o tempo. A poeira não se dava o trabalho de subir a colina e nem o tempo dava sinais de querer correr normalmente. 

Ela pensou em Albert falando da guerra. Das crianças implicarem que talvez ela ainda recebesse uma resposta da carta que enviou. As datas diferentes. A lavadeira que havia se assustado com a aparência dela e da filha. E é claro, o primeiro detalhe que reparou em Lenora: as roupas antiquadas.

Como a senhora Clemonte não havia alertado-a sobre isso? Como ninguém havia alertado-a sobre isso? Amelia queria sentir raiva, mas não sentiu. Nenhum deles tinha ciência de sua intenção de permanecer lá por tempo indefinido. E de que jeito ela acreditaria em tamanha ladainha sobre o tempo? Sabia que ela própria não acreditaria. Sabia também que existiam coisas que uma comunicação direta e limpa ainda era incapaz de alcançar.

O que não sabia era o que fazer com essa informação que se assentava no seu cérebro. Por um momento, ela tentou só pensar. No instante seguinte, achou melhor ocupar suas mãos com alguma coisa. Qualquer coisa. Checou os danos da tinta derrubada nos documentos, que não era muita e definitivamente não atrapalhava em nada. Viu que sua camisa branca estaria para sempre manchada na ponta da manga. E por fim, notou que a tinta parecia escorrer por uma fresta que antes não havia notado dentro da gaveta.

Amelia franziu os cenhos. Afinal, entendeu a razão de não gostar de investigar segredos: sempre descobria alguma coisa. Era inevitável.

Abriu a gaveta do lado oposto e comparou a profundidade das gavetas: aquela que abriu naquele instante era mais funda, fato que levou a entender que a anterior tinha um fundo falso. Com um suspiro, pegou a lâmina cega do abridor de cartas e fez o movimento de pé de cabra no fundo da gaveta. E sem muita dificuldade, sentiu e ouviu um estalo. Puxou a placa fina de madeira — o fundo falso — e revelou o que estava escondido: dúzias de papéis amarelados, todos com notas musicais desenhadas em pautas. Ao puxar os papéis, sentiu um peso, ainda que não muito grande.

Enfiou a mão dentro da gaveta, tirando de lá um pequeno objeto redondo. Era bonito, antigo, dourado e azul. Uma caixinha de música. Ainda que bonita, Amelia colocou-a de lado para se focar na composição.

E assim como sua patroa mencionou, não havia título e tampouco indicação da autoria. As notas musicais, de dó à si, claramente haviam sido escritas por uma mão humana com pena e tinta preta, não uma espécie de impressão. E nos cantos inferiores do lado direito, havia a numeração das páginas. Amelia levantou-se da cadeira.

Precisava falar com Lenora.

Saiu correndo do escritório com os papéis em mãos. Não chamou pelo nome dela, talvez nem tivesse força para encontrar a voz na garganta enquanto sua cabeça tentava manter a sequência de eventos clara. Cruzou o caminho com Albert, notou que Maria encarou-a com espanto. Nada a interrompeu até que chegasse até o quarto de sua patroa. A porta estava entreaberta, viu-a sentada em uma poltrona perto do vidro, a carta de Agnes ainda em mãos. Amelia entrou sem rodeios e sem avisos.

— Lenora. 

— Ah, Amelia. — Ela levantou o queixo, passando em seguida as costas das mãos na face para enxugar as lágrimas. Seus olhos estavam vermelhos de um choro recente. — Não queria que me visse assim.

O coração de Amelia apertou-se. Com mais calma, ela aproximou-se da outra, sem saber se parecia apropriado oferecer a sua mão para segurar a dela. Em seu íntimo, havia um quê de medo e um quê de fascinação. Aquele lugar, o casarão na colina, não era um lugar normal. Agora Amelia entendia isso. E Lenora não podia ser uma mulher comum. Isso ela sempre pensou. E se o bom senso apenas mandaria Amelia sair, o desejo de amparar Lenora era mais forte. 

— Me soa injusto você me acolher por Ligeia enquanto eu não posso retribuir, independente do motivo.

— É pela Agnes. Ela não vai mais voltar.

Ela pareceu mais solitária do que nunca. O quarto era um dos mais afastados dentro da circulação diária dentro do casarão, e o que soava antes como privacidade, agora lhe parecia isolamento. Os ornamentos de ferro nas janelas pareciam grades de uma gaiola. A silhueta de um piano de cauda coberta por um tecido branco jazia como uma assombração dentro do cômodo imenso.

— Eu... Eu soube. Alfonso comentou. Você sente saudades?

— Sim, mas... Não só isso. Eu sinto que é minha responsabilidade. Digo, por ela passar muito tempo aqui. A família sentiu mais falta dela do que eu poderia sentir. — Lenora apertou as pálpebras e chorou de novo um par de lágrimas. Pareciam diamantes líquidos. E, embora ela não pudesse saber que Amelia compreendia parte das estranhezas de como tempo corria ou deixava de correr na colina, Lenora parecia batalhar na dúvida de revelar mais coisas ou não. O não venceu. — Desculpe, parece que você veio me falar alguma coisa. 

Amelia ergueu os papéis.

— Eu encontrei a composição que queria. Ainda está bem legível.

— Ah, Amelia! — Lenora ajeitou-se na poltrona, revigorada. Aquela sensação de brasa apagada se esvaiu de seus olhos, que agora brilhavam acesos. — Isso é ótimo. Isso significa que... 

— Que terminei o serviço.

A expressão das duas tornou-se sóbria. Amelia não teve coragem de encará-la de novo e sabia que se tratava, de fato, de pura covardia. Covardia, hipocrisia e uma dose de estupidez.

Cogitava a possibilidade sólida de voltar para a cidade, cumprindo mais um conselho sábio da senhora Clemonte, que dava apenas conselhos sábios. Quem sabe até não fosse mais uma questão de possibilidade de voltar, mas sim da necessidade. Que vida ela teria se não aquela que conhecia? Mas a verdade era talvez burra por ser desejosa: na memória de Amelia, aqueles com quem ela conviveu antes já eram todos fantasmas. Ela se fantasiava ali, mesmo que isso significasse que tudo o que conhecia se tornasse um difuso espectro.

A voz de Lenora era muito suave quando perguntou:

— Você quer partir?

— Não se me deixar ficar. — Era a confissão e pedido de Amelia. — Embora você vá no verão, não?

Elas se encararam, enfim. E Lenora sustentava um sorriso triste que queria dizer mil coisas.

— Obrigada, Amelia. Por tudo. — Uma pausa. — Você se importa de ouvir música durante a noite?

Amelia sorriu. Também quis dizer muitas coisas, mas achava que só conseguia escrevê-las. Limitou-se em uma resposta simples:

— Não, não me importo.


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