Eu Protesto escrita por Lady Murphy


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

História baseada em um prompt muito louco que vi no tumblr. Não vou colocar aqui para não entregar o jogo de uma vez. Espero que goste!!



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Roer as unhas era um péssimo hábito, Marilia sempre dizia a Anne. Hoje, porém, ela não podia evitar. A ansiedade a corroia como uma comichão por todo o seu corpo. Ela saiu da janela para sentar-se na cama, buscando algum apoio.

O relógio acima da escrivaninha marcava quase 6 da tarde. Anne encarou o ponteiro em seu movimento metódico e poderia dizer um pouco zombeteiro. Ele parecia saber o motivo de seu descontentamento, rindo ao perceber que ela não o impediria de correr com o tempo.

Esfregando o rosto cansado, ela se jogou no colchão, pousando na correspondência que a trouxe até aqui. Foi uma manhã agradável com a primavera dando seus primeiros sinais, flores começando a desabrochar no jardim de trás. Ela fez um piquenique com Diana uma hora antes, saboreando a nova receita de bolo de maçã que aprenderam com a professora francesa da amiga. Estava divino. Ela chegou em casa sorrindo de orelha a orelha, dando um beijo rápido nas bochechas de Marilla e acariciando o belo gatinho que recebeu de Jack. Foi perfeito.

Então, ela abriu aquele envelope incrivelmente caprichado e suas pernas tremeram. Um convite de casamento endereçado a ela de Roy Gardner. Deus, ela evitou pensar nele depois daquela noite. Quando ele se ajoelhou no mesmo lugar onde eles se conheceram, puxando do bolso um belo anel brilhante e disse as palavras que ela mais desejou ouvir em toda a sua vida.

E sua resposta foi não. Saiu antes que ela pudesse se conter. Nem Anne conseguiu entender sua reação. Eles namoraram por dois anos, todos seus amigos o amava, Marilla o achava um rapaz respeitoso. Eles estavam predestinados como nos romances que ela lia. Mas quando a pergunta veio, Anne se questionou se era realmente o destino e não apenas seus desejos juvenis que idealizaram aquele rapaz alto, poético e de olhos tristes. Roy podia tirar versos da manga sempre que desejava. E isso era tudo. Ela tentou rir de suas piadas estranhas sobre escritores mortos, ela jura que sim. Faltava algo. Ela não sabia o quê, porém era algo muito importante. Ele ficou chateado, é claro. Eles não se falavam desde o ano passado. Onze meses e duas semanas, precisamente.

Agora, ele estava prestes a se casar com outra garota. Menos de um ano após o término deles e Anne nem podia dizer seu nome em voz alta com medo de perceber que tinha cometido um grande erro. E sim, ela acha que cometeu o maior erro de sua vida, porque ele era todo o ideal de homem que ela imaginou para si mesma. Ela estava confusa na época. Ela podia aprender a gostar de seu humor estranho, eles seriam felizes e tudo estaria inteiramente perdido por sua indecisão.

Anne pressionou o rosto no travesseiro e gritou. Estúpida, estúpida. Ela tentou lembrar das palavras de Diana quando contou sobre o convite.

"Na verdade, não me surpreende que ele tenha seguido em frente tão rápido. Roy sempre me pareceu apaixonado pela ideia de estar apaixonado."

Ela ficou um pouco ofendida, se estiver sendo sincera. Diana acreditava que Roy é um romântico leviano e isso talvez significasse que ela mesma não significou muito para ele. Ou sua amiga do peito poderia estar errada e Roy a amava tanto que apenas um casamento com outra mulher o faria superá-la. Ela gostou mais da última versão.

Só havia uma maneira de resolver isso. Levantando-se da cama, ela arrumou o vestido verde que usava com um novo propósito. Ela foi convidada ao casamento e iria. E mais que isso, ela consertaria seu erro.

Descendo a estrada, a propriedade dos Cuthbert ia se escondendo aos poucos da visão de Anne. Ela tropeçou em uma pedra e soltou uma maldição que deixaria Marilla muito brava. Já escurecia quando ela chegou na frente da igreja. Batendo as mãos nos bolsos, ela procurou pelo convite para confirmar se estava no local certo. O que não encontrou. Droga. 

As pessoas não pareciam muito animadas para um casamento. Talvez fosse o mau gosto da noiva para o arranjo de flores. Que cores mórbidas e sem graça. A porta da igreja se fechou, a cerimônia devia estar começando. Anne parou debaixo de uma árvore sentindo sua resolução se esvair. Ela faria mesmo isso? Estragaria o casamento de Roy na tentativa de reconquistá-lo? Ela pensou nas heroínas de seus livros e histórias que escrevia por si mesma. Elas fariam isso de maneira corajosa. Elas lutariam por seus amores. Tudo bem, ela também faria isso.

Suas mãos suavam loucamente quando parou nos degraus da entrada. Anne respirou fundo, sussurrando as palavras que diria. Com um último suspiro de determinação ela empurrou a porta, gritando a plenos pulmões.

"Eu protesto."

A sala ficou em completo silêncio por um instante. Ela observou ao seu redor. Os bancos quase vazios. As velas espalhadas por todo lado. Os olhos tristes dos convidados vestidos com suas roupas pretas. E o caixão preto no centro.

Anne não estava em um casamento. Ela percebeu tarde demais que havia entrado gritando histericamente em um funeral. O chão podia se abrir aos seus pés que não haveria reclamações de sua parte.

O grito estridente e o baque de uma senhora pálida caindo no chão a puxou de seu estupor de vergonha. Logo, um burburinho encheu a catedral com choros altos e sinais da cruz sendo feitos pelas mãos de quase todos no local.

"É um milagre." Alguém gritou. 

"Deus seja louvado." Outro festejou.

"Ele está vivo. Vivo." A senhora antes desmaiada, levantou com a ajuda de quem Anne imaginou ser seu marido. "Meu filho. Meu precioso filho está vivo."

Ela, então, olhou para o garoto atordoado sentado no caixão. Ele deixou-se ser abraçado pela mãe, encarando o vazio quando seu pai segurou sua mão com força. 

"Gilbert, meu filho. Você está aqui. O Senhor o devolveu para nós." O homem soluçava em meio às frases. 

Anne estava estupidamente assombrada com tudo aquilo. Em um segundo, ela estava colocando seu plano de interromper um casamento em ação e no outro tinha presenciado o que parecia ser a ressuscitação de um garoto. Ela recuou em seus pés, buscando apoio nos bancos de madeira. Ela precisava sentar.

Ela levou a mão aos olhos, rezando para que isso fosse um sonho estranho. Ela iria acordar em seu quarto. Ela deve ter adormecido na cama depois de chegar em casa e sonhou com todos esses acontecimentos. Sim, era isso. Era isso.

"Querida, qual é o seu nome?" Uma mão pousou em seu ombro a assustando.

"O quê?"

"Seu nome." O padre parado ao seu lado repetiu.

"Anne. Anne Shirley-Cuthbert."

"Anne Shirley, você percebe o que acabou de fazer?" Ele perguntou e ela corou sabendo o que viria a seguir. Marilla ficaria tão zangado quando soubesse de sua cena no funeral.

"Eu sinto muito, Padre. Eu…" Ela começou a falar freneticamente.

"Por que está se desculpando? Menina, você foi escolhida por Deus para operar esse milagre. Aquele garoto estava morto antes de você aparecer, vítima da febre tifóide, e agora está vivo."

Ela o encarou sem entender. As pessoas juntaram-se ao seu redor, tocando em suas mãos e cabelos como se tocassem em porcelana. Anne não poderia estar mais confusa. Então, a mãe do menino se ajoelhou à sua frente, lágrimas gordas escorrendo por seus olhos castanhos.

"Obrigada. Obrigada." A mulher repetia como uma mantra. "Suas palavras ressuscitaram o meu filho. Suas palavras."

Anne compreendeu, por fim. Ela riu nervosamente. Essas pessoas acreditavam que ela tinha operado algum tipo de milagre. Que ela tinha feito o menino ressuscitar.

"Eu não fiz isso, senhora. Não fui eu."

"Tem razão. O Senhor o fez por suas mãos. " O padre exclamou alegremente para todos na igreja.

"Perdão, Padre. Mas não é possível. Eu nunca poderia fazer isso. Ressuscitar uma pessoa? Sem chance. Deve ter havido algum engano."

"Ah, querida. Não se surpreenda. Nosso Deus usa quem ele quer para operar suas maravilhas."

A mulher ajoelhada a puxou para seus braços, beijando-o no rosto como fez com o garoto mais cedo. Quando finalmente foi liberta, Gilbert apareceu à sua frente. Ele ainda parecia cansado, círculos escuros debaixo dos olhos castanhos. Anne o encarou, ele lhe era familiar. Ela não era boa com nomes, mas com rostos sim. Eles se conheciam de algum lugar. Ele era um de seus vizinhos? Não, Marilla saberia se um deles tivesse morrido. Da faculdade? Ele tinha a idade dela, talvez um ou dois anos mais velho.

Então, ela lembrou do garoto de sorriso torto e cachos bagunçados que a chamou de cenoura em seu primeiro dia de aula quando tinha 11 anos de idade. Sua boca se abriu em choque. Ela tinha quebrado uma lousa na cabeça dele e foi mandada para casa. No caminho ela prometeu que nunca mais olharia no rosto daquele garoto. Ela conseguiu por um tempo, mas ele era muito insistente em pedir desculpas e ela aceitou, eventualmente.

No verão seguinte, ela soube por Diana que Gilbert havia se mudado para a casa dos avós para ajudar na fazenda. Ninguém escutou falar mais dele depois disso. Bem, até agora. E as notícias não podiam ser mais surpreendentes.

Ele se aproximou seguido por seu pai. Ele se ajoelhou como sua mãe, pegando as mãos trêmulas de Anne. As dele eram calejadas, provavelmente, pelo trabalho duro como fazendeiro. Ela olhou para as mãos unidas quando ele as levou aos lábios que apenas começavam a ganhar cor.

"Obrigada, Anne Shirley-Cuthbert. Eu não estaria aqui se não fosse por você." Gilbert sussurrou em sua pele rosada.

"Eu…" Ela estava prestes a repetir as palavras que disse ao padre, mas ela pensou naquele garoto apoiado em seus joelhos, segurando suas mãos e esperando por uma resposta sua. Anne engoliu todas as suas desculpas e apertou seus dedos ainda unidos.

"De nada." Ela respondeu com a voz entrecortada.

Ele sorriu timidamente para ela, seus olhos marrons focados pela primeira vez desde que acordou de seu sono eterno.

A igreja se esvaziou quando o burburinho acabou. Familiares se despedindo do garoto e de seus pais. O padre a convidou para a missa de domingo e prometeu lhe fazer uma visita amanhã cedo. Ela concordou, pois não havia outra resposta. Recuperada do ocorrido, Anne começou sua caminhada de volta para casa. Ela estava já na calçada quando ouviu Gilbert a chamar. Ele parecia mais desperto agora, andando sem cambalear sobre os próprios pés.

"Oi." Disse ele ao parar a sua frente. 

"Oi."

"Eu só queria agradecer mais uma vez. Não há nada no mundo que possa me fazer pagar essa dívida, mas é o tipo de coisa que sou feliz de dever."

"Não precisa me agradecer. Eu nem sei como fiz isso. Na verdade, nem sei se fui eu mesma que fiz." Anne divagou, olhando para seus próprios sapatos sujos de poeira." De todo modo, não importa. Você está bem agora. Vivo, então."

"Sim. Vivo. Isso é muito estranho, devo dizer." Ele riu e Anne o seguiu.

"Estranho é a palavra certa. Um estranho bom, acredito?"

"Maravilhoso." Ele quase pulou de entusiasmo. Anne o observou encarar o céu escurecido. Ela não poderia imaginar o que ele passou nas últimas horas. Ele tem alguma lembrança do que viu do outro lado?

"É bom estar de volta. É tudo o que posso dizer." Ele suspirou, fechando os olhos por um instante. "Bom, eu tenho que ir agora. Mas queria apenas me despedir de você, Anne."

Ela assentiu, retornando seus passos de volta ao caminho de casa.

"Foi uma coisa boa, eu ter me desculpado daquela vez, não é?" Ele falou em meio a um sorriso torto.

"Sim. Foi sim." Anne tirou do rosto uma mecha de cabelo bagunçado pelo vento noturno. "Tchau, Gilbert."

"Até mais, Cenouras." Gilbert gritou dos degraus da igreja.

Ela sorriu como uma idiota na estrada vazia, beliscando o braço de tempos em tempos para verificar se estava mesmo acordada. Deus, Marilla nunca vai acreditar no que aconteceu. 


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