Hora Extra escrita por O Elessar


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Seja bem-vindo. Espero que goste da história.



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7 de janeiro de 2019

 

O ano mal havia começado e Carlos já estava de saco cheio.

As batidas de seu teclado soavam desanimadas. A maldita tecla f exigia que ele a apertasse ao menos três vezes para funcionar. O ventilador gira lentamente em seu próprio eixo, lançando uma lufada de ar frio a cada cinco segundos. Os papéis querem voar; ele os segura. Estava quente demais para desligar o aparelho, mas o vento também parecia muito gelado. De todo modo, a escolha não era dele: Laércio e Eliza, seus colegas de departamento, sequer perguntaram se ele estava com calor antes de girar o botão.

Seu suor escorria pela testa. Um estranho enjoo o incomodava. Estava com um pedaço de frango preso no dente desde a hora do almoço e não conseguia tirá-lo de jeito nenhum. Para piorar a situação, a coxinha não tinha caído muito bem. Sabia que devia evitar o bar do Jardel desde que viu um rato morto no banheiro, mas a proximidade do escritório e a imensa distância do shopping mais próximo dificultavam a decisão.

Olhou para o relógio, cerrando os olhos. Não enxergava nada. Seu grau havia aumentado, mas ainda não tivera tempo para procurar um oculista. Também, com uma rotina daquelas… se bem que, pra falar a verdade, talvez lavar as lentes de vez em quando deixasse as coisas menos complicadas. O problema era lembrar de fazer isso quando estava em casa. Seja como for, ele não enxergou nada.

— Cinco pras cinco, Carlão — disse Laércio.

— Valeu.

Faltava pouco para o fim do expediente, mas ainda era segunda-feira. De todo modo, estava louco pra ir pra casa. Tinha dormido mal à noite, e a verdade é que estava morrendo de sono. A ideia era chegar em casa, cair na cama e acordar só no dia seguinte.

Olhando para a planilha que preenchia, se espreguiçou. Olhou em volta. Levantou, pegou uma xícara de café, sentou de novo. Bebeu. Os olhos passearam pelas linhas. E agora? O que fazer?

Tateou o bolso traseiro, puxando a chave do banheiro.

— Já volto.

Foi ao banheiro. Mijou. Se olhou no espelho. Arrumou o cabelo. Percebeu que não tinha lavado as mãos. Lavou as mãos. Aproveitou e lavou o rosto. Não queria cochilar e bater o carro na volta. Mas ele tinha tomado café, não tinha? Café não é pra isso? Ah, mas todo mundo sabe que café só acorda criança e olhe lá. Com adultos é assim mesmo.

Puxou o celular do bolso. Abriu o WhatsApp. Só tinha mensagens de boa tarde no grupo da família. Colocou o celular no bolso de novo. Lembrou de ver o horário, puxou mais uma vez: 16:59.

Arrumou a gravata e voltou pro escritório. Abriu a porta, seguiu para sua mesa, se sentou. Dissimulou um pouco: escreveu rapidamente um trava-línguas na planilha. Apagou. Olhou em volta, suspirou…

— Caramba, já são cinco horas — fingiu surpresa.

— Voou hoje, né? — perguntou Eliza, já desligando o computador.

— Pois é — prosseguiu Laércio. — Ei, eu vi que a Laura casou, né?

Carlos engoliu em seco. Fingiu desinteresse.

— Foi esse final de semana? Achei que era mês que vem.

— Foi nesse — intrometeu Eliza. — Meio esquisito, casar em janeiro… tão perto do Ano Novo. Você conheceu o Rogério, Carlos?

— Não pessoalmente. A Duda fala dele de vez em quando.

Ficaram em silêncio por um momento. Cada um terminava de arrumar suas coisas.

— E você, tá saindo com alguém?

Veio a pergunta que ninguém queria ouvir. Carlos expirou pesadamente e terminou de enfiar a garrafa d’água na mochila.

— Bem… mais ou menos. Conheci alguém esses dias, mas acho que não vai dar certo.

— Por quê?

— Ela tem um filho no mestrado.

— Ah, que isso, Carlão! Cê sabe… panela velha é que faz comida boa, né?

— Deve ser.

CARLOS!

A voz ecoou vindo da outra sala. Todos engoliram em seco.

— Meus sentimentos — brincou Laércio.

Devagar, Carlos se aproximou da sala do chefe. A porta parecia se agigantar a cada passo. Seus dedos tremiam. Olhou para trás antes de entrar.

O doutor Wilson não era exatamente um sujeito agradável. Sessenta e poucos anos, gordo, barba por fazer, cabelo branco rigidamente penteado para trás (ainda que não tivesse muito) e o bronzeado natural de um bom filho de libaneses. Seu porte era de alguma maneira forte, tal qual o de um fazendeiro. Mas o que realmente dava medo era seu olhar aquilino e firme, bem como sua postura sempre agressiva. Era como se sempre presumisse que as coisas sairiam como queria, estando pronto para espancar alguém se algo não funcionasse.

— Acabou aquele relatório da Nestlé? — perguntou, ainda observando algo em seu computador.

— Não, senhor. Mas estou quase no fim — mentiu.

— Preciso dele pra hoje.

Carlos travou. Olhou para o relógio através da janelinha sobre a porta. Não enxergou nada, mas era irrelevante.

— É… já está quase na hora de sair, doutor Wilson.

— Eu preciso dele pra hoje.

Carlos hesitou por um tempo, mas suspirou. Ao menos poderia ter um pouco mais de dinheiro ao final do mês se fizesse hora-extra.

— Está bem.

Saiu da sala. Voltou para o computador e o ligou.

— Ué. O que houve? — perguntou Laércio.

— Hora-extra.

— Ah — exclamou, olhando em volta. — Precisa de ajuda ou…?

— Eu me viro — rebateu com mau humor.

O computador demorou a ligar. Estava travando.

— Beleza. Até amanhã então.

Os dois saíram. Carlos seguiu trabalhando. Agora operava a toda para acabar tão rápido quanto pudesse, mas era tarde demais. Não estava nem na metade.

Não demorou para que Wilson aparecesse com sua maleta pronta. Arrumando seu terno, jogou a chave na mesa de Carlos sem prestar muita atenção. Ela caiu perfeitamente dentro do copo de café.

— Feche tudo quando terminar, Carlos. Até amanhã.

— Até.

Puto da vida, suspirou, tirou a chave do copo e a colocou em cima da mesa. Olhou para a janela aberta e arremessou o café com fúria.

— Velho filho da puta.

Pegou um guardanapo, limpou a chave, limpou a mesa. Pegou outro café. E continuou a trabalhar até tarde.

Ainda estava trânsito quando saiu. Estava com sono. Estava escuro. Acabou dormindo no volante quando parou em um sinal vermelho.

Acordou com violência, batendo a cara no vidro. O carro era jogado pra frente. O som alto do alarme começou a tocar. O xingamento do outro motorista — o mesmo que usara com seu chefe — ecoou em sua cabeça antes mesmo que entendesse o que estava acontecendo.

Desceu do carro. Conversou. Pediu desculpas. Não aceitaram suas desculpas. Brigaram. Cada um concordou em pagar o próprio prejuízo.

Chamou o guincho. Ficou até tarde esperando. Chamou um Uber pra voltar pra casa. Pelo menos o seguro pagaria pelo prejuízo, mas o preço da corrida seria o suficiente pra gastar o que ia receber pela hora-extra.

Chegou no apartamento cansado. O elevador estava com problema, então subiu de escada. Jogou as roupas no chão e deitou na cama de cueca. Suspirou. Pegou o celular, abriu o Whatsapp. Sem mensagens de novo. Abriu o Instagram. Fotos do casamento da Laura por todos os lados. Jogou o celular na parede.

Nervoso, massageou as têmporas.

— Acho que preciso de uns calmantes.

Se levantou e acabou se olhando no espelho. Estava magro e barrigudo. O cabelo grande demais. As olheiras já pareciam duas covas sob os olhos. Precisava começar a malhar. Mas com que tempo? E por que, se não estava saindo com ninguém?

Foi pra cozinha, abriu a geladeira. Seis latinhas de cerveja, uma cenoura e dois ovos. Pegou a cerveja, fechou a geladeira. Fez um miojo. Comeu com cerveja.

Voltou pro quarto, pegou o celular. Mensagem da Laura. Seu coração parou.

Laura: Oi

Laura: Ocupado?

Coçou a cabeça, um tanto nervoso. Mas respondeu de forma fria.

Eu: Não.

Eu: Fala.

Laura estava digitando. Tantos anos depois, ele ainda sentia frio na barriga.

Laura: A gente tá na lua de mel.

Laura: E minha mãe tá meio doente, vai no médico amanhã.

Laura: Pode pegar a Duda na escola?

Xingou-a mentalmente. Mas respondeu.

Eu: O carro tá no conserto.

Eu: Mas sim.

A resposta veio quase instantaneamente.

Laura: Putz.

Laura: Ok, obrigada.

Achou que ela tinha terminado. Minutos depois, veio outra resposta.

Laura: Ei, se quiser pagar a pensão só dia 5 não tem problema.

Laura: Resolve o B.O. do carro.

Laura: O Rogério disse que a gente dá um jeito aqui.

Era bondade demais mesmo. Ainda mais depois de um casamento de duzentos paus. Carlos a xingou mentalmente de novo.

Eu: Ok, obrigado.

Foi pra geladeira. Pegou outras duas cervejas. Bebeu e foi dormir.

 

8 de janeiro de 2019

 

Chegou cansado no trabalho. O plano de colocar o sono em dia foi pro saco por causa de tudo o que aconteceu.

— Bom dia, Carlão — disse Laércio.

— Carlos! — cumprimentou Eliza, como se não o visse há meses. — Tudo bem? Tá com uma carinha de cansado…

— Dormi mal, mas tá tudo certo.

Sentou e se colocou a trabalhar. Começou bem até. Logo enrolou, bocejou, foi pegar café. Olhou pro celular.

— Caramba, Carlos! O que aconteceu?

Eliza tinha simplesmente se materializado ao seu lado e olhava para o celular por cima do ombro.

— O quê?

— A tela toda rachada.

— Ah tá. Ele… caiu no chão — disse, se forçando a pensar em algo melhor. — Eu… tive que subir de escada ontem porque o elevador do prédio é uma merda e acabei tropeçando.

— Ah. Que pena… tem que levar pra arrumar. É a Duda no wallpaper? Deixa eu ver?

Carlos entregou o celular na mão dela, meio confuso. Eliza olhou para a foto e elogiou a menina. Enquanto isso, Laércio olhava para ele com um sorriso e erguendo as sobrancelhas — sinal universal para “ela está tão na sua!”

— Ah, obrigado.

Ela devolveu o celular. Ele guardou, limpando o suor da testa.

O tempo passou. Na hora do almoço, ela perguntou se ele queria ir a um bar hoje de noite. Ele disse que precisava pegar a filha na escola, mas que aceitava ir amanhã. Estava marcado.

Quando estava se aprontando para ir embora, veio o grito de novo.

CARLOS!

Suspirou, olhou pro relógio, recebeu o olhar de medo dos outros, levantou e foi. A mesma porta que parecia gigante. A mesma postura de quem não liga para nada.

— O gerente deles me ligou. O relatório da Nestlé tá uma merda. Preciso que você refaça isso pra ontem.

— Doutor Wilson, eu tô um tanto ocupado hoje. Preciso pegar minha filha na escola.

Wilson o olhou de cima a baixo.

— Você é pai?

— Sim, senhor.

— Que horas ela sai da escola?

— Seis e meia.

— E onde é a escola?

— Na Mooca.

— Então dá tempo de você fazer pelo menos metade. Vai rápido.

Carlos sentiu raiva, mas assentiu e obedeceu. Mais uma vez, sentou à mesa e voltou a trabalhar. Os outros dois já haviam ido embora.

Saiu às 18:10. Chamou um Uber. O motorista Manuel aceitou. Estava a quinze minutos dali.

— Velho filho da puta… — murmurou Carlos enquanto esperava.

Se passaram vinte minutos. Entrou no carro.

— É Carlos, né? Tudo bem?

— Isso. Tudo. Pode correr, por favor? Tô atrasado pra pegar minha filha na escola.

— Claro.

Correu. Demorou pouco tempo para que o celular tocasse. Era Laura.

— Alô?

CADÊ VOCÊ, PORRA?

— Tô indo, ué.

TÁ INDO? A ESCOLA LIGOU DIZENDO QUE NINGUÉM VEIO BUSCAR A DUDA!

— Ela não sai às seis e meia?

ELA SAI ÀS CINCO E MEIA, SEU RETARDADO DO CARALHO!

Carlos massageou as têmporas, impaciente. Suspirou. Como podia ser tão imbecil? Manuel ouvia tudo e segurava uma risada.

— Tá, foi mal, foi mal. Avisa eles que eu tô chegando.

Puta merda, Carlos… é por esse tipo de coisa que você só se fode na vida, sabia? Não dá pra confiar em você pra merda nenhuma.

Carlos ia rebater, falar das habilidades dela de comunicação, se justificar… mas Laura desligou antes que ele pudesse dizer o que quer que fosse. O xingamento morreu em sua garganta.

— Dia difícil? — perguntou o motorista, olhando pelo retrovisor.

— Só dirige.

Chegou à escola às 18:50. Correu para o portão. Duda estava com os olhos vermelhos de choro.

— Oi, meu amor — disse, se ajoelhando e a abraçando. — Me desculpa, o chefe me segurou no trabalho…

— Sei — murmurou a menina, correndo para o carro.

Carlos correu atrás dela, sob o olhar de reprovação da funcionária da escola. Pegou a mochila da Hello Kitty e abriu a porta para ela entrar. Se sentou ao seu lado, passou o cinto pela barriga.

— O Manuel tá de prova que eu corri bastante.

— É verdade — disse Manuel.

— Quero comer lanche — desconversou Duda.

Carlos engoliu em seco, mas assentiu. Mudou a trajetória do Uber. Esperou quase uma hora na fila. Enfim, recebeu a porcaria do McLanche Feliz, acompanhado de uma porção de batatas de tamanho médio. Mais uma hora-extra que escorria pelo ralo.

— Tá gostoso aí?

— Ahã.

Carlos comia as batatinhas. Seu estômago roncava, mas não podia gastar mais esse mês.

Levou Duda pra casa. Ela falou do Rogério umas três vezes. Tentou mudar de assunto. Não conseguiu. Quando chegou, a avó dela, dona Regina, não estava muito feliz. Ficou ainda pior quando descobriu que tinham comido lanches.

— A Laura não deixa a Dudinha comer besteiras durante a semana, Carlos.

— É só não contar pra ela, Dona Regina — afirmou, exasperado.

— E mentir pra minha filha? O que você pensa que eu sou?

“Nem parece que deu pro vizinho e mentiu pro marido durante dez anos”, pensou Carlos. Mais uma vez, o xingamento morreu na garganta.

— Faça o que quiser. Boa noite.

Foi embora. Voltou para casa. Teve que subir as escadas de novo. Comeu mais um miojo com cenoura e cerveja. E foi dormir.

 

9 de janeiro de 2019

 

Não deu pra recuperar o sono de novo. Acordou com mensagens de Whatsapp de um número desconhecido.

Drika: Olá.

Drika: Aqui é a Drika da companhia de seguros. Falo com o senhor Carlos Tibério?

Drika: Preciso alertá-lo que o protocolo 019099118499.08321134.089897 referente ao GOL PRATA de placa encerrada nos números 678 foi RECUSADO pela seguradora por EXCEDER O ACORDO CONTRATUAL. Favor entrar em contato quando possível.

Drika: O valor do conserto foi de R$ 8.732,65. Favor informar ciência para que possamos enviar informações da conta para depósito ou colaborar para eventual acordo.

Carlos jogou o celular na parede. De novo.

Pra piorar, estava atrasado. Comeu um pão duro com água. Chamou um Uber. Estava cinquenta reais. Teve vontade de pular pela janela. Se lembrou do encontro com Eliza e se permitiu dar um sorriso cansado. Aceitou a corrida.

No caminho, respondeu.

Eu: Olá, Drika.

Eu: Me perdoe, mas não dei autorização para que o conserto fosse realizado por este valor. Oito mil é quase o preço de um carro novo.

Ela respondeu quase instantaneamente.

Drika: Nesse caso, o senhor pode entrar com uma ação judicial.

— Filha duma puta.

Carlos sentia as mãos tremerem de novo. Mal percebeu que já haviam chegado. Pagou a corrida e desceu do carro.

Estava completamente distraído, andando até o trabalho, quando sentiu um movimento brusco à sua direita. Mal conseguiu olhar antes de ouvir o moleque dizer:

— Perdeu, passa tudo.

Mordeu a língua. Olhou pro lado. Um sujeito mais baixo que ele, de tatuagem no rosto. Se não estivesse armado, ele podia ao menos tentar reagir.

Sem muito o que fazer, puxou o celular e o entregou ao bandido.

— O relógio também.

— Isso aqui não vale dez reais.

— Não te perguntei porra nenhuma, seu fodido do caralho.

Tirou o relógio e o entregou também. O bandido guardou os itens e correu para longe.

Carlos se abaixou e gritou, puxando os cabelos com ódio. Cerrou os dentes. Ainda sentia gosto de sangue na boca.

 

Foi para a delegacia, passou um bom tempo lá. Registrou o B.O. Voltou para o trabalho a pé, suado e cansado. Chegou quase no horário de almoço. Laércio e Eliza o encararam. Antes que falasse algo, a voz de Wilson ecoou:

CARLOS!

Foi para a sala dele.

— Quem você pensa que é pra chegar essa hora?

— Eu fui assaltado, doutor. Estava na delegacia.

Wilson olhou para ele de cima a baixo.

— É sério?

— Sim.

— Ok. Mas que não se repita. E você vai trabalhar até mais tarde para compensar.

Carlos cerrou os dentes. Ouvia seu coração bater nos ouvidos. O braço formigava. Achou que ia ter um ataque cardíaco, mas assentiu e saiu. Ao menos ajudaria a pagar pelo celular e pelo relógio… ou pelo advogado. Puta que pariu, como tinha coisa pra pagar.

Se sentou e começou a trabalhar. Explicou aos demais o que tinha acontecido. Eliza veio abraçá-lo. Ficou um pouco mais feliz. Avisou que iria se atrasar pro encontro, ela disse que tudo bem. Perguntou se queria remarcar, ele negou. “Vai saber se vou estar vivo amanhã se seguir nesse ritmo.” Ela riu. Ele ficou mais feliz. Fazia tempo que não riam de nada que ele dizia.

Continuou a trabalhar até depois que os outros foram embora. Dessa vez, Wilson também não foi. Ficou trabalhando. Carlos se preparou para sair, ele saiu também.

— Precisa de carona, Carlos?

O homem estranhou a bondade do chefe, mas aceitou. Desceram juntos até o estacionamento. Já era tarde, mas chegaria no bar a tempo.

— Onde é sua casa?

— Lá na Vila Mariana. Mas eu vou num bar aqui perto, na Paulista. Tenho um encontro.

Você, um encontro? — Wilson parecia achar graça. A maldade em sua voz era evidente. Soltou até uma risada. — Posso saber o nome da maluca?

Cerrou o punho, entrou no carro. Demorou a responder.

— É a Eliza, senhor Wilson.

Wilson riu. Gargalhou, na verdade. Ligou a Mercedes.

— Até que tem bom gosto, Carlos. Parabéns.

Carlos sorriu, convencido. O carro acelerou. O portão abriu e eles seguiram em frente. Ficaram em silêncio por um tempo, até que Wilson abriu a boca.

— É boa de cama.

Ele estranhou. Sentiu o sangue subir e olhou para o lado com espanto.

Quem?

Wilson deu um sorriso convencido.

— A Eliza, porra. Cê trabalha com ela todo dia e acha que ela conseguiu o emprego por causa das habilidades no pacote Office?

Carlos olhava para ele, estupefato. O coração voltou a ecoar. O braço formigava. O grito morreu na garganta.

— Saquei.

Seguiram por um tempo. Demorou para Carlos perceber que estavam indo na direção errada.

— Doutor, o bar é pra lá.

— Eu sei.

Wilson seguiu por um tempo. Estavam numa parte um pouco mais deserta do centro. Pararam na frente de uma agência do Bradesco. Wilson desligou o carro e desceu.

— Espera aí um pouco.

Entrou na agência. Estava absolutamente vazia. Carlos desceu do carro e ficou esperando do lado de fora. Percebeu que um mendigo estava dormindo, desmaiado, do lado de uma garrafa vazia de 51. Até o mendigo tá bebendo melhor do que eu, pensou.

Wilson saiu depois de uns minutos. Puxou um bolo de notas de cinquenta reais do bolso, contou duas e deu para Carlos.

— Compra umas bebidas e uns agrados pra ela — disse o velho. — E uma camisinha. Ou duas. Vai saber há quanto tempo cê não molha o biscoito.

Carlos já havia se sentido bravo várias vezes naqueles últimos dias. Dessa vez, no entanto, o que sentiu era até difícil de descrever. Sua pressão subiu, sua cabeça doía, sua visão ficou nublada. Teve a impressão de ouvir um apito. O coração pareceu parar de bater.

Sem dizer nada, sem pegar o dinheiro, Carlos se virou e deu alguns passos, como se fosse um robô. De forma lenta, completamente calado, se abaixou, pegou a garrafa de vodka vazia e, em um impulso veloz, se virou e a acertou na cabeça de Wilson.

O velho caiu e bateu a nuca no carro. Carlos avançou sobre ele como se estivesse possuído. Acertou dois, três, quatro chutes. Depois, se abaixou e o socou até perder a conta.

Ofegante, se sentou no meio fio e se apoiou no carro. Olhou para o lado. Não havia muito sangue, mas o velho estava deitado no chão. Como que percebendo o que tinha feito, mas ainda consumido pela raiva, se levantou cambaleante e colocou os dedos no pescoço dele.

Nada. Estava morto.

Engoliu em seco. Olhou em volta. Estava escuro, sem câmeras à vista. Pensou rápido: enfiou as mãos nos bolsos dele e puxou a chave do carro. Destravou o porta-malas e, com muito esforço, o jogou para dentro. Fechou e percebeu que o bolo de dinheiro havia caído no chão. O enfiou no bolso e correu para o banco do motorista.

Ligou o carro. Sentia o coração bater forte, mas também certa alegria inexplicável. Um sorriso mórbido repousava em seus lábios. Era como se estivesse bêbado.

Colocou a cabeça para pensar. Eliza. Não podia deixá-la esperando.

Acelerou, completamente maluco. Os golpes de instantes atrás ainda estavam vívidos em sua mente, mas algo parecia tirá-lo de si. Chegou ao centro, procurou um bom estacionamento e deixou o carro lá. Arrumando as roupas como podia, correu para o bar.

— Carlos…! — Eliza parecia desanimada, se levantando para sair. Estava vestida de vermelho, mais bonita do que nunca. Antes que dissesse qualquer coisa, Carlos a beijou.

O beijo foi longo e apaixonado. Quando acabou, ela parecia atordoada, mas estranhamente feliz. Ele não fazia a menor ideia do motivo pelo qual fizera aquilo, mas algo em seu âmago disse que daria certo. E deu. Se ofereceu para pagar uma bebida. Eles entraram no bar de novo, beberam e conversaram amigavelmente.

Seguiu o conselho de Wilson. Usou o dinheiro que tinha conseguido para comprar as bebidas mais caras do lugar. Ficaram completamente bêbados. Voltaram de Uber pro apartamento dela. Eliza o convidou para subir e tomar um café, ele aceitou. Fizeram o que tinham que fazer — a primeira vez dele em pelo menos oito meses, mas melhor e mais selvagem do que qualquer outra. Com um beijo, ele se despediu e foi embora.

Chegou em casa, tirou as roupas e caiu na cama, exausto. Dormiu.

 

10 de janeiro de 2019

 

Carlos acordou no dia seguinte de ressaca. Seu sonho tinha sido um tanto louco demais. Balançou a cabeça e, cambaleando, entrou no chuveiro. Tomou banho, vestiu roupas novas, comeu ovos mexidos e chamou um Uber pro trabalho.

Entrou no prédio, apressado. Para sua surpresa, foi recebido com um beijo de Eliza.

Tô louca pra repetir a dose — sussurrou ela.

Carlos congelou enquanto ela saía da sala, carregando algumas pastas. Ficou paralisado, olhando para a frente, olhos arregalados. Aquilo realmente tinha acontecido? Laércio riu.

— Você é brabo mesmo, hein? Mas que isso! Tá assim por quê? Parece que nunca viu mulher na vida, Carlão!

Carlos caminhou lentamente até sua mesa, se sentando. As mãos tremiam. O coração batia forte, o braço formigava. Agora o peito doía. Puta que pariu, o que ele tinha feito? Mal conseguiu ligar o computador. Seu pensamento o levava longe.

CARLOS!

Carlos quase cagou nas calças. Se levantou, apressado, e correu para a sala do chefe. Wilson o olhava do outro lado da mesa. Estava em perfeito estado, como se nada tivesse acontecido na noite anterior.

— D-d-doutor?

— Quantas vezes eu vou ter que te falar que esse relatório da Nestlé tá uma merda? Vai fazer de novo! Só sai daqui quando estiver impecável, e eu mesmo vou revisar. Entendeu?

O rapaz o encarou por alguns segundos. Estava absolutamente sem palavras.

— Entendeu, Carlos?

— Sim, senhor.

Carlos saiu da sala lentamente, a cabeça fervilhando. Devagar, se sentou em seu lugar.

E voltou a trabalhar.


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Notas finais do capítulo

Qual sua teoria sobre o final? Deixe aqui nos comentários!
Espero que tenha gostado.