No Vale da Morte escrita por Mandalay


Capítulo 1
No Vale da Morte — capítulo único




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Maka se lembrava... e era uma lembrança tão mas tão fácil de ser encontrada. Não existiam distrações nem empecilhos a impedindo ali, naquele lugar, cercada de estantes preenchidas por inúmeros livros que ela parecia conhecer tão bem. Como se fosse tão simples o ato de ela apenas correr seus dedos por uma das estantes, onde cada lombada lhe fosse uma lembrança querida e aquela sob qual seus dedos tamborilavam viera tão naturalmente quanto o aumento constante da temperatura do lugar onde estava.

O Vale da Morte.

Um lugar que só ganhara esse nome por levar a vida de garimpeiros durante a Corrida do Ouro e que nos dias atuais era o maior parque a céu aberto dos Estados Unidos, figurando em filmes de ficção científica a capas de álbuns de bandas de rock dos anos oitenta.

Um dos lugares mais quentes do mundo. Principalmente no verão.

Soul estava tão vermelho que nem mesmo suas roupas leves eram o suficiente para livrá-lo do calor mas ele ainda sorria, enquanto ela contava pela décima vez alguma curiosidade daquele lugar que em muito os lembrava de Death City.

Talvez fosse por isso que aquela lembrança lhe parecera tão fácil de ser tocada, acessada, a temperatura e a atenção de Soul a levavam diretamente para aquele momento. Seus dedos segurando a lombada e puxando o livro com força, avivando imagens no canto de sua mente.

Os dois estavam na quadra de basquete e o verão era intenso. O grupo de amigos se dividia entre revezar enterradas na cesta ou fazer marcações para conseguir uma enterrada perfeita, mas Maka pouco se importava com o jogo e tão pouco Soul naquele momento, ambos estavam apenas sentados a sombra daquela árvore frondosa, coberta de folhas verdes que adornava a quadra. Ela lia o livro mais recente que seu pai lhe havia comprado, enquanto ele apenas observava a bola de borracha laranja ir de um lugar a outro, até ter sua atenção voltada a ela e ao som que emitira durante a leitura.

Maka acabara de soltar um palavrão, um bem colorido por sinal, o que era incomum da parte dela.

— Se soltou um palavrão desses então o livro é bom, não?

Ela negou com a cabeça, suspirando em seguida.

— Não é bom Soul, é terrível! Como alguém consegue construir uma trama tão boa para abrir mão disso nos últimos capítulos? É um ultraje!

— É tão ruim assim? Você estava gostando até ontem.

— Até ontem o autor não tinha pegado um via tão preguiçosa para terminar a trama. Que saco.

— E vai dizer isso pro seu velho?

Ela sorrira alisando a capa envelhecida e rugosa.

— Não, gosto de ganhar livros de presente, mesmo sendo ruins.

O cenho franzido dele se dissolvera em uma risada. Aquela era a Maka que ele tão bem conhecia como apreciava e também admirava, principalmente pelo esforço em ceder ao pai desvairado que tinha.

O calor fizera a letargia crescer em seu corpo magro, resultando nela inclinando as costas completamente sobre o banco de madeira, sua cabeça inclinada olhando as folhas verdes da árvore balançando ao vento. Era uma sensação extremamente agradável aquela, a de ter uma temperatura opressora sobre os sentidos ser aplacada pela brisa suave que resfriava a sombra onde estava e ainda agraciava as folhas verdes grudadas aos galhos da árvore, e mesmo um livro ruim como aquele não poderia anular isso, seu pai se esforçava para mostrar o quanto se importava com ela e isso era bom... seus amigos se divertiam naquele dia quente e incrivelmente, Soul decidira por lhe fazer companhia ao invés de participar da disputa. Tal pensamento fazendo com que seus olhos caíssem brevemente sobre a figura dele, que ainda a observava, causando uma sensação estranha em seu peito, um palpitar diferente do que normalmente sentia ao lado dele e sem pensar muito ela apenas sorrira quando normalmente desviaria o olhar.

Soul era alguém tão fácil de se ter por perto, uma presença agradável nos melhores dias e alguém insuportável nos piores mas ela também não era alguém fácil. Juntos eles apenas se equilibravam entre qualidades e defeitos, um sempre auxiliando o outro... desde quando se conheceram... ele acabara por se tornar uma companhia imprescindível para ela. Uma da qual ela se recusava a abrir mão tão fácil.

Ele ainda a observava, o cenho se franzira novamente, como se ele pensasse em algo com toda a sua capacidade racional e depois se aliviara, as íris carmim voltando seu foco a ela, uma das mãos sustentava a cabeça dele sobre o banco enquanto a outra se aproximava cada vez mais de seu rosto... até dois dos dedos apertarem a ponta de seu nariz, o balançando de um lado a outro com lentidão, um sorriso pontiagudo se formara a feição dele.

— Ei Maka, quer namorar comigo?

O coração dela palpitara daquela maneira estranha novamente a medida que sentia seus olhos se arregalarem consideravelmente a cada batida irregular.

— Isso é uma piada Soul?

Ele soltara seu nariz, não deixando de sorrir.

— Não.

— Não..?

— Não Maka.

Fora a vez dela franzir o cenho se acomodando melhor no banco de madeira, que estava deixando seu corpo incrivelmente desconfortável.

Ela encarava a capa do livro, as letras do título dançando em desfoque enquanto ela sentia uma vontade quase incontrolável de rir, o som lhe coçando a traqueia tão facilmente que ela quase cedera ao riso... pois ela esperava por aquelas palavras... esperava a tanto tempo que se perguntava quando elas viriam, se viriam, ou se seria ela quem as proferiria...

Que droga de momento sem clima algum ele conseguira! A deixara completamente confortável para então jogá-la numa pilha de nervos!

Ela se virara em direção a ele apertando ambas as bochechas de sua arma.

— Soul, seu cretino!

Ele ainda sorria, mas acabara gargalhando com a surpresa da atitude dela.

— Essa é a sua resposta final?

— Sim, seu grande babaca!

Com uma expressão relaxada ele segurara suas mãos, os dedos abandonando as bochechas dele a medida que as suas esquentavam notando que o rosto dele se aproximava do dela, e então toda a sua capacidade cognitiva se perdera em uma vasto branco que fora preenchido por sensações e apenas estas. De um tilintar distinto ao calor dedos dele que ainda seguravam suas mãos, a sensação dos lábios dele pressionados sobre os dela, rachados e secos... estranho... até ela notar que o quicar da bola de basquete deixara de existir e que seus olhos estavam fortemente fechados.

Quando enfim os abrira, ela só conseguia ver a cor vermelha dos olhos de Soul muito de perto e sentir sua testa pressionada a dele.

As mãos dele ainda seguravam as dela.

O livro acabara esquecido em seu colo.

A bola de basquete voltara a quicar sobre a quadra e o tempo voltara a fluir em relação a ela enquanto o riso ganhara som ao sair de seus lábios, contagiando os dele.

— E você Soul, quer namorar comigo?

— Claro, por que eu recusaria uma oportunidade dessas?

Ela voltou a rir.

— Babaca.

— Você gosta de babacas. Que droga Maka! Eu sou um cara cool, não babaca.

Ela não conseguia deixar de sorrir em meio as risadas, as maçãs do rosto doendo pelo excesso, o palpitar em seu peito estava descontrolado agora, completamente descontrolado, enquanto o calor persistia e a brisa amenizava a temperatura. E por um momento, aquele momento era perfeito. Muito melhor que o final daquele livro...

Porém uma sequência de puxões a trouxera novamente a realidade...

Soul puxava a barra da regata que ela escolhera usar naquela manhã, tentando chamar sua atenção. O logo composto por números em verde-água "059/21" prensado no tecido branco saltava freneticamente a luz do sol, e se ela bem se lembrava fora ele quem comprara aquela roupa para ela... e agora a olhava emburrado.

— Tá distraída, por que?

— Me lembrei de algo.

Ele bufou.

— Miragem.

— Quem dera, mas foi só uma lembrança e estamos na Califórnia, não no Saara, Soul.

Uma de suas sobrancelhas se arqueara, a olhando criticamente.

— Kid me contou como foi estar no Egito em missão, só isso, disse que lá as tempestades de areia são terríveis.

— E você ainda quer ir pra lá?

— Claro, e você não?

Ele suspirou deixando de observá-la.

— Aonde você for, eu vou.

E isso era bom.

Essa confirmação, essa certeza de que ele estaria com ela.

Infelizmente, o acolhimento que aquelas simples palavras a trouxeram não fora suficiente para aplacar o calor que sentia naquele momento. A temperatura era intensa demais, mesmo sendo relativamente cedo para tamanha sensação térmica. Por mais que estivesse preparada para imprevistos, chegava a ser enfadonho vê-la pensando daquele jeito, já que até mesmo a quentura matutina de Zebriskie Point era capaz de remete-la a sua terra natal. E não houvera nenhum lugar ali - nenhum ponto turístico em especial - que não a lembrasse de Death City! Fosse a temperatura no verão, fossem as paisagens cobertas em areia ou o céu multicolorido, todo o conjunto não era capaz de fazer com que ela desassociasse a emoção que sentira ali daquela que sempre sentia ao chegar no topo da longa escadaria que levava a Shibusen. Era algo de tirar o fôlego. Não importando o quanto você desbravasse.

Mas ainda assim, aquele calor era diferente do que ela estava acostumada, a fazendo pensar no quão estúpida fora em escolher estar ali em pleno verão americano só para fazer um comparativo em relação a sua terra natal. Ah, a sua curiosidade sem limites!

Por sorte, em meio ao passeio daquela manhã em busca de assistir o nascer do sol em um lugar incrivelmente bonito e absurdamente quente, eles conseguiram encontrar uma sombra esguia que lhes trouxera refresco em meio a paisagem de areia tórrida, junto das garrafas de água que tinham em mãos, onde se sentaram para observar o brilho cintilante da pintura do bugue que os trouxera até ali cegá-los brevemente.

Ao menos ela não poderia negar que estava aproveitando o momento.

Fios de cabelo grudavam em sua testa e ombros, mesmo tendo fugido de suas costumeiras maria-chiquinhas para prendê-los, e Soul não estava muito diferente dela.

— Que lembrança foi essa que te fez parar de andar feito criança correndo atrás de brinquedo novo então?

Ela ajeitou os fios rebeldes sobre a cabeça, seus ombros estavam quentes.

Seria ridículo dizer em voz alta que estar ali, em um forno natural a oitenta e seis metros abaixo do nível do mar com ele, a fizera se lembrar de quando ele a pedira em namoro?

Desconsiderando a parte dos oitenta e seis metros abaixo do nível do mar, claro, eles não estavam em Badwater naquele momento.

Os dedos alvos dele pressionavam seu ombro direito, fascinados pela temperatura da pele assim como na mudança de cor que apenas aquele gesto causava ali. Um sorriso pontiagudo, o mesmo da lembrança que tivera a pouco, se mostrava faceiro enquanto ele parecia se divertir em um interesse quase que infantil, trazendo aquele palpitar familiar ao seu peito mais uma vez. Tão inédito quanto da primeira vez que o sentira, e ela podia jurar que esquecera do calor apenas o observando daquele jeito.

Talvez fosse realmente o calor, mas ela se sentia incrivelmente estúpida.

Ela.

Maka Albarn.

Estúpida. Apenas observando ele, seu namorado a uma quantidade de tempo que ela já não tinha mais interesse em contar.

— Me lembrei de quando perguntou se eu queria namorar com você.

A curiosidade de Soul declinara a medida que seus olhos deixavam de olhar o tom vermelho de sua pele para se desfocaram em outro lugar, aumentando de tamanho a medida que ele ligava as palavras ditas ao que ele havia perguntado minutos atrás.

Se bem que no Vale da Morte o tempo parecia deixar de existir também.

— 'Tava quente pra caramba naquele dia.

— Não tão quente quanto aqui.

— Verdade - ele levantou sacudindo os fios de cabelo melados de suor — o que acha da gente voltar? A recepcionista disse que depois das dez a gente com certeza vai desidratar aqui e olhando já são quase nove.

— Tudo bem, vamos voltar, eu já me queimei o suficiente por um mês.

— Não foi só você... incrível como isso não acontece em Death City.

— A gente não passava tanto tempo no sol também.

— É, é, senhorita metida a sabichona.

— Eu não sou metida Soul, eu sou sabichona.

Ele apenas deu de ombros, como se aquela afirmação pouco lhe fizesse sentido.

O motor roncara enquanto eles se acomodavam melhor nos bancos quentes, procurando ignorar o grude que apenas sentar em bancos de couro poderia causar a eles. Olhando o céu limpo só a fizera se lembrar de outro motivo que a fizera querer conhecer aquele lugar, para além do calor, do amanhecer e do oásis onde estavam alocados por dois dias e três noites.

— Sabia que o céu do Vale da Morte é um dos céus mais escuros durante a noite Soul?

Soul fizera uma careta.

— Maka, se você me vier com mais uma curiosidade aleatória sobre esse inferno na Terra eu juro que te faço voltar a pé!

Ela não conseguira conter a risada, pegando o mapa do porta-luvas.

— Mas eu sei que você vai gostar dessa parte!

— Eu vou gostar é de te esgoelar, isso sim Maka!

E ele poderia até ter dito isso com clara irritação na voz porém, não era um tom que se equiparava a bela bronca que levaram da recepcionista do hotel onde estavam hospedados. Aquele olhar que transitava da preocupação a ira mau velada os atormentara durante uma tarde inteira, mesmo depois de terem se desculpado por múltiplas vezes, ela ainda insistia em salientar o quão imaturos os dois haviam sido ao voltarem naquele horário. E depois de tomarem banho, se fartarem de comer e lidarem pelo resto do dia com um desconforto terrível na própria pele, que parecia reter por tempo indeterminado a temperatura do sol naquela manhã, eles tinham de concordar com ela. Mesmo horas depois, estando acomodados em poltronas imensamente confortáveis no terraço observando o céu noturno, os ombros dela ainda formigavam ao mero toque.

Ao menos durante a noite a temperatura era amena.

Seus dedos apontavam constelações, procurando por uma parte da Via Láctea no breu que agora era o Vale da Morte enquanto que Soul falava com alguém pelo celular em um momento de sorte, já que o sinal ali era quase impossível, distraído demais para se atentar aos três pontinhos que formavam a constelação de Órion que ela contava a história de sua origem com empolgação sem igual.

Mas Maka sempre se empolgava quando contava algo que ela sabia que ele desconhecia, tinha prazer em fazer isso.

A ligação terminara e Soul deixara a poltrona onde estava para se espremer ao lado dela na sua, as estrelas e breu da noite ainda falhando em ganharem a atenção dele. Certo de que o céu noturno daquele lugar era magnífico e ele teria mais uma noite para poder apreciá-lo devidamente antes de partirem.

— Pra onde a gente vai em seguida?

Os olhos de Maka cintilavam em prospecto a uma nova aventura.

— Que tal Las Vegas?

— Com a sua sorte você quer mesmo entrar num cassino Maka?

— Ah, mas vai ser divertido!

Ele a abraçara por trás, acomodando seu corpo ao dela, tentando não se importar muito com o incômodo de sua pele.

— Claro que vai.

— E com quem você estava falando?

— Meu irmão, parece que vai ter alguma reunião entre famílias e meus pais me queriam presente. Disseram que eu posso levar você também, se você quiser, claro.

Seus dedos tamborilavam pelo braço dela.

— Uma festa chique como as do Kid?

Ele fez uma careta e balançou a cabeça.

— Bem mais.

— Tudo bem, eu só vou precisar de roupas chiques.

Soul sorrira beijando o topo da cabeça dela, os fios louros emanando um cheiro suave e doce.

Até que não fora tão ruim a ideia de segui-la para onde quer que ela fosse.


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Notas finais do capítulo

Desde de que li sobre o Vale da Morte, meti na cabeça que queria escrever algo tendo ele como cenário e que por tabela, tinha que ter Soul Eater no meio e daí acabou surgindo isso - heh - alguns dados podem estar inconsistentes por isso, peço que relevem só quis saciar o meu desejo :)



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